36 - Benefício da Dúvida
Ana terminava de repassar a contabilidade com Antônio quando dois casais entraram pelas portas da pousada. Contrariando a previsão do tempo, o sábado amanheceu ensolarado e, depois de tantos dias chuvosos, o clima atraiu turistas das imediações para aproveitar o final de semana prolongado por conta do feriado da Proclamação da República.
Ana recebeu os hóspedes e os direcionou aos seus aposentos, levando um tempo maior para apresentar a suíte 7 a um dos casais. Ocasionalmente, ela retornava àquele quarto apenas para se torturar. Foi naquela cama que ela viu Lucas sem roupa, onde ela o levou à loucura com a boca, onde se entregaram um ao outro e onde se viu apaixonada pela primeira vez.
Ela deixou o casal no quarto e desceu as escadas, desanimada. Reviver os momentos compartilhados ali não ajudava em nada, só retardava a sua recuperação. Ela sabia que precisava superar essa história o quanto antes, caso contrário, ia acabar sumindo de tanto emagrecer.
Depois do almoço quase intocado, ela se preparou para a visita à residência de Ricardo. Como não fazia ideia de como era Nancy Leviv, optou por um conjunto formal, prendeu os cabelos em um coque alto e calçou uma Ankle Boot, na esperança de que seu visual não ofendesse os costumes europeus da diretora.
Agora, só restava a inquietação pelo encontro, afinal, tudo acerca de Ricardo ainda era nebuloso para Ana. Mesmo sem conhecer detalhes sobre a investigação que Lucas conduzia, ela sabia que as suspeitas dele estavam diretamente relacionadas a essas pessoas. Todavia, como sua história com Lucas acabara, as desconfianças deixaram de fazer sentido, então ela seguiu com a própria vida como se eles nunca tivessem se conhecido.
Foi o jeito mais fácil, não que fosse fácil agora.
Pontualmente às 16h, Ana desembarcou na entrada do Condomínio Veredas. Aguardou ser anunciada e, posteriormente, transportada no carrinho de golfe por um assistente da portaria. Uma senhora uniformizada a aguardava nos portões da residência e a conduziu até o interior da mansão.
Quando colocou os pés no batente da imensa porta de vidro, ela se lembrou do que Pablo falara na festa há um tempo. Bem, ela não era nenhuma celebridade, mas estava dentro da tal casa onde só os "importantes" podiam entrar.
Rindo internamente do fato, Ana avistou Ricardo vindo pelo corredor. Ele a recebeu com uma saudação efusiva.
– Que prazer receber você em minha casa. Seja muito bem-vinda!
– O prazer é todo meu – ela respondeu, encabulada. Com uma passada rápida de olhos, ela se certificou de que o espaço estava muito além do que teria imaginado. Até o cheiro da casa parecia caro.
– Venha! Nancy a espera. – Ele a conduziu por um corredor imenso até uma espécie de jardim de inverno nos fundos da mansão. A área era ampla, com várias espreguiçadeiras e sofás confortáveis. Muitas plantas decoravam o ambiente, contrastando-o com a frieza dos corredores internos da residência.
Quando Nancy a viu, se levantou para cumprimentá-la. Ana captou o exame rápido da mulher sobre si, inspecionando-a. Um sorriso deu a entender que passara na primeira avaliação.
Nancy fez perguntas a respeito da formação de Ana e sobre sua pós-graduação em Tradução. Ana apresentou suas intenções em se especializar em Linguística Aplicada, mas também comentou sobre o interesse em seguir por um caminho que lhe ajudasse a gerir a pousada da família.
Nancy se mostrou bastante interessada no assunto da pousada, fazendo perguntas bem específicas sobre a administração dos recursos ao longo do ano e até colaborando com alguns apontamentos muito interessantes para a melhoria da gestão.
Até aquele momento, Ana acreditava que estava indo bem. O assunto era agradável, tudo estava sob controle, então Nancy lançou uma pergunta completamente fora de contexto:
– E sobre sua vida amorosa? O seu caso com Lucas Russo, é algo recente, ou já vinha desde antes da morte de Alice?
Ana ficou estática, sem saber o que responder. O coração deu um salto que fez sua cabeça girar. Ricardo se aprumou na poltrona e se dirigiu a Nancy, nervoso.
– Nós combinamos que você não ia entrar nesse assunto!
– Você disse que não ia entrar no assunto. Eu não me comprometi com nada. Você sabe que eu só estou defendendo os nossos interesses. Você é que parece despreocupado demais com a situação.
– Eu não estou despreocupado, só estou apurando as coisas antes de chegar com os dois pés no peito da moça, pelo amor de Deus!
Ana continuou parada, a respiração suspensa. Percebeu que, por um breve momento, eles nem se lembraram de que ela estava presente enquanto discutiam.
– Eu vou ser bem direta, mocinha. Foi ele quem mandou você vir trabalhar para nós? – Nancy perguntou a Ana, mantendo a conversa em espanhol. Ricardo interferiu.
– Não é nada disso! – e voltou-se para Ana – Ana, deixe-me explicar. Soubemos que você estava se relacionando com Lucas depois da festa que eu dei aqui em casa. Isso não tem nada a ver com a sua contratação. O R.H. selecionou seu currículo por mérito e você passou em todos os testes, mas uma fonte nossa garantiu que vocês estavam tendo algum tipo de relação que antecedeu à sua contratação.
– Eu... vocês... eu acho que quero ir embora, agora. – Ana estava chocada com a situação. Sentia as mãos trêmulas de nervoso, e as palmas ficaram imediatamente pegajosas.
– Ana, espere um momento, me deixe tentar explicar. Você muito provavelmente já sabe que Lucas foi meu genro, e que as circunstâncias da morte da minha filha deixaram ele paranoico com esse assunto. Quando soubemos que você o conhecia, a primeira coisa que pensamos é que você...
– Estava trabalhando para ele.
Ricardo apenas assentiu e cruzou as mãos sobre os joelhos. Nancy a olhava com viés de suspeita, a aparência simpática do início da conversa deu lugar a uma postura petulante e soberba. Subitamente, Ana se lembrou da mensagem anônima em seu celular:
"... não se envolva com essa gente."
– Bem, Senhor Ricardo, com todo o respeito, a minha vida privada não diz respeito a ninguém. Mesmo assim, vou lhe dar uma única informação, e depois disso eu vou sair por aquela porta, e o senhor não me verá mais.
– Ana, espere...
– Eu não fazia a menor ideia de quem o Lucas era até um mês atrás, e quando eu soube, nossa relação acabou. Bom, é isso. Tenha um bom dia. – Ana se ergueu, reprimindo a vontade de esbravejar e mandar todo mundo pra puta que os pariu.
– Não, Ana! Espere, por favor! – ele se colocou entre ela e a porta, bloqueando a passagem – não saia ainda, escute o que tenho a dizer.
Ana aguardava, orgulhosa, que ele se afastasse do seu caminho.
– Nancy, me deixe a sós com ela. Por favor.
Nancy passou por eles e, antes de sair, dirigiu-se à Ana.
– Você tem muito talento e seria um grande trunfo para a empresa. Se souber aproveitar a oportunidade, poderá alcançar grandes coisas. Mas precisa parar de ser ingênua. – E saiu, deixando-a completamente desconcertada e irritada.
– Deixe-me ir embora, Ricardo!
– Me escute. Não vou demorar..., – ele suspirou e pediu que ela voltasse a se sentar, mas ela se recusou – eu gostaria que você continuasse trabalhando para nós. Veja bem, para mim foi muito difícil colocar uma pessoa no cargo que você está ocupando, era como tornar real que minha filha não voltaria mais...
Ele fez uma pausa solene e Ana pensou: "belo trunfo, usar a filha morta para manipular minhas decisões". Ela estava de saco cheio de Alice. Nem chegou a conhecer a mulher e já não a suportava.
– Como espera que eu volte àquela empresa depois de ter sido tão descaradamente ofendida?
– Eu preciso que você entenda uma coisa, Ana. Lucas é complicado. Ele está fora de si e nós temos motivos para acreditar que ele está fabricando provas contra nós. Quando soubemos que você estava com ele, é lógico que nos questionamos se você seria uma espécie de ferramenta para ele atingir o que quer.
– E o que você acha que ele quer, Ricardo? – Ana relevou o fato de que ele tinha acabado de objetificá-la apenas para não estender mais a conversa. Ela simplesmente não conseguia acreditar que Lucas fosse esse tipo de policial.
– O que todos querem? Vingança, dinheiro, poder... gente como eu está acostumada a esse tipo de assédio.
– Gente como você? – Ana indagou, com uma sobrancelha erguida – gente como eu está acostumada a esperar mais das pessoas, Ricardo. Lucas fez parte da sua família por mais de dois anos! Me diga, por que acha que ele já não tinha tudo o que queria?
Ricardo ficou surpreso com o argumento dela. Era muito difícil encontrar pessoas com coragem para enfrentá-lo numa discussão. No momento, ele se lembrava de apenas três: sua falecida esposa, Lucas, e agora, Ana.
– Lucas está doente, Ana. Tanto que provavelmente deixou minha filha doente também. Eu nunca confiei nele e acho que você está errada em confiar.
– Infelizmente, minha relação com ele foi breve, mas pelo pouco que soube, ele amou a sua filha. – Ana continuou – Ele sequer usa aquela casa ou qualquer coisa que demonstre algum interesse no que você tem! Por favor, me convença de que ele é essa pessoa interesseira ou paranoica, eu adoraria entender.
– Lucas nunca deixou a gente se aproximar dele. Nunca. Ele não deixa ninguém entrar de fato na vida dele, e minha filha sofreu muito por causa disso. Não deixe que ele isole você também. Na Donatore, você tem uma grande oportunidade de crescer, e apesar de todo o estresse que essa conversa causou, eu peço que reconsidere sua decisão de se demitir. Contrariando as expectativas da minha sócia, eu prefiro te dar o benefício da dúvida do que perder alguém com seu talento.
– Me dar o benefício da dúvida... – Ana estava perplexa com a ousadia e a capacidade que ele tinha de se safar numa conversa. Que descarado!
– E você não teria que falar com Nancy nunca mais! – Ricardo finalizou, com um sorriso cativante.
Ana não acreditava que fosse tão eficiente ou insubstituível como ele fazia parecer, mas um pouco de massagem no seu ego ferido não fez mal nenhum.
– Eu vou pensar. Com sua licença, eu gostaria de ir embora, agora – ela cruzou a frente dele em direção à porta, dando a entender que não tinha mais nada a dizer.
Ele a conduziu de volta pelo mesmo corredor. Ela ouvia o ruído seco das Ankle Boot ecoando pelo vão. Dois homens vinham no sentido contrário a eles, olhando fixamente para ela. Apreensiva, ela olhou para Ricardo, que fez um sinal quase imperceptível aos homens, e eles a deixaram passar. Por um momento ela imaginou que seria detida ou algo do tipo. Suas mãos voltaram a tremer.
– Você se importa se eu lhe telefonar amanhã para conversarmos com calma? – Ele indagou.
Ana não respondeu de imediato. A insistência dele não fazia muito sentido para ela. Tradutores e intérpretes tinham aos montes por aí. Por que essa obsessão com ela?
– Tudo bem, mas peço que me respeite se eu não o atender.
Ele aquiesceu e se despediu dela na porta, permitindo que uma funcionária a acompanhasse até a saída. Quando o portão se fechou, ela soltou o ar preso e sentiu toda a tensão se espalhar pelo corpo, causando uma tremedeira atípica.
Era um completo absurdo tudo o que acabara de passar nessa casa. Lágrimas teimosas subiram aos seus olhos ao pensar na ironia de sofrer por ter ficado com um homem, sofrer por tê-lo perdido, e sofrer por causa de toda aquela confusão sem sentido o envolvendo. Não bastasse as marcas que ele deixara em seu coração, o rastro da existência dele ainda permeava seus dias e roubava sua paz, seu apetite, sua vontade e seu sono o tempo todo.
Ana viu o motorista com o carrinho elétrico se aproximar. As ruas estavam molhadas devido a um breve temporal de verão, mas a chuva já tinha cessado, restando apenas o ar quente, úmido e temperado de sal. Os respingos de uma nuvem derradeira borrifaram seu rosto já molhado de lágrimas, as mãos tremulavam de nervoso e a respiração arquejava pelos soluços contidos.
Envergonhada, virou as costas para o veículo. Não queria ter ninguém para testemunhar seu descontrole emocional.
– Tem problema se eu voltar caminhando? – Indagou por sobre o ombro.
– Problema algum, senhorita. Tenha um bom dia!
Parada diante dos portões fechados, sua solidão se ampliou herculeamente. A falta que Lucas fazia era sufocante, e mais lágrimas correram sem controle quando ela se lembrou das palavras de Ricardo:
"Ele não deixa ninguém entrar..."
Ela não passava mesmo de uma idiota iludida. Lucas vivia num mundo só dele, isolado, obscuro e distante, e ela precisava aceitar que, infelizmente, ele nunca ia deixá-la entrar, habitar e permanecer em sua vida. Nem ela, nem ninguém.
≈
Lucas tinha acabado de ler a carta de Alice pela terceira vez. Sua mão direita ainda tremia e um torvelinho de emoções ameaçava tragá-lo, impelindo-o a agir de modo imprudente.
"Filhos da puta! Malditos sejam! Todos eles!"
Cheio de ira, ele dobrou o papel e o colocou no bolso da calça, depois pegou o cartão de memória e o levou até um escritório no andar superior. Enquanto decidia se inseria o cartão no computador ou não, pensou que seria mais seguro desativar a internet e inseri-lo no aparelho celular.
Decisão tomada, ergueu o aparelho para o desligar, quando viu um sinal de notificação em um dos aplicativos, um software localizador. Ele abriu para conferir o status, algo que vinha fazendo repetidamente nos últimos dias. O mapa digital carregou e um ponto vermelho surgiu muito próximo à sua localização atual.
– Mas que porra! – ele se ergueu da cadeira num tranco, fazendo-a tombar.
Sem hesitar, ele puxou o fio do computador e guardou o micro-SD no bolso, depois recuperou uma bolsa de couro nos fundos de um armário do closet e seguiu a passos largos até a garagem. Entrou em um SUV estacionado e girou a chave, torcendo para que a ignição funcionasse depois de semanas sem uso.
Mesmo sem usar o veículo, ele costumava ligar o carro de vez em quando para lubrificar o motor e recarregar a bateria, mas desde que fora para a casa da mãe, não fizera mais a manutenção. Ansioso, deu a partida algumas vezes e, para seu alívio, finalmente o carro ligou, então ele saiu acelerado pelo portão elétrico.
≈
Ana ainda caminhava rente ao muro da residência de Ricardo quando um SUV preto passou ligeiro e deu um cavalo de pau, guinchando os pneus. Assustada, ela deu um salto quando a porta do passageiro se abriu ao seu lado.
– Entra no carro!
Seu coração quase saiu pela boca. Depois de tantos dias, Lucas estava ali, a um banco de distância, encarando-a com aqueles olhos gelados, o cabelo revolto e uma cara de bravo de morder os dentes...
Suas pernas viraram pudim.
– Ana! Entra na porra do carro! Agora!
Lucas estava deixando-a entrar. Não... ele estava mandando!
E ela obedeceu.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro