47 - Era uma Casa
Mais tarde, naquela mesma noite, Lucas aguardava no saguão da pousada enquanto Ana montava uma mochila para levá-la dali para a própria residência. Não se tratava de algo definitivo, ela não pretendia se mudar para a casa dele nem nada, apenas tinha decidido deixar alguns objetos pessoais por lá para facilitar quando quisessem passar mais tempo juntos, como agora.
Lucas ainda estava nervoso. Não trocaram nenhuma palavra coerente depois da discussão acalorada ocorrida mais cedo, e mesmo assim, quando ele decidiu que ia levá-la para a própria casa - sim, ele simplesmente decidiu – Ana aceitou sem discutir.
Ele imaginou que o inferno congelaria antes que Ana aceitasse qualquer coisa sem discutir. Estava preocupado com o silêncio dela, bem como com a falta de reação. Ele já tinha aceitado a merda que fizera, e tentara corrigir a situação, mas ela se retraíra e agora ele estava num merecido escuro. Mesmo assim, haviam chegado a um entendimento mútuo de que ficar separados não ia ajudar em nada.
Eles realmente precisavam conversar, e Lucas temia pelo desfecho dessa conversa.
Lucas estava distraído, tentando acompanhar Antônio numa conversa animada com Catarina, a auxiliar de limpeza. Antônio ria de maneira tão descontrolada que sua pele estava vermelha e os olhos lacrimosos. Ana chegou à recepção nesse exato momento, quando Lucas olhava de um para o outro como se tivesse acabado de surgir ali e não fizesse ideia do assunto da conversa.
Ana se perguntou o que poderia ser tão engraçado a ponto de fazer seu pai chorar de rir, mas não tão engraçado a ponto de furar a bolha onde Lucas se encontrava. Enquanto reunia coragem para seguir adiante com a ideia absurda de acompanhar Lucas até a própria casa, ficou por um punhado de tempo vendo o pai se divertir com a mulher.
Catarina trabalhava na pousada há mais de dez anos. Divorciada e mãe de dois filhos adultos, estava num momento de emancipação das obrigações familiares. Há uns dois meses o filho mais novo deixara a casa da mãe para viver com a namorada; o irmão mais velho já era casado, e como Catarina morava muito longe da pousada, ficava durante a semana num dos quartos que Antônio, amavelmente, disponibilizava a ela. Ana sabia que Catarina e Antônio se davam bem, mas não tinha reparado em como seu pai parecia mais radiante por tê-la por perto.
Por fim, Ana interrompeu o assunto, que parecia interessar apenas aos interlocutores, para se despedir, depois passou direto por Lucas para colocar a bolsa no carro. Lucas se deteve, sentindo a necessidade de dizer algo para Antônio, mas não conseguiu falar nada. Antônio o encarou e deu um sorriso de compreensão que dispensava qualquer palavra.
– Obrigado – Lucas enfim conseguiu dizer.
– Apenas cuide dela, ok?
Lucas entrou no carro e Ana achou interessante que Antônio ainda não tivesse se queixado por eles terem reatado. Sem uma palavra, Lucas deu a partida e os colocou a caminho do condomínio.
Quando chegaram, ele configurou a fechadura eletrônica para fazer a leitura facial de Ana, dando-lhe acesso à casa. Era para ter sido um momento significativo para ela, um passo importante para numa nova realidade de vida, ou seja, da vida dele.
Todavia, ela sabia que isso não era suficiente, e talvez nem carregasse tanto significado assim. Decidiu que não podia mais protelar a conversa que precisavam ter. Ela tinha que resolver isso antes de pôr os pés dentro da casa, antes que ele entendesse que ela tomara essa decisão.
Antes que ele acreditasse que tinha qualquer domínio sobre ela.
– Lucas, antes de entrar na casa, nós precisamos conversar.
Ele suspirou, desanimado. Ao menos ela estava ali, no espaço dele, e ele já tinha fechado o portão, então ela não ia sair correndo ou trancaria a porta na cara dele.
Ao menos era o que ele esperava.
– Ana... eu sei que falei merda, e já pedi desculpas.
– Lucas, você me acusou de coisas muito pesadas. Eu só estou tendo essa conversa com você porque, se você não tivesse assumido que se enganou, não teria me trazido para cá.
– Você já entendeu, então.
– A questão não é eu ter entendido que você se arrependeu. O que me assusta nisso tudo é a forma como você interpretou a coisa toda, o jeito que você ficou, a sua reação me assustou, de verdade! Eu acho que você não está bem, Lucas.
Ainda calado, ele acessou um aplicativo de entregas e pediu uma pizza; depois, caminhou com ela até uma namoradeira no jardim frontal da casa e ali, aguardaram a chegada do motoboy.
– Eu sei, Ana. Sei que vi coisas demais, reagi mal, mas você precisa buscar olhar pela minha perspectiva. Praticamente todo mundo com quem eu convivi nos últimos três anos mentiu para mim. Tudo o que eu pensava que estava vivendo não passava de uma farsa, e eu já tinha deixado de esperar algo das pessoas há um bom tempo. Então, de repente, você surgiu no meio da zona que era minha vida, como um raio de sol num quarto escuro, e me fez acreditar de novo em alguma coisa. Por isso eu fiquei fora de mim quando te vi numa conversa muito íntima e secreta com alguém do meio das pessoas que hoje são em quem eu menos confio.
– Eu não estava numa conversa "íntima" com ele, e não tinha segredo nenhum na situação. Se você estivesse comigo, teria participado do assunto. O Pablo é meu amigo e me encontrou apenas para conversar, nada mais.
– Por que aquele filhote de curto-circuito não tirava as "patas" de cima de você? Precisava ficar te tocando e te comendo com os olhos?
– Lucas, não foi bem assim. Ele me procurou para me alertar sobre algo, e acho que ele sabe sobre a gente.
– Claro que sabe. Aparentemente, todo mundo já sabe disso, antes mesmo de a gente saber.
– O que está insinuando de novo, Lucas?
– Não se preocupe, Ana. Já saquei que você não estava envolvida nas mentiras deles, e já estou puto o suficiente comigo mesmo por ter avultado essa possibilidade. É que não me surpreende eles já terem chegado em você antes mesmo de o nosso lance ser algo oficial. Eles vivem de antecipar meus passos, e eu estou cansado disso. Parece que ainda vivo sob o domínio da Alice, deles todos, e eu preciso dar um basta nisso, caso contrário, vou ficar louco. Eu já estou ficando louco.
Lucas mantinha a cabeça abaixada entre as mãos que, para variar, esfregavam o couro cabeludo deixando o cabelo todo desalinhado. Ana não se conteve e entrelaçou os dedos nos dele. No gesto ela tentava transmitir que tudo ficaria bem, que ela estava ali agora e que ele não precisava caminhar a passos largos para a insanidade.
– Não vou deixar você se perder, Lucas. Eu te amo, estou aqui agora e não vou a lugar algum, ok?
Lucas relaxou, agradecido por ela de fato estar ali. Só isso já era suficiente para trazê-lo de volta a um estado mais próximo da normalidade.
– Está tudo bem, então? – ele perguntou, inseguro.
– Por enquanto, está sim. Vamos ter que trabalhar nesse seu ciúme exagerado e no controle da sua raiva, e ainda tem mais coisas que precisamos conversar, mas podemos deixar para depois do jantar. Estou com muita fome.
Aos poucos ele foi se soltando, e enquanto trocavam carícias no jardim, conversaram sobre seu passado. Lucas falou um pouco sobre os irmãos e sobrinhos, mas não entrou muito na história da morte do pai. Ana contou histórias da adolescência, algumas bem cabeludas que fizeram Lucas ficar cabreiro.
– E você acha que pode me contar essas coisas sem esperar nenhuma reação? – ele perguntou enquanto aprisionava Ana em seu colo.
– Lucas, para! – Ela riu alto tentando fugir, mas ele a apertou ainda mais, possessivo.
– Não é uma boa forma de me ajudar a lidar com meus ciúmes jogando gasolina no fogo desse jeito! – Ele apontou, fazendo cócegas nela.
– Você quer mesmo voltar a falar de ciúmes?
Lucas ficou subitamente sem graça e a soltou.
– Você disse que ia tentar...
– Eu estar aqui é eu tentando, Lucas. Não precisa fazer drama. Eu tenho muito mais motivos do que você para ter ciúmes. Olha onde eu estou e com quem eu estou!
Não foi intenção de Ana ser provocativa. Ela falou de modo trivial, quase inocente, mas foi como uma pedrada na vitrine, e de repente, ali estava novamente entre eles o fantasma de Alice. Lucas suspirou e se levantou.
– Ana...
– Me desculpa, Lucas. Eu nunca sei o que posso falar.
Nesse momento a pizza chegou, e eles começaram a comer ali mesmo no jardim, e em silêncio. Como sempre, Ana foi a primeira a quebrá-lo.
– Lucas... eu não quero que isso vire um elefante numa loja de porcelanas. Me ajude a entender os seus limites, para que eu entenda os meus.
Lucas respirou fundo. Por que era tão difícil falar disso?
– Ana... Está tudo bem. Eu só preciso me acostumar com tudo isso aqui.
– Acostumar-se com o quê exatamente, Lucas?
– Eu tenho certeza absoluta de que o que temos é real, e eu quero ficar com você mais do que tudo, mas às vezes é difícil quando... Estamos aqui, nesta casa, porque tudo aqui foi... – ele fez uma pausa, pensando em como continuar – Alice adquiriu tudo o que tem aqui, eu não participei de nada, quando cheguei estava tudo pronto e montado, então essa casa a representa mais do que qualquer coisa.
– Lucas, poderíamos ter ficado na pousada. Você insistiu em vir para cá.
– Eu sei, Ana. Mas é complicado. Eu apenas queria apagar o passado, e te coloquei aqui dentro porque você é a minha escolha, e eu preciso aprender a lidar com isso.
Ana absorveu as palavras com cautela. Sentia que estava caminhando num terreno escorregadio.
– Você está me falando isso por causa de hoje de manhã? Você sentiu falta dela, é isso?
– Não! Quero dizer... não. Não foi falta dela. Ou talvez tenha sido, eu não sei... Que merda!
– Lucas, mantenha a calma. Pode falar comigo.
– Acho que foi porque eu não tinha dormido naquele quarto desde...
– Desde quando ela morreu.
Ele suspirou, envergonhado. Ana o segurou pelo maxilar e o fez olhar para ela.
– Eu não queria ter lembrado, Ana. Mas acordar ali, sem você do meu lado, me fez voltar no tempo. E eu odiei a experiência. Eu odeio o que essa casa me faz lembrar.
Ana sentiu um desânimo profundo. Não sabia nem por onde começar a ajudá-lo. Ela não tinha o direito de exigir muito, mas também não queria ser passiva demais, como fora a vida inteira.
– Já pensou em vender aqui e ir para outro lugar? – Perguntou, apreensiva.
– Não sei, Ana. Eu nunca me importei muito com isso, sabe? Uma casa é só uma casa, e essa é muito melhor do que qualquer lugar onde eu tenha vivido a minha vida inteira.
– Se é só uma casa, poderia ser outra casa, tão boa quanto.
– Mas essa é minha. Pode parecer que, como Alice era rica, ela era dona de tudo, mas nem tudo veio dela. Quando estávamos para nos casar, ela escolheu outro lugar, mas eu já tinha meus investimentos de anos guardando dinheiro. Meu pai era servidor público e, quando morreu, deixou um bom dinheiro para a família através do seguro de vida. Minha mãe dividiu o valor por igual entre os quatro irmãos, e eu não gastei um centavo do meu montante. Esse dinheiro mais tudo o que sobrava do meu salário, eu usei para adquirir esse terreno e financiar a obra. Alice cuidou do projeto e da decoração. Claro que tudo foi bem facilitado já que a área pertencia à Donatore, mas eu fiz questão de pagar e ter a escritura no meu nome. Então, a casa é minha, é a única parte do meu casamento que pertencia só a mim. O problema é que, embora tudo isso aqui me pertença, não me representa.
Lucas suspirou e ficou com o olhar solto em algum ponto imaginário, e Ana percebeu que ele estava perdido em lembranças. Ela não gostava quando ele fazia isso, pois era como se ele estivesse adentrando em uma sala onde ela não podia entrar, e às vezes, quando ele saía de lá, ficava impossível lidar com ele.
– Eu acho que as coisas, objetos, posses, nada disso deveria interferir no que a gente sente. – Ana afirmou, tentando trazê-lo de volta.
– Tem razão, Ana. Tudo isso aqui é utilitário, eu só não contava que essas coisas pudessem guardar memórias, e memórias às vezes machucam.
– Você preferia que ela estivesse aqui? – Ana conteve a vontade de chorar.
Lucas cobriu a mão dela com a sua, notando agora como era pequena sob sua palma. Um tremor revelava o quanto ela estava sensível com tudo o que ele estava contando. Ele escolheu com cuidado as próximas palavras.
– Não, Ana. Você não tem ideia do quanto está enganada.
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