64 - Bem-aventurado
Na manhã do dia seguinte, Larissa viu Lucas irrompendo pela portaria do prédio da Donatore. Ela levou um susto, pois não o via desde o funeral de Alice. Interessada, acompanhou com o olhar quando ele passou direto sem cumprimentar ninguém, e sem ser anunciado, invadiu a sala de Ricardo batendo a porta atrás de si com tanta energia que alguns porta-retratos presos à divisória despencaram e se partiram no chão.
Assustada, Larissa foi até a máquina de café, preparou um mocaccino e voltou para a própria mesa. Trocou um olhar com Carla, que desenhou com a boca a frase "que porra é essa" sem emitir som.
Intrigada, Larissa tentava escutar o que os dois homens gritam um para o outro dentro da sala. Ela até pensou ter identificado algumas palavras soltas, como "laudo", "Alice" e "Ana" em meio a muitos palavrões. As vozes ficavam cada vez mais alteradas até que, preocupada, ela olhou para Carla, que apenas deu de ombros sem saber como proceder.
– Não acha melhor chamar o segurança? — Larissa questionou.
– Não sei... Eles não são, tipo, parentes...?
Larissa pensou que isso até fazia algum sentido. Em briga de família ninguém deveria se meter. Pablo observava preocupado os acontecimentos sem sair do computador, e Carla resolveu ir até o toalete a fim de se afastar da "cena do crime" caso fosse cobrada por ter permitido que Lucas entrasse sem ser anunciado, o que seria injusto, visto que ela nem tivera tempo de assimilar a presença dele.
Depois de algum tempo, Lucas saiu do mesmo jeito que entrou, como um tornado. Depois dele, Ricardo também saiu apressado sem comunicar a ninguém o próprio destino. Larissa soltou um suspiro.
– Caraca...
– Eles já foram? – Carla voltou do banheiro, afoita.
– Já... Infelizmente.
– Por que, infelizmente? – Pablo olhou para Larissa, curioso.
– Tinha me esquecido de como esse homem é lindo...– ela murmurou enquanto se abanava.
– Aff Larissa! Você só pensa merda!
– A vida é curta, bebê. Aliás, vocês têm notícias da Ana?
– Ela ligou ontem, disse que não vinha. – Carla respondeu – Hoje ela não telefonou, vai ver está doente, sei lá. Até tentei ligar para ela, mas ela não atendeu.
O trabalho seguiu normalmente durante o resto da manhã, e ao meio-dia, Carla, Larissa e Pablo saíram para almoçar juntos. Larissa e Pablo se serviam num buffet enquanto Carla atendia uma ligação no celular. Quando encerrou a chamada, ela se juntou aos demais.
– Era o Sérgio. – Carla afirmou como se alguém tivesse perguntado.
– Pelo jeito está ficando meio sério esse lance com o Sérgio, não? – Larissa deu um sorrisinho travesso para a amiga.
– Ele é um fofo. Aliás, ele disse que está uma loucura lá no hospital.
– É mesmo? O que aconteceu? – Pablo se interessou.
– Parece que teve um sequestro por lá. E tem mais, sabem quem ele viu no hospital ontem? A Ana!
– Sério? Será que está tudo bem com ela? – Larissa perguntou, visivelmente preocupada.
– O Sérgio não chegou a falar com ela. Disse que ela estava acompanhada por policiais.
Pablo se remexeu na cadeira, visivelmente tenso.
– Tudo bem, Pablo? Você está sabendo de alguma coisa? – Larissa questionou.
– Não estou sabendo de nada – ele respondeu um pouco rápido demais.
– Gente, o que será que o ex-marido da Alice veio fazer aqui? Nunca vi ele desse jeito antes... – Larissa tinha o olhar especulativo, girando o garfo entre os dedos enquanto a comida esfriava no prato.
– Ainda está nessa paixonite, mulher? – Pablo a criticou e Larissa mostrou o dedo do meio pra ele.
– Não sei, – Carla respondeu – fazia muito tempo que ele não aparecia, até quando a Alice ainda estava na área, era difícil vê-lo. O que isso tem a ver com o assunto?
– É que você mencionou policiais com a Ana, e me lembrei de que ele é policial. Na conversa aos gritos que Lucas e Ricardo tiveram de manhã, tive a impressão de ter ouvido o nome da Ana.
– Tem uns duzentos nomes que terminam com "ana" – Pablo comentou, distraído com a comida – Mariana, Morgana, Juliana, Poliana, Fabiana, Joana...
– Você esqueceu o principal, Larissa. – Carla interrompeu – Ana estava no hospital. Talvez os policiais sejam só um detalhe. Ela ligou ontem dizendo que não estava bem, hoje não apareceu e estava num hospital. Estou muito mais preocupada com ela do que com o que Lucas veio fazer na Donatore.
– Talvez as coisas estejam conectadas... Enfim, espero que esteja tudo bem com ela, porque tem uma coisa que... – Larissa fez uma pausa, arrependida de ter começado – quer saber? Deixa pra lá.
– Ah não, nem pensar! Pode parar com isso! Começou, agora fala! – Carla se aprumou, curiosa.
– É que... Eu acho que não deveria contar isso, é muito pessoal, mas não consigo calar a boca... Tô me mordendo de vontade de contar faz uma semana!
– Fala logo, cacete! – Agora era Pablo quem demonstrava interesse.
– Vocês prometem que não vão falar nada pra ninguém? Nem para ela? Fica só entre a gente, senão a Ana me mata!
– Para de enrolar e fala logo! – incentivou Carla.
– Então... a Ana está grávida.
Carla abriu a boca sem emitir som, e Pablo deu um grito pelos dois.
– O quê?
– Calma, Pablo! Sem alarde! – Larissa o segurou pelo braço – Qual é?
As meninas notaram como Pablo ficou pálido. Num rompante, ele se levantou bruscamente e derrubou a cadeira ao sair.
– Caraca... Eu sabia que ele tinha uma queda por ela, mas isso foi exagero, não? Eles não estão juntos ou algo do tipo, né? Espera, ele é o pai? – Carla, toda confusa, fazia uma pergunta atrás da outra.
– Não, não é o Pablo. É outro cara. – Larissa continuava encucada – Carla... Você acha que a Ana tem alguma coisa com o Lucas?
– Pfff.. de onde você tirou essa ideia, sua doida?
– Não sei... Uma sensação, não sei explicar. Eu o ouvi gritar o nome da Ana, tenho certeza disso, e Ana estava toda melindrada em revelar a identidade do tal ficante.
Carla meditou por um tempo, tamborilando as unhas de gel na mesa, até que respondeu.
– Não. Sem chance. Como eles teriam se conhecido? Eles não têm nada a ver um com o outro. Definitivamente não. Seria muuuuita coincidência.
– Se é que coincidências existem. – Larissa concluiu, pensativa.
≈
Lucas permaneceu dentro do carro, parado em frente à delegacia. Não conseguia entrar, simplesmente não podia estar no meio daquelas pessoas agora. A mente tumultuada buscava conexões, mas a angústia atrapalhava sua objetividade. A "reunião" com Ricardo não deu em nada, e o único resultado positivo foi que ninguém saiu sangrando da sala.
Ele fechou os olhos e encostou a cabeça no banco. Tinha passado a noite dentro do carro juntando as peças antes de enfrentar Ricardo logo cedo, por isso estava exausto, terrivelmente amedrontado e com as emoções em frangalhos. Em breve faria 24 horas que Ana estava desaparecida, ele já tinha ameaçado um monte de gente, mas nada o colocava mais perto de encontrá-la.
Alencar colocou equipes de busca atrás dela, inclusive militares vasculhando a praia, e tudo isso fez Lucas voltar àquela fatídica noite em que Alice desapareceu. Ele não podia nem pensar na possibilidade de reviver aquela tragédia, agora com Ana.
"Só pode ser algum tipo de piada do destino, eu devo ser um cara amaldiçoado... não é possível..."
Irado, Lucas esmurrou o volante, e quando o fez, a manga de sua camisa subiu um pouco, revelando a tatuagem da inscrição em torno do braço.
"Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça... "
Nesse exato instante, o telefone vibrou. Na pré-visualização de tela surgiu uma mensagem:
"Vá para a balsa agora, sozinho. Não fale com ninguém. Me espere na fila, eu acho você."
Lucas abriu rapidamente o app de mensagens para verificar o número do chamador, mas a mensagem já tinha desaparecido da lista, então deu a partida e seguiu em disparada pela avenida sem se preocupar se seria uma armadilha ou não.
Quando fez a curva e parou na fila de espera de embarque, alcançou a Glock que estava oculta debaixo do banco e a colocou na cintura, por baixo da camisa. Já não estava mais pensando direito, sentia cansaço, estresse, medo, raiva, culpa, todos os sentimentos juntos num vórtice prestes a sugá-lo. Alguns minutos depois, a porta do passageiro se abriu, e alguém se sentou ao seu lado.
– Você...?
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