49 - Transtorno de Adaptação
Lucas caminhava ao lado de Ana entre as gôndolas de uma drogaria enquanto procurava por lâminas de barbear. Precisava dar um jeito no visual, mas não encontrava suas coisas porque Ana resolvera "arrumar" o banheiro. Talvez fosse melhor ir a uma barbearia.
Ele também estava aborrecido porque tinham discutido pela manhã. Ana insistia em voltar a trabalhar na construtora, e ele não queria que ela voltasse à Donatore de jeito nenhum, mas se viu numa posição delicada. Se a apertasse demais, agiria como um ogro autoritário, e ele andava evitando dar munição para que Ana, com razão, o acusasse disso.
Fazia uma semana que Ana estava "hospedada" na casa de Lucas. Ela conversara com Ricardo logo após o feriado conturbado, e ele lhe dera a semana de folga para pensar. E ela o fizera, e decidira continuar trabalhando.
Por aqueles dias, Ana conheceu as várias faces de Lucas. O extremamente gentil, o preocupado, o assanhado, e o "pé-no-saco" também. O controlador nervoso imperou na maior parte do tempo, ainda que ele tivesse feito o possível para maquiar o temperamento irritadiço.
Enquanto esperava por Lucas, Ana foi até o balcão e solicitou ao atendente uma caixa de analgésicos, já que sua cabeça estava latejando por conta dos questionamentos dele. Ela se sentia cansada, mas estava firme na busca por estabilidade na relação, ainda que fosse extenuante.
Ela o via com a cara emburrada segurando dois modelos de lâminas de barbear tentando decidir qual levar. Ele cismou que ela sumira com o aparelho de barbear dele, e nem era verdade. Bom, talvez ela tivesse jogado no lixo sem querer, mas não ia dizer isso a ele.
Lucas foi para o caixa e Ana aproveitou para escolher mais algumas coisinhas para si, e sorriu pensando em seus mimos bagunçando o banheiro perfeitamente arrumado dele. Colocou numa cestinha um tônico facial, um protetor solar e um delineador, e aproveitou para pedir ao balconista um suplemento alimentar e uma cartela de contraceptivos. Depois de pagar por tudo, ela voltou para o carro onde Lucas já a aguardava irritado, pronto para continuar a discussão.
– Lucas, eu decidi esperar antes de tomar uma decisão. Preciso avaliar algumas coisas antes de mudar de emprego, acho que você deveria me apoiar nisso! – Ela ainda não tinha comentado com ele sobre a mensagem que Pablo interceptara. Ele andava tão nervoso que ela ficava esperando um momento oportuno que nunca chegava.
– Que coisas você ainda precisa avaliar? Você já sabe que Ricardo está envolvido em alguma falcatrua, e vai continuar trabalhando para ele? Se for por causa do dinheiro, eu tenho dinheiro!
– Lucas, que feio! Você está parecendo... – ela interrompeu o que ia dizer.
"Eu estou parecendo minha ex-mulher!" – ele completou em pensamento.
Que bela estabilidade.
– Olha, vamos ver como fica só essa semana. – Ana recomeçou, mais calma – eu enviei alguns currículos para algumas empresas e, até o fim da semana, decidimos juntos, pode ser? Se concentra no que você tem que fazer hoje. É importante, e você não pode ficar pensando nos meus problemas.
– Você é o meu problema! – ele resmungou, mas ela sabia que ele só estava sendo ranzinza.
– Foca em você, meu amor. Eu te amo. E lembra, não é para tirar a barba toda. Adoro quando você roça esses pelos e mim. – Ela deu um beijo rápido nele e saltou do veículo em frente à Donatore.
Ele ficou deliciosamente emputecido porque ela tinha esse poder de deixá-lo louco, irritado e excitado, tudo ao mesmo tempo. Resignado, ele manobrou o carro e pegou o trajeto de volta para o condomínio.
Finalmente Lucas ia retomar a terapia. Logo cedo ele tinha tentado um horário com o Psicólogo Policial e, para sua surpresa, havia uma vaga no mesmo dia à tarde por conta de uma desistência.
Tal decisão foi motivada por duas questões controversas e uma constatação. A primeira questão era que ele já estava no limite de dias afastado e precisava retornar ao trabalho; a segunda, que ele guardava em segredo, era que seria mais fácil descobrir onde estava a sujeira dentro da D.P. trabalhando do lado de dentro.
A constatação era que ele finalmente havia assumido que tinha um problema. Os surtos de raiva estavam cada vez mais frequentes, e a irritação gratuita dessa manhã era prova disso.
Tinha também o fato de que Ana havia dito que não ficaria mais em sua casa até que ele se tratasse. Mas ele não iria assumir ser essa a principal razão. Não para Ana.
Por mais que soubesse que seria bem mais fácil deixar o passado enterrado, ele não conseguia. Ia contra tudo o que ele era como pessoa, um investigador teimoso e ferrenho. Tinha, porém, prometido a si mesmo que não daria passos em falso nem tomaria decisões que pudessem prejudicar Ana ou qualquer outra pessoa.
≈
Ana chegou ao escritório e, para sua surpresa, Carla comunicou que Ricardo já a aguardava. Ela foi ao encontro dele imaginando que ele a questionaria por ter reatado com Lucas. Ainda que isso não tenha se tornado público, Ricardo tinha seus recursos e certamente já devia saber. Ela preparou sua máscara mais altiva e entrou na sala do patrão.
– Ana, que prazer rever você! – Ele a recebeu com um sorriso caloroso, o que a desconcertou. – Que bom que alguns dias bastaram para que você optasse por permanecer conosco. Gostaria de repassar com você o cronograma da semana. Estamos para receber os documentos de liberação do primeiro complexo imobiliário internacional e temos muito trabalho pela frente.
Ok, como se nada tivesse acontecido. Como se ela não tivesse sido humilhada, objetificada, subestimada e supostamente ameaçada num único dia, ele continuava com o comportamento de "eu sou foda e estou acima disso tudo". Se fosse para conseguir respostas, ela suportaria mais um pouco disso, com prazer.
Eles passaram a manhã em reunião. Na hora do almoço ela cruzou com Pablo, que lhe enviou um olhar enigmático. Queria contar alguma coisa, ela concluiu. Disfarçando, ela o convidou para almoçar, mas Larissa estava perto e se convidou também. Os três seguiram para um restaurante próximo ao escritório, e enquanto aguardavam os pedidos, Larissa comentou.
– Estou te achando muito melhor, Ana. Semana retrasada você parecia um fantasma, agora tem até uma corzinha nesse seu nariz arrebitado. Conta pra gente, o ricaço deu sinal de vida?
Ana olhou de soslaio para Pablo, que pareceu distraído, e decidiu que não havia por que ficar se escondendo o tempo todo, principalmente com pessoas tão legais como eles.
– Sim. Ele apareceu.
Larissa arregalou os olhos e abriu a boca. Como gostava de uma fofoca quentinha essa garota!
– Juraaaa? Me conta pelo amor de Deus! Como ele é? Quem ele é? Ele é gostoso? É bonito? É claro que deve ser! Qual é o tamanho do...
– Larissa! Menos detalhes, por favor. – Pablo interrompeu, ainda distraído com o celular.
– Para de ser chato, Pablo. Tá com ciúmes? Então amiga, me fala, vai?
Ana ficou apreensiva. Recordou de quando Lucas falou sobre não abrir a vida privada para terceiros e se viu numa situação delicada, principalmente porque sabia que Larissa o conhecia.
– É meio recente ainda, prefiro não dar muitos detalhes, mas, sim, ele é lindo, delicioso e... enfim, isso é tudo o que posso dizer.
– Só não me diga que ele é casado, por favor! – Larissa argumentou, um tanto quanto decepcionada.
– Não, não é. – "Mas já foi, e você não imagina com quem".
Eles almoçaram e, enquanto retornavam ao edifício, Pablo passou um bilhete entre os dedos para Ana, que o pegou e guardou na bolsa. Mais tarde, ao final do expediente, ela solicitou um transporte para levá-la de volta à pousada e se lembrou do papel, então o abriu para ler durante o trajeto.
"Houve mais alguns fragmentos de conversa mencionando a "garota da pousada", mas nada com muito sentido. Ainda não sei quem são as pessoas da conversa, mas aconteceu a partir de IPs privados que eu estou tentando rastrear através de uma varredura de portas. Aquele maldito hacker tem me dado muito trabalho ultimamente, mas quando souber algo mais eu te conto".
Ana achou engraçado ele falar com ela como se ela pudesse entender, mas ao menos a ideia geral ela compreendeu. Precisava conversar com Lucas a respeito, mas estava preocupada com a reação dele. Como se pudesse ler seus pensamentos, seu celular tocou e o nome de Lucas apareceu na tela.
– Você não vem para cá? – ele perguntou de modo ansioso, sem cumprimentar nem nada. Provavelmente estava rastreando-a pelo celular, o que a deixou prontamente aborrecida.
– Não, Lucas. Vou pra pousada. Meu pai ficou aborrecido por eu ter passado tantos dias fora. Combinei com ele de não ficar direto aí, pelo menos não em dias que falta alguém na pousada, como hoje. Eu esqueci de te avisar porque você estava brigando comigo. Desculpe.
Pelo silêncio do outro lado da linha, Ana concluiu que ele ficou aborrecido. Paciência, por mais que quisesse se mudar definitivamente para a casa dele, seria muito prematuro.
E imprudente, e empolgante, e maravilhosamente perfeito...
– Eu esperava que você viesse hoje... – Ele finalmente respondeu. Sua voz soou contida. Ana sentiu o peito apertar.
– Como foi a terapia?
– A gente conversa quando você tiver tempo para isso. Bom descanso, ou trabalho, ou o que resolver fazer.
E desligou. Polido, seco, distante. Ana se segurou para não pedir que o motorista desse meia volta. Ficou preocupada, mas aborrecida também. Ele não precisava ser tão... chato e infantil.
Talvez a terapia tivesse sido difícil e ele quisesse conversar. Ana ficou dividida, mas no fim decidiu ir para a pousada, já tinha se comprometido com Antônio e não começaria a pisar na bola, não tão logo.
≈
Lucas desligou o telefone, inquieto. Sim, ele queria conversar com ela. Pensando bem, não. Não queria conversar. O que ele queria era levar ela para a cama e foder ela até o amanhecer. Era isso o que queria. Agora estava ali, sozinho e puto porque tinham revirado suas emoções.
Quanto mais o tempo passava, mais ele começava a entender Alice e sua obsessão em mantê-lo por perto. Ele estava começando a agir exatamente da mesma maneira com Ana, e a última coisa que queria era sufocá-la.
A verdade era que ele precisava se acalmar. Estava muito instável. "Transtorno de Adaptação", segundo o Dr. Joaquim. Lucas odiava rótulos, mas já os estava colecionando, agora tinha dois deles para se orgulhar.
"Você sabe que está todo fodido, caso contrário não passaria tanto tempo querendo estrangular todo mundo."
Se quisesse superar e voltar a trabalhar, Lucas teria que se submeter ao tratamento. Apenas algumas sessões, orientou o Dr. Joaquim, ele só precisava levar a sério, responder às perguntas e em breve voltaria para o Departamento de Polícia para reassumir o controle da própria vida.
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