77 - Quinta-feira
Quinta-feira, 13 de maio
Infelizmente, mesmo com a tentativa de ganhar distância de Diego, no meio da manhã da quinta-feira o barco dele os abordou, provavelmente porque já navegava em paralelo. Eles sempre estiveram em desvantagem no final das contas. As embarcações se aproximaram, e Garcia foi até a cabine avisar Alice. Ela estava desolada e profundamente magoada com tudo.
Embora fosse inteligente e linda, gentileza nunca fez parte do seu dia a dia. Tendo sido criada num mundo de interesses e quase sem amor, ela não aprendeu a tratar as pessoas com respeito, sempre tentou se autoafirmar em tudo, e a soberba e rudeza eram seu normal, principalmente no trato com gente, segundo seu pai, "abaixo" do próprio status social.
Quando percebeu que não haveria uma saída, as garras furaram a pele na tentativa de atingir quem estava em volta. A vontade de agredir Garcia era quase insana, e arrependida, ela se lembrou das vezes que tratou Lucas da mesma maneira, quando ele não agia da forma como ela esperava ou desejava. Em contextos totalmente diferentes, ela o agredia com palavras, muitas vezes cruéis, na tentativa de "merecer" o amor dele a qualquer custo. Ela se boicotava, porque essa era uma das ferramentas que ela conhecia, bem como a chantagem e a humilhação.
– Eu vou adorar contar pro Diego sobre o jeito como você me olha. Acha que eu não notei o quanto você me deseja? Talvez ele te mate antes de me matar, e eu tenha algum prazer antes de morrer. – Ela desdenhou.
– Você não precisa agir assim, Alice. Você melhor do que ninguém sabe que não tenho escolha.
– Você ainda pode matá-lo.
– Você também sabe que isso é inútil.
Diego colocou o barco rente à lancha de Alice. Garcia subiu até o convés e tentou ganhar tempo.
– O que pretende fazer com ela?
– Ela é assunto meu.
– Preciso saber se ela vai ficar bem.
– Você não ouviu direito? – Diego o ameaçou com a mão na cintura, dando a entender que estava armado.
Isso não assustava Garcia. Ele estava acostumado a lidar com bandidos armados e sabia que quanto mais uma pessoa tinha a perder, menor a probabilidade de ela fazer uma merda.
– Você sabe que tanto eu quanto ela somos imprescindíveis para o andamento das coisas. – Garcia ainda tentava articular um plano para livrá-los daquela confusão.
– E você acha que eu sou idiota? Vocês estavam fugindo! Fugindo, porra! E vem me falar do que é imprescindível? Eu só não meto uma bala na tua cabeça porque não quero sujar as mãos limpando teu sangue! Agora manda ela pra cá e vaza daqui!
Diego sabia que Garcia não abriria o bico sobre tudo aquilo. Só o fato de ele ter aceitado ajudar a Alice já era uma merda sem tamanho, e os três ali já tinham chegado à conclusão de que não haveria outro desfecho na história.
Por meio de cordas, eles prenderam as lanchas uma à outra para que Alice pudesse trocar de lugar. No instante em que ela colocou o pé no barco de Diego, ele a esbofeteou; ela perdeu o equilíbrio e bateu com as costas no deque.
– Ei, cara!! Por que isso? – Garcia tentou interferir.
– Vá embora, Garcia! Pra todos os efeitos, ela já está morta, não é mesmo? Mas você ainda não está, então, não força a barra!
Garcia não se moveu. Manteve os barcos amarrados e tentou encontrar uma desculpa para permanecer mais tempo com Alice. Diego a levou para dentro da cabine, e do lado de fora, Douglas conseguiu ouvir a discussão acalorada. Ele se atormentava com as vozes alteradas de ambos, e com Alice que implorava para ser libertada, mas ele não conseguia encontrar coragem para interferir, pois sabia que Diego era muito poderoso e tinha conexões perigosas.
De repente, um silêncio estranho se prolongou na cabine. Garcia não conseguiu se conter e pulou no outro barco. Angustiado, resolveu espiar pela brecha da porta e testemunhou, horrorizado, Diego sentado a olhar a tela do celular enquanto Alice jazia apática. Era possível ver manchas vermelhas do corpo, locais onde provavelmente Diego a havia esbofeteado.
O olhar dela, perdido e apagado como alguém que já havia desistido de tudo, foi o que moveu Garcia a tomar uma atitude. Ele invadiu a cabine, revoltado.
– Para com isso, porra! – Ele averiguou se Alice estava mesmo consciente – Não tem a menor necessidade de fazer isso!
Diego se levantou, sem nenhum constrangimento.
– Ela está acostumada. Geralmente eu evito o rosto... é uma obra de arte, não se pode tratar assim coisas tão belas, mas acabei dando uma enjoada, não sei... ela anda meio rodada, você não acha? Desculpe, eu não curto muito a três, pelo menos não com outro homem, então pula logo fora e deixa a gente em paz.
– Eu vou te matar, seu filho da puta! – Garcia apontou a arma para a cabeça de Diego, que riu e ergueu as mãos.
– O que você vai fazer? Eu estou no radar, minha equipe sabe onde eu estou e com quem eu estou. Se fizer alguma merda comigo, você nunca mais vai conseguir pisar em terra, vai morrer antes de chegar à praia!
– Eu só quero que você a solte. Que a trate com um pouco de respeito!
Naquele momento, Alice entregou os pontos. Ela só queria ver o circo pegar fogo.
– Sabia que ele queria me foder, Diego? Eu vi o jeito lascivo que ele olhava pra mim, e ainda vem falar de respeito...
Por mais que doesse, ela sabia lidar com Diego. Ao menos, podia prever sua reação. Já Garcia, era um cara confuso, falso, oportunista, que a tinha iludido e convencido a confiar nele usando Lucas como isca. Era muito pior ser traída por alguém em quem confiara, do que sofrer nas mãos de quem era um canalha sem fingimento. Garcia não passava de mais um farsante, tinha traído a todos, ela própria, os colegas de profissão, Lucas... Ela estava farta de tanta mentira.
Diego dirigiu um olhar psicótico a Garcia enquanto tirava a arma da cintura e apontava para o rosto do agente. Garcia o cercou, sustentando o olhar. Ele queria isolar Alice de Diego, ao menos para ganhar mais algum tempo e tirá-la da zona de perigo. Ele não entendia por que Alice queria tanto dificultar as coisas, mas estava determinado a salvá-la.
Imaginando que Alice se trancaria na cabine, Garcia se lançou sobre Diego jogando-o porta afora. Pego de surpresa, Diego deixou a pistola escapar. Garcia continuou empunhando a arma e Diego segurou-lhe a mão na tentativa afastar de si o cano da pistola.
Eles lutaram por um tempo, Diego conseguiu dar a volta por cima e bater o braço de Garcia contra o convés, fazendo-o soltar a arma que escorregou para longe, então eles passaram a se esbofetear, numa guerra de forças estúpida como dois moleques numa rinha de rua, quando, subitamente, perceberam Alice correndo para o convés.
Os dois homens pareciam ter se esquecido de que estavam brigando, do mesmo modo que tinham se esquecido dela na cabine. Alice foi em direção à popa do barco e eles se ergueram num pulo. Diego recuperou a arma e deu um tiro para cima, fazendo Alice se assustar e parar.
Ela estava cansada. A tristeza a envolvia como uma roupa apertada, difícil de usar. Ela pensou em seu plano frustrado e analisou as alternativas. Se ficasse com Diego, ele iria se aproveitar do fato de ela ter desaparecido para mantê-la para si, indefinidamente, até que restasse um bagaço que ele descartaria sem culpa. Garcia não iria salvá-la, já que era um covarde traidor e sabia que estava comprometido, portanto, precisaria silenciá-la. As alternativas eram Diego, Garcia...
Ou o mar.
Uma imensa tristeza a acometeu quando se deu conta de que nunca chegaria a Alagoas. Nunca mais voltaria a ver seu pai... Nunca mais estaria com Lucas, seu grande amor. Ela nunca saberia o que era ser amada. Talvez esse fosse seu destino, afinal; se reunir com sua mãe no fundo do oceano.
Com o rosto banhado em lágrimas, ela voltou a andar em direção à balaustrada, decidida. Garcia percebeu o que ela estava prestes a fazer e correu para impedi-la. Alice colocou o pé sobre a grade e estava pronta para içar o corpo e se jogar ao mar, quando Garcia a segurou pelo calcanhar. Ela perdeu o equilíbrio e caiu, batendo a cabeça contra a quina da mureta de proteção.
O silêncio que se seguiu foi tão agudo que nem as ondas pareciam emitir som. Os homens continuavam observando-a, imóvel, como se estivesse desmaiada.
Diego correu até ela e a virou de barriga para cima; um fio de sangue começou a escorrer por baixo dos longos cabelos negros e foi se acumulando próximo à mureta, formando uma poça que se alargava lentamente. Garcia correu para perto e observou os olhos azuis, já vidrados e opacos; checou o pulso e, nada. Apavorado, ergueu-se com as mãos na cabeça.
– Meu Deus, meu Deus, meu Deus....
– Cala a boca! – Diego gritou – olha a merda que você fez!
Não havia nenhuma sombra de remorso, nenhum sentimento. Definitivamente Diego era um psicopata.
– E agora? Ela disse que se alguma coisa acontecesse... As provas iam aparecer... A gente tá ferrado! O que a gente faz? Eu estava tentando salvá-la, você viu, ela ia pular igual a mãe dela fez...
– De que merda você está falando? Que mãe?
– Ela tem provas com algum dos federais! Ela alertou que se desse merda com ela ou com o Russo, tudo viria à tona, ela me garantiu isso!
– Pode ser mentira! Vai ver nem tem nada!
– Você quer pagar pra ver? Porra! Merda de porra!
Diego pensou por um tempo. Alice sempre foi muito esperta, dificilmente traçaria um plano de fuga sem ter uma garantia. Talvez ela tivesse algo na manga, e se houvesse alguma prova por aí e viesse à tona, muita gente ia se ferrar, principalmente se caísse nas mãos dos federais, o que era bem mais difícil de controlar. Ele arquitetou por mais um tempo, até que propôs:
– Ninguém mais sabe dessa história, certo? Da fuga e tal...
– Me diz você! Foi você que veio em nosso encalço, falou com mais alguém?
– Não... Ninguém sabe, ao menos não sabe que ela está envolvida. Pra todos os efeitos, eu só vim encontrar você no mar pra fazer uma suposta "troca".
Garcia não conseguia tirar os olhos de Alice. Ele se sentia destroçado por ela ter morrido de um jeito tão idiota, depois de tudo o que revelou a ele, depois de ele ter tentado salvá-la, e ele acabou sendo o principal responsável por sua morte. Ele bem sabia que não iria superar isso tão cedo.
– Então, vamos fazer o seguinte: – Diego continuou, nem um pouco preocupado com o corpo no convés – vamos realizar o desejo dela. Ela não queria morrer no mar? Que assim seja. Se ficar confirmado que ela se suicidou, ninguém vai cavar esse assunto. Mas você vai ter que fazer sua parte, vai ter que arrumar a bagunça internamente. Nada de autópsia ou investigação.
– O mais difícil vai ser convencer o Russo! Ele não vai deixar isso barato, e você sabe disso. Alice disse que nada pode acontecer a ele, então, por enquanto, a gente vai ter que neutralizar ele de outro jeito.
– Isso é com você. Vai ter que encontrar alguma mancha, alguma merda que ele já tenha feito, já que não dá pra comprar o cara.
– Pior que não tem nada pra pegar ele. O cara é um santo! Vou ter que voltar e sentir a situação, cavar alguma oportunidade, sei lá. Vai ser um risco muito grande. Mesmo se eu tentar plantar alguma prova contra ele, vai ser difícil convencer o delegado; o departamento inteiro confia nele.
– Talvez você tenha que trabalhar justamente nisso. Você vai ter que minar essa confiança, desacreditar o cara, e, na moral, a merda foi sua, então seja criativo!
Então, os dois homens removeram as roupas de Alice e a vestiram com o mesmo vestido que ela usara na festa, depois acomodaram o corpo sobre uma lona, lavaram o sangue do convés e fizeram uma limpeza geral, jogando no mar os lençóis dos dois barcos, as roupas, bem como os utensílios, copos, talheres, qualquer coisa que pudesse conter DNA. Só então colocaram os barcos em curso de volta para São Sebastião.
No final da tarde, eles chegaram à cidade; Douglas voltou à marina para devolver o barco de Alice enquanto Diego navegou até próximo à encosta da montanha, na região onde ficava o condomínio. Ele pegou Alice no colo e se aproximou da mureta.
– Bom, só para não dizer que você partiu sem nenhuma palavra... Alice, foi bom enquanto durou.
E lançou o corpo ao mar.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro