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61 - Processo Retrógrado

Ninguém questionou quando dois policiais desceram com o corpo coberto em uma maca até o subsolo, nem averiguou a suposta remoção de um cadáver para perícia. Ana foi colocada em um veículo funerário e levada do hospital sem levantar suspeitas.

Não muito longe, algumas horas depois, um diálogo acalorado ocorria em um edifício público.

– É um tiro no pé! Você não sabe se aqueles documentos já foram propagados, se era para fazer merda, era melhor ter terminado o serviço e apagado logo o cara sem meter a menina nisso!

– Eu não podia arriscar, não sei o que aquela louca da Alice planejou, ela disse que tinha um contato na Polícia Federal, e garantiu que se alguma coisa acontecesse com o Russo, a bomba ia estourar. A gente precisa fazer parecer que ele mesmo cavou o problema. Primeiro a gente o isola, depois arma para ele parecer o culpado. Daí, simular que ele não aguentou o baque e fez uma viagem de barco sem volta é fácil. O cara tá instável, todo mundo na corregedoria sabe disso.

– Você deixou isso ir longe demais!

– Estava tudo sob controle, eu estava monitorando-o de perto, não sei de onde saiu aquele arquivo recheado de provas.

– Você subestimou o Russo. Ele é esperto, já deve ter chegado em você, se não chegou, é questão de tempo e você vai estar comprometido.

– Não tem como! Eu amarrei todas as pontas, impossível ele chegar em mim.

– Sei. E qual vai ser a história? Agora que todo mundo já está atrás dela? Não sei o que deu errado, mas eles já têm as filmagens dela entrando no hospital com os policiais! Como isso foi acontecer? A ideia era desovar eles no mar, mas agora não vai mais colar.

– Vamos colocar ela de volta no hospital então, dizer que tentou suicídio, sei lá, daí a gente termina o serviço de dentro. Ninguém viu ela sair, a gente pode botar ela dentro de algum armário e entupir ela de remédios. Falo pro nosso contato hackear as câmeras e daí é fácil...

– O mesmo que deixou as imagens vazarem? E outra, como a gente vai conseguir fazer isso com o Russo à espreita igual a um leopardo? Eu também trabalhei com o cara, sei que ele é liso. A gente vai precisar tirar ele de campo antes. Você devia ter pensado melhor, não vai dar pra evitar investigação em cima dessa história. Que merda! E outra, se aquele lunático que está com ela fizer merda, a perícia vai pegar tudo, aí fodeu!

– Eu vou avisar pra ele não colocar a mão nela.

– Nossa fonte conseguiu neutralizar as provas?

– Isso já tinha sido feito. Se tiver alguma cópia disso, vai desaparecer com eles, ninguém mais vai atrás disso. A gente vai ter que correr o risco.

– Certo, então a gente só precisa manter ela viva até conseguir forçar o Russo a agir. O resto vai ter que ser no improviso.

– Já mandei se afastar! – O segurança permanecia em pé entre Lucas e Ricardo, com a mão dentro do colete, numa postura ameaçadora.

– Calma, rapaz! Está tudo sob controle. Ele não vai fazer nada – Ricardo tranquilizou o segurança.

– Tem certeza, senhor?

– E o que você vai fazer, apontar uma arma para um policial?

Um lampejo de compreensão passou pelo rosto do homem, que se afastou. Quando o segurança deixou a sala, Lucas continuou a falar, mas agora de forma baixa e controlada.

– Quem eram aquelas três pessoas da festa? – Ele já sabia quem era Diego, estava averiguando até onde ia a ignorância ou hipocrisia de Ricardo.

– Eles são nossos contatos da Espanha. Um deles era muito amigo de Alice, o Diego, ele trabalha ajudando a gente a desembaralhar a documentação dos empreendimentos por lá; já o casal que te apresentei é do escritório da Nancy, que vai conduzir a construção dos hotéis na costa do Mediterrâneo.

– Você sabia o que esse Diego fazia com a Alice?

Ricardo ficou corado. Não era tão ignorante assim como tentava parecer.

– Ok, eu sei que eles eram amantes. Sei também que você era só uma peça a ser movida e que Alice manipulou muito bem. Não sou idiota, mas você foi. Você não pode acusar ninguém por ser esperto e saber jogar, certo? E você acha que sabe de tudo, mas não tem como provar nada, então por que veio até aqui revirar o passado ao invés de tocar a própria vida e deixar a gente em paz?

– Porque isso não acabou, mas você vai me ajudar a terminar. Ana está sob ameaça, eu não sei a extensão dos seus acordos, mas alguém está muito interessado em não chamar a atenção. E quanto às provas, você não poderia estar mais enganado...

– O que você quer de mim, porra? – Pressionado, Ricardo já demonstrava sinais de pânico.

– Quero que você resolva essa bagunça. Fale com quem tiver que falar, mas tira a gente desse rolo. Estão usando a Ana para me ameaçar? Pois bem, estou usando você para ameaçá-los. Ou você cuida para que nada aconteça com ela, ou a merda vai parar no ventilador. Eu estou só avisando!

E com isso, Lucas deixou o edifício. Precisava fazer uma última averiguação na marina antes que alguém percebesse que ele descobrira algo sobre a assinatura da noite do sumiço de Alice. Morato já tinha sido neutralizado muito provavelmente porque conseguiu chegar ao hacker, e era só uma questão de tempo até que voltassem repassando tudo e limpando os rastros.

Lucas chegou à marina e pediu para acessar as filmagens de segurança. O pessoal não chegou a solicitar um mandato, todos ali sabiam quem ele era, o que fazia e de quem ele era parente, então deram acesso para que ele vasculhasse tudo. O problema era que os arquivos estavam uma bagunça completa, os registros ficavam precariamente armazenados em mídias físicas não identificadas.

– Quem usa DVD hoje em dia? Que bosta! – Lucas resmungou enquanto revirava uma caixa empoeirada cheia de DVDs armazenados sem nenhum cuidado.

Depois de quase duas horas abrindo e fechando a gaveta de um computador extremamente lento nos fundos do pequeno escritório da marina, finalmente Lucas encontrou o registro do dia de 11 de maio. Correu a gravação até as 19h e comprovou a identidade do ocupante do barco.

Ele já tinha certeza, só precisava de mais uma comprovação, pois talvez a assinatura não fosse conclusiva como prova. De certa forma, ele ficou aliviado por tudo estar armazenado em mídias externas, apenas por isso, não conseguiram adulterar esse registro. Talvez o tenham feito no computador, mas não tinha como apagar algo que já fora removido da máquina.

Enquanto separava o DVD, sentiu uma pontada na cabeça; os olhos doíam e os ombros pareciam carregar toneladas. Ele se deu conta de que não comera nada desde a madrugada, mas o estômago não reagia com fome porque estava ocupado revirando-se descontrolado de ansiedade.

– Ei, Carlos. Posso ficar com isso? – Lucas perguntou assim que saiu do escritório com a mídia em mãos.

– Claro, chefia. O que precisar!

– Você pode me emprestar a folha de registro de uso da lancha?

O rapaz foi até um balcão e separou a folha para Lucas. O papel estava a tanto tempo na prancheta que tinha as bordas amareladas e amassadas. Outro processo retrógrado que ia ajudar muito como prova.

– O que está pegando? – Carlos perguntou, curioso.

– Você estava trabalhando na noite de 11 de maio?

Um lampejo de compreensão passou pelo rosto de Carlos quando reconheceu a data. Muitos que conviveram com Alice não podiam se esquecer daquela noite fatídica. O homem pensou por um instante antes de responder.

– Difícil... eu costumo sair às 18h, quem pega o turno da noite é o José. Aliás, ele deve estar para chegar, caso queira falar com ele.

Só então Lucas percebeu que já estava para anoitecer. Nem tinha notado o passar das horas, de tão focado que estava. Ele observou o céu amarelado escurecendo lentamente, e a cabeça doeu ainda mais. Foi até uma máquina de café no escritório e se serviu de uma boa dose enquanto aguardava, aproveitando para ingerir alguns biscoitos murchos que estavam abandonados nos potes por ali.

De repente, pensou em Ana e pegou o celular. Não havia mensagens na caixa de entrada, e ele percebeu que o aparelho estava sem sinal. Estranhou o fato, mas logo foi interrompido pela chegada de José e se esqueceu do assunto.

Lucas fez algumas perguntas ao homem, que não se lembrava de muita coisa, apenas que a própria Alice fora quem autorizara que o tal do "Alberto" usasse a lancha naquela noite.

– Ela ligou para você?

– Ligou. Deu o nome do homem e tudo.

– Você tem isso documentado?

– Não senhor. Na verdade, todo mundo conhecia a Alice, eu a conheço desde menina, então não vi problema em fazer o que ela estava pedindo.

Mais um processo retrógrado que impediu um registro adequado, mas nesse caso, Lucas não achou tão relevante, só comprovou que Alice estava mancomunada com o tal do "Alberto".

– Certo. Vocês têm algum telefone público por aqui?

– Nossa, amigo. Nem sei mais onde tem isso... Acho que na rua você encontra, aqui não.

Lucas se despediu e deixou a área da marina. Quando chegou à avenida, localizou um telefone público a uns 200 metros e parou o carro. Ele não queria correr o risco de usar o celular para falar qualquer assunto relevante, e o que tinha a revelar era sério demais e não podia ser rastreado de jeito nenhum. Discou um número direto da DP e rapidamente foi atendido.

– Delegacia da Polícia Civil de São Sebastião, boa noite.

– Boa noite, Carol? Aqui é o Russo. Me passa com o Alencar, urgente!

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