74 - Antes do Jantar
Alencar entrou em sua sala na DP, enraivecido. Ele até entende o lado de Russo, óbvio, mas por causa dele, Diego não queria mais depor. Agora tudo entraria na morosidade da Lei. Essa história já tinha ido longe demais, e Alencar está de saco cheio de ter que explicar como tudo aquilo pôde acontecer bem debaixo do seu nariz.
Lívia o vinha ajudando a montar um dossiê robusto para a reabertura do caso de Alice, mas Garcia era a peça que faltava, porque aparentemente ele foi uma das últimas pessoas a vê-la com vida.
Alencar ficara sabendo que Alice havia deixado uma carta, mas Russo tinha botado fogo nela, sabia-se lá por quê. Bom, era assunto dele, a carta era pra ele, mas seria bom ter acesso ao seu conteúdo para procurar alguma pista. Embora Alencar soubesse que, se houvesse qualquer coisa, Russo teria achado, afinal, o rapaz havia conseguido encontrar a carta escondida no tronco de uma árvore usando apenas uma filmagem e o cérebro... por Deus!
– Delegado, parece que o encontraram! – Um policial de plantão comunicou com a voz elevada. No mesmo instante, vários policiais se movimentaram em direção à porta.
– Finalmente! – Alencar pega a arma e veste o colete enquanto caminha para a viatura – Apenas um aviso... – ele grita para a equipe que se prepara – Se alguém aqui deixar isso chegar no Russo, vou providenciar pra que seja transferido lá pra puta que pariu!
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No início da tarde, quando Antônio chegou para visitar Ana, Lucas retornou à lanchonete do hospital para tomar um café. Ele nem se lembrava de como era sua vida antes da dor de cabeça chegar; parecia que seu cérebro havia encontrado um novo estado de normalidade entre dores agudas e insuportáveis, e ele bem sabia que o motivo era a displicência com as necessidades do próprio corpo.
O café desceu pesado, caiu no estômago e o fez doer. A náusea o levou até o banheiro mais próximo, onde passou um tempo com as mãos apoiadas ao mármore da pia, esperando o mal-estar diminuir. Se olhou no espelho e encarou as escleras vermelhas circuladas pelas sombras arroxeadas das olheiras, a barba maior e o cabelo despenteado que o assemelhavam a um bêbado.
Sem dar importância ao fato, lavou o rosto e passou a mão molhada na nuca. Sentiu o tremor do enjoo diminuir gradativamente, e voltou a pensar em Garcia. A informação de que o ex-parceiro estaria presente quando Alice foi morta abriu um leque gigantesco de possibilidades, e encontrá-lo tinha se tornado essencial.
O pensamento o aborreceu. Ficou surpreso com a forma como o assunto simplesmente voltou à sua mente cansada.
O fato era que ele não conseguia se desligar. Sentia que precisava, que deveria se resguardar de acompanhar o caso, afinal, ele já havia encontrado Ana, e tinha um senhor problema para administrar, que envolvia o quando e o como ela iria acordar; ele obviamente não cogitava a possibilidade de ela não acordar. Enfim, suas energias deveriam estar voltadas para ela, e ficar tentando entender o que aconteceu com Alice só o esgotava ainda mais.
Lucas deixou o banheiro e olhou através das amplas janelas da recepção do hospital. Gotículas de chuva diminuíam a visibilidade, mas era possível notar que já era noite. Decidiu voltar para a ala de espera.
– O médico disse que Ana está respondendo bem aos medicamentos! – Antônio o abordou assim que ele chegou. O homem trazia um sorriso cheio de esperança que aqueceu o coração de Lucas.
– Que boa notícia, Antônio! – Apesar de animado, sua voz não refletia o sentimento.
– Tem isso, e mais outra coisa... – Antônio continuou, apreensivo.
– O que foi... O bebê? – O calor virou gelo em segundos.
– Não, não é isso. Desculpe, não queria assustar você. É que, um psiquiatra pediu para te ver assim que você chegasse aqui.
"Merda!"
O fato de Lucas estar em terapia não significava que esse fosse um tópico fácil para ele. O preconceito ainda estava lá, mesmo que ele não pudesse negar algum avanço, e acrescentar mais uma orelha curiosa pronta para desvendar seus podres só piorava seu mal humor. Sabendo que não haveria como protelar a conversa, se informou sobre o médico e foi encaminhado ao consultório do profissional.
– Lucas, quero que você saiba que está num lugar seguro - o médico afirmou antes mesmo que Lucas ocupasse o assento à sua frente.
Um riso baixo cheio de sarcasmo escapou dos lábios de Lucas. A mesma frase de sempre, a mesma lorota sem sentido. Ele só queria ficar quieto no canto, focado na melhora de Ana. Ele não era a porra do paciente, não era ele quem precisava de qualquer assistência, mesmo assim, ficavam procurando motivos pra colocá-lo do outro lado da mesa, e isso era extremamente irritante.
– Ok, ok... Já sei como funciona. Muito bem, eu sou um cara todo fodido que viu o pai morrer aos oito anos, perdeu a esposa aos trinta, descobriu que vai ser pai, mas que o bebê pode não sobreviver, e a mãe da criança está numa maca, cheia de tubos e fios, sem previsão de acordar. Podemos pular logo para a parte que você me joga aquela conversa sobre culpabilidade, raiva guardada e todo o blá-blá-blá envolvido, e me deixa logo em paz?
– Eu só ia te dizer que você precisa dormir, Lucas. Apenas isso. – O psiquiatra o encarava com um misto de preocupação e compreensão. – E falar tudo isso em voz alta tem o seu valor. Obrigado por compartilhar.
Lucas sentiu-se subitamente esgotado, num nível difícil de classificar. Ele realmente não se lembrava de ter dormido mais do que duas ou três horas consecutivas em quase dois dias, e o nível de cansaço era tanto que ele não encontrava forças nem pra se sentir constrangido com a resposta do médico.
– Bom, levando em conta o fato de você ser um agente da lei, – o psiquiatra continuava falando enquanto anotava alguma coisa num receituário – eu pedi para a enfermeira conseguir uma cama para você, já que você não vai mesmo embora. Estou pedindo para ela lhe administrar um sedativo, peço que aceite, por favor. E que durma.
Lucas deixou o consultório e, rendido, fez tudo o que o médico pediu. A enfermeira o levou até uma sala de descanso dos residentes, onde ele se acomodou em uma das camas disponíveis. O sono o venceu em segundos, e ele finalmente dormiu de modo profundo, e dessa vez, sem sonhos.
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Quando a equipe de Alencar voltou à delegacia com Garcia sob custódia, já era madrugada. O ex-parceiro de Lucas estava escondido em um armazém em Jacareí, uma cidade localizada entre São Paulo e o Rio de Janeiro. A Polícia Militar o tinha surpreendido por acaso em meio a uma batida em busca de drogas. Aparentemente, ele estava escondido com algum traficante da região.
Garcia foi então colocado numa cela enquanto aguardava para prestar esclarecimentos junto à corregedoria. Na primeira hora da manhã, ele foi escoltado à sala de interrogatório onde começaram a colher o seu depoimento.
– Muito bem. Você é o elo que falta pra gente finalmente encerrar essa história. Quero terminar isso antes do jantar – um dos policiais declarou assim que Garcia foi acomodado à sua frente.
– Eu vou contar tudo. Mas só se Russo estiver aqui. Ele precisa entender por que eu fiz o que fiz.
– Você não está em posição de negociar, Garcia.
– Cara, pelo nosso tempo trabalhando junto, me faz esse favor...
– Pelo tempo trabalhando junto? Vá à merda! Você ferrou com o departamento todo!
– Cara, não vem com essa porque todo mundo se beneficiou com isso, você sabe muito bem.
O policial do outro lado da mesa se deteve, pensativo, obviamente conjecturando sobre como Garcia poderia vir a prejudicá-lo.
– Beleza. Tragam Russo para cá.
Do outro lado do espelho falso, Alencar trocou um olhar com Lívia, que sussurrou, desanimada.
– Isso vai dar merda...
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Lucas chegou à delegacia uma hora mais tarde. Estava ansioso. Se Garcia confessasse, eles avançariam rapidamente e o ex-agente seria beneficiado com a redução da pena por ter colaborado, mas se o depoimento não fosse conclusivo, a coisa ainda se arrastaria por mais tempo.
– Russo... – Garcia o cumprimentou assim que ele entrou na sala, mas não o olhou nos olhos.
– Hm.
O efeito residual do sedativo ainda corria nas veias de Lucas, e as seis horas de sono ininterrupto o mantinham sob controle. Não fosse por isso, Lucas provavelmente teria voado no pescoço do ex-parceiro.
– Cara, você precisa se sentar. Vou te contar a história toda. Depois de tudo o que aconteceu, acho que você merece finalmente entender o que houve com a Alice.
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