38 - Cicatrizes
Lucas acordou com um fio de luz que o atingia diretamente no rosto. O sol estava nascendo e se projetava pelo quarto através de uma pequena fresta na persiana blackout. Sentiu um formigamento na mão e só então percebeu que estava com o braço preso debaixo do corpo de Ana, que dormia profundamente.
Ele não sabia que horas eram, mas ainda era cedo. Tentou se manter quieto para não acordá-la, mas a posição incômoda o obrigou a se ajeitar, então ela acordou, olhou para ele, e sorriu.
– Bom dia, playboy... – ela bem que achou que estava no meio do melhor sonho de todos, até acordar nua enroscada no corpo dele.
– Você sabe que isso é jogo baixo – ele sussurrou, como sempre, enfeitiçado com o sorriso.
– O quê? – ela indagou de modo travesso – você quer que eu jogue baixo? –Ela se inclinou e apoiou o queixo em seu ventre. Seu corpo reagiu instantaneamente.
– Você tem as cartas não mão... o que pretende fazer comigo?
– Ah, você prefere mais embaixo? – ela pressionou os lábios contra sua virilha.
– Ana... – ele recostou no travesseiro e fechou os olhos, antecipando o prazer do toque dos lábios dela, mas ela parou de se mover. Frustrado com a demora, ele ergueu a cabeça para entender por que ela não continuava a brincadeira, e a pegou olhando fixamente para sua coxa.
– Ei! Não tão embaixo assim! – Ele protestou.
Ignorando-o por um momento, ela levou o dedo até um ponto no meio de sua coxa e tocou uma cicatriz que havia ali.
– Isso aqui é uma marca de bala?
Ok, tinham perdido o momento. Ele suspirou e se sentou na cama. Ambos estavam nus, mas ainda tinha muita coisa a ser desnudada entre eles.
– Sim. Essa foi logo no começo. Eu tinha uns vinte e poucos anos, numa operação num ponto de tráfico.
– Quantas vezes você foi baleado? – ela perguntou de modo aflito.
– Estive em vários tiroteios, mas ao todo, só fui atingido três vezes. No mesmo dia que levei esse tiro na perna, também fui atingido de raspão na cabeça. – Ele levantou parte do cabelo e revelou uma falha logo acima da orelha. Ana estremeceu e acompanhou a cicatriz com a ponta do dedo, distribuindo arrepios pelo corpo de Lucas.
– E foi muito grave? – ela tinha os olhos vidrados. Ele achou fofa a reação dela, tão inocente, quase pueril.
– Um tiro geralmente é uma lesão grave. Parece pequeno por fora, mas dependendo de onde pega, pode ser devastador. Nesse dia eu tive sorte, o projétil que atingiu a perna passou ao lado da artéria femoral e saiu do outro lado – ele ergueu a perna e mostrou outra lesão um pouco maior na parte de trás da coxa, entregando a Ana uma bela visão do resto do corpo.
– Wow... – ela sussurrou, um pouco corada e ele continuou o relato, se divertindo com a situação.
– Se tivesse pegado um pouco mais para a esquerda, eu não estaria aqui. Já o tiro de raspão na cabeça só sangrou muito e deixou uma cicatriz, nada demais.
– Isso é muito assustador para mim, Lucas – pela primeira vez ela se dava conta de que ele exercia uma função perigosa.
– Agora, esse aqui... – ele alcançou a marca abaixo do ombro esquerdo cuja cicatriz Ana já tinha visto antes – foi bem complicado. Eu estava realizando uma batida policial e fui alvejado à queima roupa, pelas costas. O projétil ficou alojado perto do coração e eu precisei passar por uma cirurgia arriscada para removê-lo. Depois, fiquei quase seis meses fazendo fisioterapia para recuperar totalmente o movimento do braço porque um tendão importante acabou sendo atingido também.
– Lucas... – Ana olhou para ele, apavorada. Lucas segurou suas mãos e deu um beijo na ponta dos dedos trêmulos.
– Calma, não fica preocupada com isso – talvez ele tivesse sido detalhista demais – é muito mais difícil de acontecer com um policial civil. Nosso trabalho é mais burocrático do que tático – não era bem assim, mas ele não queria preocupá-la ainda mais.
– Eu não consigo te imaginar assim, correndo perigo, usando farda, distintivo e tal... Você não devia andar fardado?
– Não necessariamente. Depende do que estou investigando ou no que estou trabalhando. Quando estou em alguma operação ou numa ofensiva, então sim. No momento eu nem estou autorizado a trabalhar, então não posso usar a farda. Para falar a verdade, a maior parte do trabalho de um investigador é feito de forma velada, à paisana.
– Quando você pretende voltar?
– O quanto antes – ele deu um longo suspiro – já devia ter voltado há um tempo, mas...
Óbvio que ele não terminou a frase. Ela tinha até se esquecido dessa mania dele.
Subitamente agitada, Ana alongou os braços acima da cabeça e se preparava sair da cama quando Lucas a enlaçou pela cintura. Com carinho, ele ergueu seus longos cabelos e depositou um beijo delicado em sua nuca, fazendo-a arfar. Correu com a ponta dos dedos pela cervical e desceu ao longo da espinha, depois espalmou sua cintura e os músculos intercostais. O toque revelou a pele enxuta e as costelas aparentes.
– Nunca mais faça isso, Ana – ele murmurou com uma expressão sombria.
– Fazer o quê?
– Você precisa comer direito. Eu me assustei quando percebi o quanto você emagreceu. Não faça mais isso, por favor.
– Ah, você se assustou? Coitadinho! E o susto que eu levei quando você surgiu do nada com aquela pose de policial fodão: "entra na porra do carro..." – ela fez uma voz grossa, imitando-o.
– É sério, Ana.
Ana baixou a cabeça.
– Já você, engordou um pouco. Está todo fofucho – ela caçoou, beliscando os gomos do tão amado tanquinho dele. De gordura ele não tinha nada.
– Eu... – ele franziu a testa quando viu que ela estava rindo – você não me leva a sério mesmo, não é?
Gargalhando, ela se achegou mais a ele e pousou as duas mãos em seu peito. Ele agarrou seu punho, o levou à boca e mordiscou a tatuagem dos pássaros. Ela arfou quando ele desceu com a língua pelo antebraço, cruzou a axila e chegou à ponta do seio, capturando o piercing e puxando-o de leve como se a estivesse punindo.
– Nunca fui muito chegado a transformações corporais, mas as suas mudaram todo meu conceito a respeito.
– Despertei sua nova tara! – ela escapou da carícia e apoiou o queixo no peito dele, ainda arfante. Ela adorava provocá-lo, porque quando ele saia do sério, tudo ficava mais interessante.
– De fato, mas acho que só funciona com você – ele a afastou e recapturou a auréola – Por que aqui? Não que eu esteja reclamando, seus peitos são uma verdadeira obra de arte!
– Porque queria uma desculpa para não usar sutiã. Odeio sutiã.
Ele já tinha reparado. Nunca viu um sutiã sequer nela. Ela devia odiar calcinhas também.
– Definitivamente, você não precisa deles.
– Já que você é todo limpinho e não gosta dessas coisas, por que tem uma tatuagem no braço?
Ele sorriu amplamente, e Ana amoleceu como geleia com a imagem.
– Porque perdi uma aposta pro idiota do meu irmão, o Leo. Ele é todo tatuado. Pros meus sobrinhos, ele é o exemplo de masculinidade. Ainda bem que eu ando armado, caso contrário, seria a piada da família.
Ela deu uma gargalhada. Para ela, não tinha absolutamente nada nele que não fosse total "macho-alfa". Animada com o momento, ela o contornou e colocou o dedo na cicatriz em seu ombro.
– Esse tiro que você levou no ombro... é por isso que a sua mão treme de vez em quando? – Ana sabia que não, porque já tinha reparado que o tremor só surgia em momentos de estresse, e era do outro lado. Mesmo assim ela resolveu jogar a isca, talvez ele se abrisse a respeito.
Lucas se deu conta, nesse momento, de que nunca conversara sobre essas coisas com ninguém. Sua família conhecia algumas poucas histórias, mas ele não conversava sobre si ou sobre seu trabalho, pois não se sentia confortável contando suas experiências. Alice nunca tinha perguntado nada sobre as cicatrizes nem demonstrado qualquer interesse no seu dia a dia de policial. Agora ele entendia o porquê.
Lembrar de Alice o fez se lembrar da carta, e o desgosto desceu sobre ele como uma nuvem negra. Ana percebeu a mudança no mesmo instante e imaginou que era por causa da pergunta sobre o tremor na mão.
– Lucas, desculpa por perguntar...
– Ana, – ele a olhou com pesar – temos tanta coisa para conversar... Vamos tentar aproveitar esse tempo para colocar as coisas nos eixos. Eu vou tomar uma ducha pois preciso resolver o que vim fazer na capital. Tenho uma camiseta limpa que posso te emprestar. Vem comigo?
Ela o beijou com paixão, depois pegou sua mão e entraram juntos no banho. Debaixo do chuveiro, assim como ele fez com as próprias cicatrizes, ela contou a história das tatuagens; os pássaros de quando fez dezoito anos achando que tinha atingido o marco da liberdade; a sereia que afirmava sua feminilidade e seu prazer em ser mulher; a triquetra que representava sua crença em Deus, e a última tatuagem feita há apenas seis meses, a frase em latim: "Veritas lux mea" (a verdade é minha luz).
Ele era marcado por cicatrizes, ela por arte, e eles se complementavam de forma perfeita. Sob o vapor que nublava as folhas vítreas do box, eles fizeram amor mais uma vez, deixando para mais tarde todas as decisões que ainda precisavam tomar.
Depois do banho, enquanto se trocavam, Ana se lembrou de perguntar:
–O que quer dizer a sua tatuagem?
– É um verso da Bíblia escrito em grego. Ele diz: "Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão satisfeitos".
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