39 - Mármore Frio
Ana caminhava ao lado de Lucas, segurando-lhe firmemente a mão enquanto avançavam pelas alamedas arborizadas, sombreadas por grandes esculturas de anjos e santos que, como sentinelas, guardavam as campas dos que ali descansavam.
Mais cedo, Lucas tinha pedido que Ana o acompanhasse em uma visita ao túmulo da sua falecida esposa. Num primeiro momento Ana teve medo, mas entendeu que ele precisava daquilo. Sabia que Lucas ainda não tinha dado um desfecho ao ocorrido, e se sentiu privilegiada em poder estar presente quando ele, enfim, decidisse deixar o passado descansar em paz.
Lucas avançava a passos incertos entre os túmulos que, como páginas de uma história, contavam segredos entrelaçados no tempo através dos nomes gravados no mármore frio. Ele sabia que uma história só acabava quando ninguém mais pudesse contá-la, e ele precisava encerrar esse capítulo para que essa narrativa pudesse enfim ser propagada.
Quando chegaram à campa onde repousavam os restos mortais de Alice, Lucas tirou do bolso de trás da calça uma carta e a entregou a Ana. Sem saber do que se tratava, ela pegou o papel com o nome dele, desdobrou começou a leitura em silêncio.
À medida que ela ia compreendendo a história, seu coração ia se apertando com a nostalgia dos sonhos nunca realizados, dos desejos nunca atendidos e dos amores nunca correspondidos.
"Querido Lucas,
Quando você ler esta carta, espero que eu tenha conseguido resolver as coisas e esteja voltando para você. Antes de me julgar, leia até o fim e acredite no que vou te contar.
Nosso casamento sempre foi uma farsa. Não se ofenda com isso, você vai ver que tudo mudou depois de um tempo, mas, quando te conheci, não foi por acaso. Eu sabia quem você era e, antes de entrar na delegacia com meu pai naquele dia, já estava tudo planejado. Eu precisava te conquistar e tirar você do caminho porque você era o "cara certinho", uma ameaça aos negócios.
No início, era só pra gente começar a sair e ficar juntos o tempo suficiente até que o caso fosse transferido para outras pessoas, mas quanto mais eu ficava com você, mais você me fascinava. Seu carinho, cuidado e atenção me pegaram de surpresa, eu não esperava que um homem pudesse me tratar assim. Você foi me conquistando pouco a pouco e, quando eu percebi, estava apaixonada por você.
O problema é que eu tenho uma história, não muito bonita, que começou quando eu concluí minha formação na Espanha, onde conheci o Diego. Eu costumava passar longas temporadas com Nancy, enquanto mantinha um relacionamento intenso com ele.
Com o passar do tempo, Diego se tornou uma pessoa possessiva e agressiva. Através dele eu descobri várias falcatruas da empresa e crimes que estavam sendo cometidos, alguns inclusive sem o conhecimento do meu pai. Quando vi onde estava me metendo, tentei me libertar dele, mas eu já sabia muitas coisas e passei a ser uma ameaça, então o único jeito de me manter segura era entrando no jogo com eles.
Tudo caminhava como eles esperavam até a troca do governo, quando algumas peças do tabuleiro foram movidas e pessoas que eram importantes para o andamento das operações perderam a influência. Foi quando a equipe que investigava a Donatore mudou e nós não pudemos mais controlar as informações e manter tudo debaixo do pano.
Foi então que eu virei a peça da vez, para forçar a formação de outra equipe, uma que pudesse ser manipulada e comprada. Por você ser investigador chefe recém transferido para o caso, daria muito na cara simplesmente se livrarem de você, precisavam de algo convincente. Todo o plano para te tirar da jogada foi ideia do Diego.
Quando você foi afastado do caso, era para eu terminar com você, mas não consegui. Diego é agressivo de todas as formas que você pode imaginar, e muito inteligente, não demorou para ele ligar os pontos e encontrar uma forma de continuar me manipulando, então me deu corda e me deixou seguir com a nossa relação até nos casarmos.
Foi aí que começaram as ameaças e eu entrei em pânico. Passaram a usar você para me chantagear e me manter de boca fechada, diziam que era muito fácil você virar estatística, só mais uma vítima de bala perdida, então eu não queria que você saísse de perto de mim e ficava paranoica pensando que você não ia voltar pra casa. Daí fiquei doente, e o resto você já sabe.
Mas aí eu pensei num plano. Consegui uma ajuda dentro da polícia que vai me tirar de cena por um tempo e, enquanto isso, eles vão usar as provas que reuni para acusar as pessoas certas. Eu vou desaparecer, mas depois vou voltar para você, quando tanto Diego quanto Nancy estiverem presos. Eu acho que meu pai vai se safar com uma multa milionária, mas vai ficar bem.
Lucas, eu deixei essa carta porque todos os nossos canais de comunicação são monitorados. Nossa casa tem câmeras escondidas, e tem uma pessoa chave que consegue rastrear tudo o que a gente faz, um hacker; ele costuma apagar os rastros e manipular informações. Eu não podia te mandar uma mensagem ou e-mail, e muito menos te contar o que ia acontecer porque para o plano dar certo, era imprescindível que você realmente acreditasse que eu morri no mar. Você não podia também descobrir que estou viva cedo demais, por isso também deixei esse relato num lugar de difícil acesso, para que lhe sirva de consolo enquanto eu não voltar.
Eu torço para que você encontre a carta no momento certo. Eu sabia que você a encontraria, pois é a pessoa mais inteligente e observadora que já conheci, e me perdoe pela forma como tentei avisar você, forçando-o a ver o que Diego faz comigo, a forma como ele me domina. Entenda que eu não posso enfrentá-lo, não estando aqui com você. Eu fiz isso para te proteger, espero que você me entenda e me perdoe um dia.
Quando eu voltar, eu vou te contar tudo com mais detalhes. Se eu tiver a sorte de você encontrar essa carta antes disso, quero te pedir para não se meter nessa história. Finja que eu morri e tudo vai ficar bem. Eu vou deixar uma cópia de vários documentos que comprovam a minha versão dos fatos, só para o caso de alguma coisa dar errado. Não use isso, guarde com você até a minha volta.
Eu te amo e sempre vou te amar.
Até breve.
Alice."
Ana ficou em silêncio porque estava absolutamente incapacitada de falar. Ao lado, Lucas permanecia com os olhos fixos no jazigo. Um longo tempo se passou enquanto eles ouviam o sussurro do vento, triste e sereno, até que Lucas finalmente se pronunciou. Sua voz soou rouca e entrecortada.
– Ela ficou doente por minha causa. Ela estava marcada, condenada muito antes de partir, e eu não percebi. No fim, o que ela fez foi para que tivéssemos uma chance, mas era tarde demais.
Uma lágrima escapou dos olhos dele e se perdeu na barba. Ana notou o quanto ele continuava tentando reprimir a própria dor.
– Você não teve culpa, Lucas...
– Não importa. Eu trouxe você aqui, Ana, para que Alice saiba que, mesmo ela tendo me usado, me manipulado e mentido tanto, eu a respeitei e honrei, e que nossa história nunca poderá ser substituída por outra. Ela permanecerá aqui, acalentada, eternizada nas minhas lembranças, para sempre – e se virou para Ana com os olhos marejados – e para que você, Ana, saiba que eu estou dando um passo na direção de um novo tempo, que se encerra aqui e começa quando formos embora. Esse novo tempo eu quero viver com você, só com você, Ana.
Então ele recuperou a carta das mãos de Ana, acendeu uma vela no candelabro da campa e a queimou em sua chama.
– Você não precisa guardar isso? Não seria uma evidência ou algo do tipo?
Ele não respondeu. Não precisava guardar um pedaço de papel sendo que cada palavra daquela mensagem estaria para sempre gravada em sua prateleira das memórias. Enquanto o vento levava as cinzas em delicados rodopios, ele professou suas últimas palavras:
– Alice, eu realmente amei você do fundo do meu coração. Sei que não fui o melhor marido, nem o melhor amigo, mas eu estava lá, desejando e esperando que dias melhores enfim chegassem para nós. Infelizmente, eles não chegaram, e eu lamento o que não pudemos viver. Eu te perdoo pelo que fez, e se fosse possível, eu apagaria as suas dores, medos e inseguranças e jamais permitiria que você fosse ameaçada ou molestada. Me perdoe por não saber discernir seus sentimentos.
Ele interrompeu o discurso quando a voz quebrou, então engoliu o bolo formado em sua garganta, segurou o braço de Ana e a trouxe para perto de si. Ela se apoiou nele enquanto ele continuava a falar:
– Eu gostaria que você conhecesse a Ana. Eu a trouxe aqui para dizer que ela não é sua substituta nem nunca será, mas é um novo começo para mim. Provavelmente você não teria gostado dela – ele deu um leve sorriso, que não passava nenhuma alegria – você teria dito que ela não faz o meu tipo, mas isso é bom, porque nunca haverá uma forma de comparar vocês duas. Alice, o seu lugar sempre estará guardado no meu coração. Descanse em paz, querida esposa.
Com isso, Ana o abraçou, e ele finalmente deu vazão às lágrimas guardadas há mais de seis meses. Ela buscou envolvê-lo com todo o seu amor enquanto ele soluçava em seu ombro, e compreendeu que tudo aquilo não se tratava de si, nem mesmo de Alice, mas se tratava dele. Ele precisava se perdoar e se permitir seguir em frente.
E quanto a si, precisava se permitir acreditar que não era uma substituta, apenas o começo de uma nova história.
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