31 - Quem é Você?
Lucas tinha decidido aguardar Ana no saguão da pousada, assim, quando ela chegasse, não teria desculpas para rechaçá-lo de pronto, e não haveria nenhuma porta fechada entre eles.
Estava particularmente ansioso pela conversa que teria com ela. Não pretendia revelar tudo, mas ao menos a parte de que fora casado, isso teria que contar, principalmente agora que sabia onde e com quem ela trabalhava. Não havia como prever o desfecho da conversa, mas ele cultivava uma esperança tênue de que ela compreenderia sua história e ficaria ao seu lado no fim.
Quando finalmente Ana entrou pelas portas da pousada, a primeira coisa que ele notou foi o semblante abatido que ela carregava. Ela parecia ter levado uma surra. Os olhos estavam inchados, e a postura, curvada e desanimada. Ele imaginou que seria algo relacionado à enxaqueca, até que ela olhou para ele.
Quando os olhares se encontraram, ele entendeu. No mesmo instante, ele soube. De alguma forma Ana acabou descobrindo quem ele era, e agora a vantagem de contar a verdade primeiro evaporava tal qual a tênue esperança que ele nutrira há pouco.
Ele sabia que isso poderia acontecer. Depois de ter feito suas pesquisas e descoberto que, por mais absurdo que parecesse, ela estava trabalhando na Donatore, ele entendeu que era apenas uma questão de tempo. Agora ela o encarava, e um mundo de mágoa nublava os olhos amendoados.
Ele sentiu um medo inédito que se iniciou em seu peito e escorreu como água gelada até a ponta dos seus pés.
– Ana...
Ana engoliu em seco, depois passou direto por ele e seguiu em direção ao próprio quarto. Ela estava sem condições de conversar. Tinha medo de desabar de novo, e na frente dele, para piorar. Ele a seguiu pelo corredor e, antes de ela entrar no quarto, a segurou pelo braço.
– Ana, por favor...
Ela o encarou. Ele parecia consternado; o mesmo peso do mundo repousava em suas costas, como na imagem do funeral. Ela sentiu as lágrimas se formarem e as engoliu.
– Por que, Lucas? Por que não me contou?
Lucas abriu a boca e fechou, sem dizer nada. Articulou de novo, mas engoliu em seco e continuou encarando-a, numa espécie de súplica silenciosa. "Você virou a porra de um peixe, agora? Diga alguma coisa, caralho!"
– O que você achou que eu ia fazer? – Ela continuou – quem você pensa que eu sou? Uma criança?
Ele seguiu em silêncio e isso a irritou tanto que ela teve vontade de gritar com ele, bater nele, fazer um monte de outras coisas com ele... que droga!
– Entra! – ela o convidou, bruscamente.
Convidá-lo não era uma das coisas que ela queria fazer, enfim. Ele deu um passo para dentro do quarto, mas permaneceu na porta.
– Ana, eu não podia contar para você.
– Não podia contar o quê? Que você foi casado? Que é rico? Que é da polícia? O que era tão difícil de falar?
– Não é isso, eu... – ele sentiu o nó na garganta de novo – eu simplesmente não podia.
Ela aguardou. Eram muitas emoções ao mesmo tempo, precisava se acalmar e raciocinar. Os lindos olhos perdidos fitando-a de modo tão intenso não estavam ajudando em nada.
– Medo de ser descoberto? Medo de o seu plano, seja ele qual for, dar errado? Me diz, Lucas, você não devia estar chorando a morte da sua mulher ao invés de ficar se escondendo e estragando a vida dos outros? Sim, porque você está escondido aqui, certo? Se você tem uma puta casa, não tem por que se enfiar nessa pousada meia-boca!
Ele continuou em silêncio. Ela sentiu um turbilhão crescendo dentro de si, prestes a explodir. A quietude dele foi emputecendo ela de tal forma que ela não pôde mais suportar.
– Certo! eu vou facilitar pra você! Vou fazer as perguntas, você só responde sim ou não. Você ainda é da polícia?
– Ana...
– Responda a maldita pergunta, Lucas! Você ainda é policial?
– Sim, eu sou...
– Você anda armado?
– Não o tempo todo...
– Você se escondeu aqui porque fez algo errado?
– Não, eu...
– Você amava a sua mulher?
– Sim, quero dizer...
– Eu sou só um disfarce? O que eu sou pra você?
– Ana, chega!! – ele exclamou e esmurrou a cômoda perto da porta. Alguns itens tombaram no tampo de madeira, e o som produzido causou mais impacto pela surpresa do que pela intensidade.
Assustada, ela deu um passo para trás e caiu sentada na cama. Era a primeira vez que ela o via assim. Ele olhava para ela agora de modo sombrio, respirava pesado e parecia bem maior do que ela se lembrava. Esse Lucas era um estranho para ela.
Na verdade, o anterior também era um completo estranho, só agora ela se dava conta disso.
– Eu posso te contar... Se você deixar, – ele começou com uma voz grave e contida – mas precisa ouvir até o fim. Se for me julgar antes da hora, não adianta eu te explicar nada.
Ana se ajeitou na cama, aturdida. O Lucas atencioso, gentil e levemente ranzinza que ela pensava conhecer deu lugar a outro: austero, firme e rígido. Ela reprimiu um desejo crescente de conhecer mais e mais camadas desse homem tão enigmático.
– Eu não posso te contar todos os detalhes porque tenho que te proteger, mas vou tentar, ok? Promete que vai ouvir até o fim?
Ela balançou a cabeça afirmativamente, e ele continuou:
– A verdade é que eu me hospedei aqui para investigar a morte da minha ex-mulher.
– Espera..., mas não foi sui... acidente? – Ana interrompeu, precipitadamente.
– Me deixa contar tudo, Ana. Por favor... – ele levou a ponta dos dedos até o cenho e massageou a região, como se estivesse doendo.
Lucas se sentia a ponto de perder o controle. Por pouco não o perdeu de fato. Buscou suavizar um pouco o tom de voz, estava muito alterado e nervoso. Era muito trabalhoso manter as emoções sob controle, principalmente quando se estava prestes a perder tudo outra vez. Ele fechou a porta do quarto e se sentou no chão, perto da cama. Não se aproximou de Ana nem a tocou mais.
Ana percebeu que ele assumia uma postura completamente diferente, distante e fria. Era como se ele pudesse virar uma chave e se transformar em outra pessoa. Agora ele era um investigador de polícia qualquer. Ela sentiu os fios que conectavam sua relação com ele se soltando, um a um, deixando-a totalmente à deriva.
– Eu conheci Alice há mais de três anos atrás. Como você já descobriu, eu sou policial civil, um investigador. Tinha acabado de ingressar em uma equipe de investigação que há muito cobiçava, e Alice estava acompanhando um suspeito. – Ele hesitou, procurando uma forma de entrar nesse assunto com ela sem feri-la ainda mais – começamos a nos relacionar e, alguns meses depois, nos casamos. No começo nos dávamos muito bem, mas como todo casamento, nossa relação enfrentou várias crises e Alice passou a apresentar alguns distúrbios emocionais. Você entenderá se eu não entrar em mais detalhes, certo?
No momento Ana só entendia que isso doía nela. Muito. Por algum motivo as pessoas têm um prazer bizarro em se torturar com simulações mentais completamente desnecessárias, como por exemplo, imaginar o seu homem transando com outra mulher. Era óbvio que Lucas tinha uma história, uma bagagem. Ele não era um moleque, mas um homem de...
– Quantos anos você tem, Lucas?
Ele olhou para ela, confuso. Ela se repreendeu por não conseguir manter os pensamentos longe da própria boca.
– Eu tenho 31 anos e... O que isso tem a ver? – Ele perguntou, franzindo a testa.
Ana se desconcentrou observando a charmosa linha de expressão. Por mais que ela ficasse criticando-o por enrugar o rosto, toda vez que a linha se formava entre as sobrancelhas grossas e bem desenhadas e aqueles olhos de matar se contraíam, ela sentia uma pontada no ventre. 31 anos de puro homem... "Que inferno, Ana! Para de ser tão deslumbrada e presta atenção na história!"
– Bom, o caso é que... Alice tinha depressão. – Ele continuou – nossa relação estava complicada há um bom tempo. Quando ela resolveu que queria uma festa em casa, eu concordei e fiz o que pude para não interferir, pois achei que seria algo bom para ela. Alice era uma das diretoras da Construtora Donatore e tinha acabado de inaugurar um complexo de luxo em Ubatuba. Em ocasiões assim, era habitual oferecer uma festa de lançamento do empreendimento. A maior parte dos eventos da empresa costumava acontecer na residência de Ricardo Donatore, um local que você já teve a oportunidade de conhecer.
Ana ainda estava abismada com o fato de estar trabalhando justamente para o ex-sogro do seu atual caso amoroso.
– Então, você já sabe que eu trabalho para eles?
– O que você acha? Assim que te encontrei no condomínio, eu fui investigar, mas não sabia até então.
– Que coincidência...
Lucas a olhou de modo profundo, impressionado com a ingenuidade dela nesse sentido, todavia não ia se intrometer nessa história, ao menos não agora.
– Bem, por alguma razão, Alice insistiu para que a festa acontecesse na nossa casa, apesar das questões emocionais, e aquele evento em particular a deixou com bastante expectativa. Ela organizou tudo, ordenou uma lista enxuta de convidados e estava animada, e isso me deixou tranquilo, porque eu passava a maior parte do tempo evitando conflitos com ela. Era muito difícil lidar com a depressão dela, e eu não fui um cara legal nesse sentido.
Ana sentiu os olhos arderem, mas não queria voltar a chorar, por mais que doesse ouvir ele descrever a vida de casado. Quando ele usou a frase "nossa casa" foi como um garfo espetando seu coração. Quando Ana esteve na tal da casa, não mereceu nem saber que se tratava da casa dele. Ela queria pedir para ele parar de falar e ir embora, mas ficou quieta, pois havia prometido que o ouviria até o fim.
– Por que você diz que não foi um cara legal? Você a traía? – O tom não foi acusatório. Ana estava resignada demais para ser agressiva. A pergunta só surgiu por causa do artigo do site de fofocas.
– Eu nunca a traí, Ana. Eu só andava cansado de tudo e fui me distanciando dela só para fugir das brigas e do drama. Justamente por me esquivar tanto, fui descuidado, não verifiquei a lista de convidados nem me importei tanto com a segurança.
– Mas você não é um investigador? – Ana perguntou e se arrependeu quando viu o olhar angustiado dele. Tinha acabado de praticamente acusá-lo de ser adúltero, agora de incompetente. Sem perceber, ela o estava julgando abertamente.
– Eu procurava deixar meu lado investigador de fora da nossa vida pessoal. Já era complicado porque sempre me mantive isolado em ocasiões assim. Alice era muito bem relacionada em seu círculo social, e o fato de eu ser tão apartado de tudo era muito difícil para ela, que era vaidosa e amava a vida pública. Desde que me tornei policial, muito antes do casamento, minha vida sempre foi reservada, nunca achei prudente me expor. Você não me encontraria em eventos ao lado dela, nem vai achar um perfil com informações a meu respeito na internet. Faço isso para preservar as pessoas à minha volta.
Ana já tinha descoberto que não havia nada sobre ele na internet, a não ser a foto do funeral que, provavelmente, ele acabou deixando passar ou talvez nem soubesse que estava lá.
– Tudo corria bem, até que alguns convidados chegaram. Eram um casal e mais um homem, até então desconhecidos para mim. Ricardo foi quem os recebeu e chamou Alice para um retrato. Naquele momento, eu percebi que algo tinha mudado nela. Ela me pareceu tensa e nervosa, e a partir dali, comecei a prestar mais atenção.
– Então, de repente, você se lembrou que era investigador...
– Ana... por favor.
– Ok, desculpa. – O arrependimento era genuíno, mas a mágoa também era.
– Enfim, os cinco entraram num cômodo da nossa casa e fecharam a porta. Eu já estava acostumado com isso, geralmente era para discutir assuntos de negócios. Quando finalmente saíram, Alice parecia transtornada. Ela se dirigiu a passos largos para o jardim seguida pelo visitante e eu fui em direção a eles, mas meu sogro me abordou no caminho a fim de me apresentar a algumas daquelas pessoas. Por ser muito persuasivo, Ricardo conseguiu me segurar por algum tempo com banalidades, até que vi Alice passar por nós e subir as escadas.
– Por que não me contou que aquela casa era sua quando me levou para lá? – Ana o interrompeu sem pensar e do absoluto nada.
Lucas fechou os olhos e soltou um longo suspiro, e Ana percebeu que ele estava tentando conter a irritação.
– Você simplesmente não consegue ouvir a coisa até o fim, não é mesmo? Eu não sei por que não te contei, ok? Eu realmente não sei. Talvez pelo fato de aquela casa ser mais dela do que minha, enfim, me perdoe por mais essa mentira.
Lucas se calou e ela aguardou, um pouco constrangida. Ele demorou a falar, e ela imaginou que devia ser difícil para ele continuar a partir de agora. Ele levou as mãos à cabeça e enfiou os dedos no cabelo, e a mão direita dedilhava intermitentemente o couro cabeludo numa espécie de tique nervoso.
Ela já tinha visto esse tipo de reação antes, em uma colega da faculdade que havia sofrido abuso. Lucas estava suprimindo o trauma. Perder Alice devia ter sido devastador para ele, e constatar isso a devastava.
Sem conseguir conter o impulso, Ana colocou a mão sobre a dele, entrelaçando os dedos e ajudando-o a controlar o movimento involuntário. Ele não se moveu, mas apertou os dedos dela em resposta enquanto regulava a respiração.
Mais uma camada, ela concluiu.
– Eu finalmente consegui me livrar do meu sogro e subi as escadas o mais rápido que pude. – Ele seguiu com uma voz estranha – quando entrei no quarto, ela estava com um copo na mão, falando coisas sem sentido. Eu tentei me aproximar, conversar com ela, mas ela me rechaçou, me afastou como sempre fazia, então foi até a varanda e...
Lucas suspendeu a respiração. Um bolo se formou em seu peito, queimando, subindo até seu rosto e ardendo-lhe os olhos. Ele não tinha se permitido chorar a morte dela ainda, e esse não era o melhor momento para isso.
– Se for difícil para você falar essa parte, Lucas, eu tenho imaginação. Posso entender se você não quiser compartilhar sobre a queda dela.
– Alice não caiu da sacada, Ana. Ela subiu no parapeito e, quando eu percebi o que ela pretendia fazer, corri para alcançá-la, mas não deu tempo. Ela me olhou nos olhos, e no olhar eu pude perceber que ela estava consciente e sóbria, então abriu os braços... e pulou.
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