30 - Obituário
Ana paralisou a mão sobre o mouse. De repente ela se deu conta de que precisava voltar respirar, e essa realidade a atingiu quando o peito doeu no momento em que ela puxou o ar de uma vez.
A imagem não era perfeitamente nítida, mas era possível reconhecer bem as três pessoas na foto. Por mais que quisesse negar, que desejasse estar enganada, não havia como fingir que não era real.
Ela conferiu o nome do website, um canal de notícias do Litoral Norte de origem confiável. O dedo voltou a se mover no scroll do mouse, então clicou duas vezes na imagem para ampliá-la.
Bem maior na tela, Ana confirmou identidade das três pessoas. Ricardo Donatore num terno preto e óculos escuros, a sócia da Donatore que morava fora do Brasil em um vestido preto elegante, e um homem mais jovem, mais alto que os demais, também todo de preto e de óculos escuros.
Ana sentiu o peito apertar numa crise de ansiedade. Inconformada, ela aproximou o rosto da tela para enxergar melhor, como se fosse necessário, como se a imagem não gritasse de volta para ela.
O cabelo estava mais curto e o rosto liso pela barba feita, e mesmo parcialmente oculto pelos óculos escuros, ela reconheceria aquele rosto em qualquer lugar.
Ela o tinha visto inúmeras vezes, com os mesmos óculos estilo aviador.
A imagem era do funeral de Alice. Como se houvesse ainda qualquer dúvida, a manchete trazia o obituário:
"Alice Donatore - 08/07/1990 - 11/05/2020
Alice era esposa e filha. Sempre dedicada à família, aos amigos e a fazer o bem. Seu trabalho trouxe alegria a muitos. Sua vida, ainda que breve, deu frutos que para sempre prevalecerão. Sua morte deixou saudades, e o anseio por tempos que nunca chegarão.
O corpo de Alice Donatore será velado no Cemitério do Morumby, na capital de São Paulo. Alice deixa o pai: Ricardo Donatore, empresário reconhecido no cenário nacional, e o marido: Lucas Russo, Investigador da Polícia Civil de São Sebastião. O casal não deixa filhos."
Ana não conseguia mais enxergar o texto. As lágrimas nublavam seus olhos e seu coração parecia ter se partido ao meio. Ali estavam as respostas que ela estava procurando.
Lucas era policial, e viúvo de uma das mulheres mais lindas e poderosas da região. O tempo todo ele estava escondendo isso de Ana, ou pior, estava escondido com ela, talvez até usando-a, e isso finalmente explicava as pessoas estranhas investigando sua vida.
Inconformada com a descoberta, Ana começou a se enfiar numa busca louca por mais informações. Ela digitou: "Alice Donatore e Lucas Russo" na barra de busca e começou a procurar por notícias relacionadas. Não havia muito mais na internet, uma nota muito antiga sobre o casamento que não mencionava que Lucas era policial, e um site de fofocas que trazia um artigo curto. Ana clicou para ler a matéria.
"Alice Donatore - Acidente ou Suicídio?
Quem disse que rico não tem problemas, não sabe da missa a metade! Alice era conhecida por ser a luz das festas, a alegria da família, era linda, empresária competente e muito amada por seu círculo social.
Até se casar.
O casamento não fez bem a Alice, e tanto seus amigos como a família sabiam disso. Não sabemos o que o marido* (removido por descumprir as diretrizes de conteúdo) fazia com ela, mas o resultado foi uma depressão severa. Especula-se que ele a traía com uma colega de trabalho. Vai saber... não dá para confiar, porque se ele tivesse sido um bom marido, talvez tivesse a ajudado com a doença.
Contudo, quem somos nós para julgar, não é mesmo?
O fato é que não se via mais Alice em festas ou eventos sociais, e convenhamos que cair da sacada da própria casa, para alguém que está sofrendo a mais de um ano, é para lá de suspeito!
Esperamos que a família supere isso, afinal, Ricardo já tinha perdido a esposa ainda jovem, agora só conta com dois irmãos, e se ele não se casar de novo, quem será que vai herdar todo o império Donatore?
Sem querer se aproveitar de uma notícia triste para isso: mulheres, prestem atenção! O homem está solteiro e na busca de um herdeiro! Alguém se candidata...?"
Ana sentiu um súbito mal-estar, tanto pelo viés maldoso da notícia quanto pelo conteúdo, e correu para o banheiro. Dentro da cabine, ela pensou que ia vomitar, mas não chegou a isso. Seu estômago voltou ao normal rapidamente, só para que seu corpo resolvesse verter fluídos por outros canais. No caso, pelos olhos e nariz.
Longe do olhar de todos, ela chorou. Seu pranto era pelo segredo recém-descoberto, pela morte de alguém que ela nunca conheceu, pela beleza e perfeição de Alice que, embora já tivesse falecido, Ana jamais poderia competir com aquilo. Ela chorou por ser tão mesquinha e egoísta a ponto de pensar algo assim, e chorou por Lucas, tão lindo e tão solitário na imagem do obituário... E tão mentiroso e dissimulado.
Enfim, ela chorou por si mesma, pois não conseguiria superá-lo tão cedo. Não conseguiria confiar nem se esquecer da falácia que viveu no pouco tempo em que esteve ao lado dele. O pior de tudo foi ter deixado seus sentimentos por ele crescerem livres e desimpedidos.
Que idiota estúpida e ingênua!
Num ato de autopunição, ela pegou o celular e pesquisou novamente o nome dele. Não havia perfis em redes sociais, apenas a nota de falecimento, lá na terceira página de buscas.
Ana assumiu que poderia ter feito isso antes, mas simplesmente não tinha pensado nisso. Mais uma vez ela clicou na notícia e surgiu na tela a mesma foto, Lucas ao lado de Ricardo Donatore. Obcecada, ela ampliou a imagem e ficou observando o rosto dele, como se pudesse fazê-lo desaparecer. Na fotografia ele estava de cabeça baixa e parecia carregar o peso do mundo nos ombros. Mais uma lágrima desceu e pingou na tela do celular.
"Lucas, por Deus, o que eu vou fazer agora em relação a você? Agora que já me apaixonei?"
Depois de um longo tempo, ela ouviu uma leve batida na porta da cabine.
– Ei, Ana... você está bem? – Era Larissa, com uma voz preocupada.
– Sim, já vou sair. – Ana procurou se recompor. Respirou fundo algumas vezes, limpou o nariz e as lágrimas com papel e saiu da cabine.
– Meu Deus, o que aconteceu? – Larissa questionou quando viu seus olhos inchados. Ana não respondeu, apenas desabou chorando novamente, se odiando por ser tão molenga. Larissa a abraçou. – O que foi, o ricaço da festa não ligou de volta? – Brincou na tentativa de fazê-la sorrir.
E então, mais uma constatação. A casa do condomínio, o cheiro de Lucas nas roupas e o fato de ele estar no local no momento da festa. De repente, tudo fez sentido. "É dele aquela casa! Como pude ser tão cega?" Ana gemeu e deixou escapar mais um soluço sofrido.
– Ai, caramba! Piada errada... – Larissa lamentou, apertando-a contra si – desculpa, Ana...
– Não, tudo bem. Não é culpa sua. Eu é que sou uma ingênua, uma iludida! – Ela se soltou do abraço e foi até a pia para lavar o rosto.
Precisava se recompor e continuar o trabalho. O dia seria longo e, ao final dele, teria que decidir que rumo sua história com Lucas iria tomar.
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