78 - Nem uma coisa, nem outra
Lucas permaneceu calado, e o silêncio se prolongou por tanto tempo que chegou a constranger. Alencar, Lívia e o escrivão, que acompanhavam o depoimento por trás do espelho falso, estavam apreensivos com o que poderia acontecer a partir de agora.
Lucas analisou os dois policiais da corregedoria, um em pé próximo à porta, outro sentado ao seu lado em frente a Garcia, que estava algemado do lado oposto da mesa onde um copo de isopor contendo metade de um café frio lhe prendia o olhar. Por um breve instante, se pegou pensando em quanto tempo demoraria para render os dois policiais antes de quebrar o pescoço do ex-parceiro.
Claramente, era apenas um pensamento intrusivo; ele jamais faria isso, pois sabia que o fato de estar presente no depoimento de Garcia não tinha relação com algum tipo de consideração do ex-parceiro para consigo, ou com qualquer lapso de consciência. Era certo que não. Todo esse circo era, na verdade, uma última tentativa de fazer Lucas perder o controle na presença de agentes da corregedoria e, consequentemente, se complicar ainda mais.
O tic-tac do relógio de parede não o deixava esquecer que o tempo estava passando. Lucas andava puto com o tempo, porque a cada minuto que se passava, mais se prolongava a distância entre ele e Ana, mais tempo ela ficava desacordada e mais merda ia se acumulando nesse intervalo.
Ele continuava olhando para Garcia, inexpressivo. Todos ao redor permaneciam em suspenso, aguardando alguma reação. Ninguém se achava no direito de furar o silêncio, de falar qualquer coisa antes que Lucas se manifestasse, porque finalmente puderam testemunhar que ele não era um lunático cavando provas, e tiveram que admitir que ele estava certo desde o início.
Garcia havia testemunhado coisas muito particulares, assuntos pessoais e íntimos somente a Lucas, sendo até mesmo maldoso nos detalhes, o que constrangia e preocupava seus colegas. Saber como a esposa morreu enquanto Ana era mantida numa UTI era demais...
Tudo aquilo era demais.
Finalmente, depois do tempo imposto e para alívio dos demais envolvidos, Lucas abriu a boca.
– A história da mãe dela... É mesmo verdade?
Garcia ficou surpreso com a pergunta e soltou o ar, decepcionado. Ele esperava outra reação de Lucas e um milhão de outras perguntas ou acusações, mas ele não demonstrou nada, nem um fio de descontrole. Mais uma vez, Lucas se mostrava superior, e isso era deveras frustrante para Garcia.
– É verdade. Você pode não acreditar, sei que não mereço seu respeito nem sua credibilidade, mas não teria motivos para inventar tudo isso. Eu realmente precisava te contar a história toda porque prometi à Alice. Ela queria que você soubesse o que ela sentiu e passou por sua causa.
Lucas segurou as palavras na boca. Não bastasse enfatizar a evidente responsabilidade de Lucas nas decisões de Alice, Garcia vinha com esse papo de que queria fazer a vontade dela porque a considerava, porque tinha prometido...
O cacete com isso!
Garcia morreria e levaria isso pro túmulo se confessar a história não fornecesse um atenuante para a acusação de sequestro. Ele queria era passar a imagem do sujeito bonzinho que acabou causando a morte de Alice tentando salvá-la. Lucas estava furioso, mas guardou tudo no fundo do peito e foi sentindo o fogo liquidificar seus órgãos enquanto não se permitia cuspir tudo o que pensava na cara do ex-parceiro.
– A emboscada em Santos, era pra me matar, não é? Você avisou os traficantes.
– Não, não mesmo! Aquilo estava fora das minhas mãos. Nós estávamos juntos, Lucas! Eu tomei um tiro pra te proteger, caralho! Não seria louco de planejar algo assim. Alguém achou que podia agir por conta própria, você virou alvo, mas não foi minha culpa!
– Você mandou matar Morato, não foi? – Lucas continuava fazendo as perguntas de modo impessoal, como num interrogatório qualquer. Nenhuma comoção ou sentimento se percebia, embora dentro dele as emoções borbulhassem como lava.
Garcia engoliu em seco e Lucas captou seu nervosismo. Garcia não iria confessar isso, mas Lucas tinha certeza de que havia sido ele.
– Morato entrou num radar para além da minha alçada – foi tudo o que Garcia respondeu.
– Só que, diferente de mim, a morte dele não seria um problema, não é? Só a um bebê que vai crescer sem o pai, mas isso não significa nada, afinal, não é da sua alçada.
– Russo...
– Desde quando esse plano vinha sendo arquitetado? Quando Alice combinou tudo isso com você?
– Desde o Ano Novo. Planejamos tudo na confraternização da Acadepol.
Lucas se lembrava da festa. Ele estava muito mal naquela noite em específico, depois de semanas de crise em casa com Alice prostrada e agressiva. Por aqueles dias, ele chegou a conversar com um amigo advogado sobre divórcio, e só não chegou a falar com Alice a respeito devido às festividades de fim de ano.
Durante aquele réveillon ele bebeu; bebeu tanto que chegou em casa trançando as pernas. Até se lembrava vagamente de Alice ter ficado um bom tempo de conversa com Garcia, mas não se importou, porque enquanto ela mantinha a boca ocupada falando com seu parceiro, não ficava falando merdas para ele, e ele podia beber em paz.
Relembrar aquela situação o fez se sentir péssimo, e com isso, seu autocontrole começou a ruir. Essa foi a deixa para se levantar e deixar a sala sem olhar para trás.
A cada passo que dava, sentia que finalmente estava abandonando tudo, como se grilhões estivessem se desprendendo dele e se partindo no chão. Ao cruzar a porta, Alencar o interpelou uma última vez.
– Lucas, vamos tentar colher novamente o depoimento do Diego sobre a parte do barco... é provável que façamos uma acareação. Vamos a fundo nisso e ver o que é verdade, e se a morte de Alice não passou de um acidente, então...
– Então ela não foi assassinada, nem tirou a própria vida. Nem isso ela conseguiu fazer – Lucas concluiu, sentindo-se ainda pior pelo comentário.
Ele precisava sair dali o quanto antes, então se esquivou de Alencar e de outros policiais no caminho e foi às pressas para o carro. Sabia que parecia estar fugindo, que iam estranhar o fato de ele sair correndo, mas não se importou.
Atormentado, entrou no SUV, deu a partida e saiu cantando os pneus, dirigindo como louco por alguns quarteirões até estacionar em uma ruela sem saída.
Desligou o carro.
O tremor nas mãos e a respiração descompassada revelavam sua tentativa de não esmorecer na frente de todos. O silêncio da via deserta pressionava seus tímpanos, e ele lamentou que não houvesse algum som, qualquer ruído que sobrepusesse seus pensamentos auto condenatórios.
No fim, Alice realmente tinha morrido por causa dele.
O pior de tudo, tinha desistido de viver no final.
Ela só queria ter sido amada, vista, ouvida e compreendida.
A perda da mãe explicava muita coisa; a tragédia que definira quem Alice se tornara no futuro, justificando seus problemas emocionais.
Lucas sabia que ao menos essa parte do relato era verdadeiro. Ele não conhecia os detalhes, mas já tinha ouvido a história que ninguém contava, do próprio Ricardo. Lucas sabia que a mãe de Alice era violinista, que tinha morrido no mar, no aniversário de 13 anos de Alice. Ele só não imaginava que a mãe era bipolar, e que havia tirado a própria vida na frente da filha, ferrando para sempre com a cabeça dela. Se ele soubesse disso antes... Se Alice tivesse contado...
Com a testa apoiada no volante, Lucas sentiu lágrimas, mais lágrimas como se uma fonte inexplorada tivesse sido descoberta dentro de si nos últimos dias. Era um pranto de arrependimento, revolta, mágoa, tudo ao mesmo tempo.
Quando as lágrimas enfim secaram, ele se sentiu vazio e exausto, e seu corpo refletia isso de várias maneiras: nas dores generalizadas, nos músculos tensos, na cabeça que estava prestes a explodir e no estômago constantemente embrulhado.
Muito tempo se passou, e Lucas permaneceu naquela ruela, apreciando a solidão, sentindo o silêncio e remoendo o arrependimento.
Ele não fora homem suficiente para cuidar de Alice quando ela precisou, nem era homem suficiente para cuidar de Ana, quanto mais de um filho. O pior, se o testemunho de Garcia fosse mesmo verdadeiro, Ana teria sido sequestrada e quase morta apenas porque Lucas não desistiu da investigação quando deveria.
Ele morreria por Ana, mas era ela quem poderia estar morrendo por causa dele.
Quando a estática envolveu seus sentimentos a ponto de privá-lo de qualquer reação, ele pegou o aparelho e ligou para Ricardo. Para sua surpresa, o homem o atendeu ao primeiro toque.
– Lucas?
– Ricardo. Acabei de acompanhar o depoimento do Garcia. – Lucas sentia como se agulhas estivessem fincadas em suas cordas vocais. A voz saiu tão fraca e rasgada que ele mal reconheceu o próprio timbre.
– Já estou sabendo... Alencar me ligou.
É claro. Tratava-se da filha dele.
– Sobre a mãe de Alice, sua ex-mulher... É verdade?
Ricardo demorou um tempo para responder. Era claro que ele sabia a que Lucas se referia.
– É verdade. Infelizmente.
– E ninguém achou que era relevante eu saber?
– Não cabia a mim contar para você.
– Caralho, Ricardo! Alice estava com depressão! Eu estava passando pelo mesmo problema que você, e você não achou que seria uma boa ideia conversar comigo sobre... – Lucas se interrompeu, tentando recobrar o controle – Sobre o suicídio da mãe? Que tipo de pai é você?
– Que tipo de pai eu sou? Que merda você pode falar a respeito? Você não é pai! Sequer tem um!
– Isso foi baixo, até mesmo para você, Ricardo – a voz rouca agora era quase um murmúrio.
Ele realmente não sabia nada a respeito de paternidade, a não ser pelo fato de ter cuidado dos irmãos; talvez, se o destino não quisesse foder ainda mais com ele, com sorte ele se tornaria um nos próximos meses.
– Você se acha no direito de julgar todo mundo, Lucas. Esse é o seu problema. E se quer mesmo saber que tipo de pai eu sou, sou do tipo que teve que criar a filha sozinho porque a mãe não deu conta; do tipo que perdeu o grande amor da vida por causa de uma escolha; do tipo que ninguém se importa de verdade se está rindo ou chorando sozinho num quarto escuro porque ele tem dinheiro demais, então não tem problemas. Sou o tipo de pai que perdeu a filha e, ainda que eu não tenha mais filha, olha só que interessante! Eu vou continuar sendo um pai! Porque não se deixa de ser pai quando um filho morre! Bem-vindo, amigo! Todos temos esqueletos no armário, alguns estão empoeirados demais para mexer!
Lucas quase riu do vitimismo implícito na declaração de Ricardo, mas depois se sentiu mal por insistir em julgá-lo quando prestou um pouco mais de atenção ao contexto geral. Percebeu que não fazia mais sentido tentar entender, afinal, já conseguira o que queria, agora tinha que seguir em frente e permitir que os outros fizessem o mesmo.
Ainda com Ricardo em linha, ele ouviu o bipe de outra chamada em espera. Quando viu a identidade do chamador, nem se despediu de Ricardo, apenas atendeu, ansioso.
– Alô, Lucas? – Era Antônio, do outro lado da linha.
– O que houve?
– Preciso atender uma emergência na pousada. Você quer voltar pra cá? Os médicos disseram que está tudo sob controle, eu também não vejo problema em deixá-la aos cuidados médicos, mas não sei quanto a você.
Lucas jogou o aparelho no banco, manobrou o carro e cantou os pneus rumo ao hospital.
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