54 - Segredos
Lucas voltou para a própria casa na manhã seguinte e Ana continuou na pousada. Mesmo dizendo que estava fazendo trabalho burocrático, Lucas manteve uma escala de horários confusa, e ela passou a maior parte dos dias na pousada por conta disso. No final daquela semana, ela quase não o tinha visto direito.
Por esse motivo, ainda não tinha contado a ele sobre a gravidez. Ela também queria ter certeza antes de alarmá-lo com a notícia, e para isso, marcara uma consulta ginecológica.
No fundo, ela sabia que só estava adiando o inevitável. Não que fosse algo ruim, ela nem estava completamente infeliz com isso, apenas não se sentia preparada, por ser muito precoce, por serem muito jovens, por estarem numa relação tão recente...
Por que tudo tinha que ser tão acelerado entre eles?
Enquanto se trocava, mirou o próprio reflexo no espelho e não notou nada diferente. Os seios estavam um pouco mais avolumados, fora isso, nada de anormal, nenhum incômodo ou mudança. Talvez fosse muito cedo, quem dera fosse só um alarme falso.
O pensamento a aborreceu. Não queria rejeitar o que ainda não tinha coragem de nomear, mas ela não fazia ideia do que era essa coisa de maternidade. Como crescera sem a mãe, ter um filho nunca estivera na sua lista de coisas a fazer antes de morrer.
A gravidez não era o único assunto que ocupara sua mente durante aquela semana conturbada. Dias atrás, num almoço com Pablo, ele entregara a ela outro bilhete, cujo conteúdo a deixou muito mais preocupada.
"Deu merda em Santos. Não era pra fazer nada contra o cara, quem foi que resolveu mexer nesse vespeiro?"
"O lance da PF pode ser só ameaça vazia!"
"Mesmo assim, melhor garantir o trunfo com a garota da pousada."
Essa troca de mensagens era muito mais direta do que a anterior. Mencionava local, intenção, e até o envolvimento da Polícia Federal. A coisa foi tão assustadora que ela teve até medo de falar com Lucas a respeito.
Na sexta-feira, fim do expediente, Ana foi para o condomínio. Sabendo que Lucas só chegaria mais tarde, ela resolveu dar uma ajeitada na casa. Havia uma faxineira que passava por lá umas duas vezes por semana, Ana ainda não tinha cruzado com a mulher e desconfiava que Lucas agendava a limpeza quando Ana não estava na residência.
A casa estava sempre muito limpa, e Ana já tinha sacado que era uma obsessão de Lucas. Claro, afinal ele era todo limpinho e cheiroso, era surpreendente que ele não se irritasse com a bagunça que ela fazia. Ela não era de fazer sujeira, todavia era muito avoada e largava as coisas espalhadas sem a intenção de ser assim.
Para evitar aborrecê-lo, quando a coisa ficava meio exagerada, ela voltava pelos cômodos recolhendo os pertences que deixava espalhados pela casa e guardava tudo no devido lugar. Lucas era sistemático, as coisas tinham um lugar certo para estar, tudo perfeitamente organizado, o oposto de como ela estava acostumada.
Embora a residência fosse bastante espaçosa e contasse com um acabamento bem requintado, era relativamente pequena se comparada às outras mansões e casas do condomínio. Muito de Lucas se refletia no projeto, na simplicidade da construção, desenhada para ser muito mais funcional do que visual.
Além da suíte principal, a casa tinha mais três suítes, uma era equipada com móveis e servia como quarto de hóspedes; a outra suíte funcionava mais como quarto da bagunça, onde ficavam amontoados aparelhos de ginástica, malas de viagem e prateleiras entulhadas de tranqueiras sem valor. Era ali que Ana guardava qualquer coisa cujo local desconhecia, o que, nos últimos tempos, gerou um aumento considerável de itens nas prateleiras.
O terceiro dormitório era um escritório simples, mobiliado com uma mesa, estante de livros e uma cadeira giratória de couro que só não devia ser mais cara do que o iMac que ocupava a escrivaninha. Ana estava ali organizando o material do curso de Alemão, quando se deparou novamente com o cartão micro SD de Alice, abandonado de modo displicente próximo a um porta-clipes.
– Você vive aparecendo no meu caminho, não é? – Ana falou sozinha, com o cartão entre os dedos.
Ela olhou em volta e, como estava preocupada com o lance da mensagem interceptada por Pablo e muito encucada a respeito do cartão, acabou recolhendo o periférico e mandou uma mensagem para Pablo.
≈
Lucas estava ansioso pelo fim do turno. Já passava das nove da noite e ele não via a hora de chegar e ficar com Ana. Finalmente ele teria dois dias inteiros com ela, sem escalas no fim de semana.
Ele andava preocupado com o estado emocional dela. Na última semana ela pareceu acabrunhada, até mesmo distante, como se houvesse algo a incomodando. Lucas já tinha passado por isso com Alice; o afastamento, o isolamento, tudo era muito familiar a ele.
Ele não queria e não podia passar por isso de novo. Não com Ana. Preocupado, lembrou-se de Antônio comentando que ela se isolava para curar as próprias dores, talvez ela estivesse machucada com alguma coisa, vai ver, ele tinha feito algo ruim para ela.
Enfim, teriam o final de semana para conversar a respeito e ele planejara algo bacana para os próximos dias. Olhou o relógio, hora de voltar para casa. Desligou o PC, se despediu da equipe e saiu, ansioso.
≈
Ana encontrou Pablo numa lanchonete famosa próxima ao condomínio, ao lado da entrada para uma marina. Ela ficou surpresa com a rapidez com a qual o rapaz chegou ao ponto de encontro, como se já estivesse nas imediações.
– Você mora aqui perto? – Ela perguntou.
– Não, não! Esse bairro é de gente rica! Na verdade, eu estava na marina com uns amigos. Por que você marcou para esses lados?
Ana não respondeu. Às vezes ela se esquecia que as pessoas desconheciam esse lado da sua vida e ficava sem reação. Sem se deter muito no assunto, ela desconversou pedindo uma Coca-Cola a um garçom.
Enquanto esperava, especulou se seria correto o que estava prestes a fazer. Ela havia desenvolvido uma amizade muito íntima com Pablo nos últimos tempos, tanto com ele quanto com Larissa, mas com ele a cumplicidade era maior, talvez pela forma como ele a tratava, e porque era o único que parecia considerá-la madura o suficiente para saber dos assuntos obscuros que envolviam Ricardo e a Donatore; muito diferente de Lucas, que escondia tudo dela, e a escondia de todo mundo.
Sentindo de coração que podia confiar no amigo, finalmente criou coragem e passou o cartão micro SD por cima da mesa.
– Ana, o que é isso?
– Você consegue analisar o conteúdo desse cartão sem correr riscos?
– O que tem aí? – Ele parecia intrigado.
– Não sei bem, pode ser perigoso... Provavelmente é. Eu pensei em abrir em casa, mas fiquei com medo do lance de cair na rede e virar peixe, aquelas coisas que você disse...
– E fez bem. Olha, eu tenho um outro aparelho aqui, posso desconectar do 4G e jogar no meu armazenamento, olhar off line e depois deletar. Poderia também preparar uma hospedagem...
– Pablo, não precisa me explicar. Você consegue ou não?
– Consigo, posso copiar agora e analisar depois, com mais calma, daí te retorno a respeito na segunda-feira.
– Então faz isso! – Ela esperou que Pablo abrisse o aparelho e conectasse o dispositivo. Ele digitou algumas palavras, esperou um tempo, depois removeu o periférico e o devolveu a ela.
– Pronto, Ana. Eu vou olhar e, dependendo do que estiver aqui, eu boto fogo no aparelho.
Ana sorriu, depois olhou inquieta para o relógio de parede que já marcava 21h20. Sabia que precisava voltar antes que Lucas notasse sua ausência, então pegou o cartão, deu um beijo no rosto de Pablo e deixou o local apressadamente.
No trajeto entre a portaria e a residência, Ana começou a sentir um mal-estar repentino. Talvez pela ansiedade ou medo, ou até mesmo por seu estado gestante, uma tontura a acometeu. Ela caminhou lentamente, tentando conter o pulsar frenético do coração, e conseguiu se acalmar por alguns segundos, até que avistou Lucas no portão com um olhar melindrado. Foi o suficiente para seu coração quase sair pela boca.
– Onde você estava? – Ele tentou demonstrar naturalidade, sem muito sucesso. Ele nunca conseguia fingir para ela; era nítido que ele estava preocupado e ela se sentiu péssima por passar tanto tempo se esquivando dele.
– Fui dar uma volta.
– Sozinha? A essa hora da noite? – Lucas não queria parecer possessivo, mas foi o que pareceu.
– Sim, sozinha, e a essa hora da noite. Qual o problema?
Lucas sentiu o peito afundar. Sabia que ela estava mentindo de novo. Ana tentou passar por ele, mas ele a segurou pelo braço. Ela sentiu o calor do aperto como se estivesse lhe apertando o coração.
– Por que está mentindo para mim, Ana? O quê você anda escondendo?
– Lucas... Nós precisamos conversar, mas... Minha cabeça dói. Podemos entrar?
– Você saiu para dar uma volta, sozinha, à essa hora, com dor de cabeça?
– A cabeça começou a doer no caminho.
Mais mentiras.
Lucas inspecionou o rosto que tanto amava, inseguro, temeroso. Havia algo ali, ele não conseguia sacar. Ela viu a forma como ele apertava os olhos, como se tentasse enxergar dentro dela, e isso lhe causou uma angústia tão grande que ela se soltou e correu até o lavabo. Ele a seguiu e a surpreendeu vomitando no vaso sanitário.
Um misto de sentimentos controversos o envolveu. Se fosse só a enxaqueca, era certo que tudo voltaria a ficar bem, mas se não fosse... Ele ia ter que descobrir o que era.
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