3 - Frigo & Bar
Desde o dia anterior, quando deu entrada na pousada, Lucas não fez nada de útil. Apenas tentou dormir, comeu uma barra de cereais, tentou dormir novamente e desistiu no meio da madrugada, quando se rendeu e passou a jogar Candy Crush no celular até os primeiros raios de sol.
Depois, saiu para caminhar, encontrou a garota da pousada e retornou ao quarto para mais um pouco de nada. Somente próximo à hora do almoço é que resolveu se movimentar. Organizou as poucas roupas da mochila no guarda-roupas, guardou algumas garrafas de água no frigobar, e então abriu o notebook. No entanto, permaneceu vários minutos encarando a tela, sem tomar nenhuma ação. Irritado, acabou desistindo, fechou o computador e dirigiu-se à sacada, onde ficou por um tempo, pensativo e debruçado.
De onde estava, podia observar a faixa de areia e a quantidade considerável de banhistas que se acumulavam sob os guarda-sóis e ombrelones. Ele bem que poderia estar entre eles agora, descansando a mente e o corpo, permitindo-se recuperar do trauma e, enfim, abraçar o luto inevitável.
No entanto, ele simplesmente não conseguia. Qualquer tentativa de relaxar e deixar o assunto da morte da esposa de lado parecia uma ofensa, tanto para ela quanto para si mesmo, incapaz de se conformar com tudo o que acontecera desde que o corpo de Alice foi encontrado na praia.
Ele estava afastado do trabalho, não pelo luto, mas por questões emocionais. Sim, ele surtou, embora não acredite que tenha surtado. O fato é que todos na delegacia o convenceram de que sim, que ele estava perdendo o controle, principalmente quando começou com aquela conversa estranha de que a esposa tinha sido assassinada.
Levantar essa questão não foi o motivo central para ele ter sido afastado. A situação se deteriorou quando ele começou a acusar o ex-sogro de ter participado do ato. Aos olhos de todos, Lucas estava delirando ao insinuar que o homem poderia estar envolvido na morte da própria filha. Todos atribuíram o comportamento inadequado de Lucas ao fato de que ele tinha desavenças com o velho, por tê-lo investigado no passado e não ter conseguido provar nada contra o homem.
Um laudo psicológico colocou Lucas para fora da delegacia após uma tarde em que ele arremessou um computador no chão. Gritou e deu um pontapé na mesa, fazendo a máquina voar e quase atingir seu parceiro. Por sorte, Garcia não estava sentado no momento. Isso aconteceu durante uma discussão com seu superior, o Delegado Alencar, quando Lucas foi impedido de comparar o laudo da autópsia com as fotos do corpo de Alice. Isso se deu porque seu ex-sogro tentou, primeiro, proibir a autópsia e, depois, a divulgação da mesma.
Russo, como todos o chamavam na D.P., batera o pé e exigira seus direitos como marido, mas fora tolhido, pois, segundo Alencar, ele estava completamente fora de si. E, no fim, o gabinete amassado da máquina provava que o delegado estava certo. Envergonhado, Lucas recolhera o computador do chão enquanto os colegas de trabalho o encaravam como se ele fosse um anormal. Não podia culpá-los por estarem surpresos; afinal, sempre fora um cara de bom comportamento na delegacia, ninguém nunca tinha sequer ouvido sua voz alterada antes.
Naquela tarde, Lucas deixou a delegacia e não voltou mais, e já fazia quase quatro meses. Perdido em pensamentos, não se deu conta da passagem das horas. Sentiu o estômago roncar e percebeu que já passara muito da hora do almoço. Analisou as opções: ir até a praia comer em um quiosque; pegar alguma besteira na geladeira da recepção; ou sair em busca de algum restaurante. Enquanto pensava nisso, viu a garota da pousada atravessando a rua.
Achou curioso lembrar do sorriso dela ao vê-la caminhar de forma leve entre os transeuntes da movimentada via comercial. Ela entrou em um estabelecimento, uma espécie de bar, e ele subitamente decidiu onde ia almoçar.
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Ana estava com o sanduíche a caminho da boca quando viu o hóspede entrar no bar. Ele passou pela porta, meio afoito e, como sempre, descabelado e de óculos escuros. De onde estava, podia vê-lo melhor agora, usando a mesma bermuda de sarja, tênis e camiseta lisa, tão alto quanto ela se lembrava. Olhando à distância, concluiu que ele devia ter mais de 1,85 m e, enquanto reparava na massa magra à sua frente, divertiu-se por constatar que ele era bem gostoso.
Lucas olhou em volta, e quando a viu sentada sozinha numa mesa de canto, a cumprimentou com um aceno de mão. Ele não sorriu, e Ana ficou em dúvida se pedia ou não para ele se aproximar, mas no fim, sem saber por que, acabou sinalizando para ele.
– E aí, já almoçou? Se quiser, pode me fazer companhia – ela o convidou de modo tranquilo enquanto mastigava.
– Se você não se incomoda...
Ana nunca sabia o que dizer depois de um começo de conversa. Não só com ele, mas com qualquer pessoa.
– O que recomenda? – Ele perguntou enquanto folheava o cardápio.
– Você come de tudo?
– Sim, por quê?
– Sei lá, vai que você é um desses veganos bebedores de Gatorade... Nunca se sabe.
Lucas achou cômico o comentário, e uma sombra de sorriso passou pelo seu rosto. Ana percebeu a mudança que o deixou no mínimo 10 anos mais jovem.
– Por que você acharia isso? – Ele realmente estava curioso.
– Sei lá... você usa essas bermudas de sarja e essas camisetas de playboy...
Ele a encarou, sisudo, e no mesmo instante ela desviou o olhar, constrangida pela ousadia. Nem conhecia o cara direito e já vinha tirando conclusões, bocuda que era!
– Não, não. Prefiro cerveja – ele se manteve sério, mas estava se divertindo com a situação.
– Ufa, que alívio! – Ela sorriu e ele ficou mais uma vez encantado. A leveza do momento acabou incentivando-o a de fato pedir uma cerveja.
– Então, o que recomenda?
– Amigo, você está num bar. Não tem muita opção, certo?
– Certo... O que você está comendo?
– Cheese Salada.
Quando o garçom trouxe a long neck, Lucas pediu um hambúrguer igual ao dela. Eles comeram em silêncio, e isso não incomodou nenhum dos dois. Ana terminou de degustar o almoço e chamou o garçom para pedir a conta. Depois de pagar, por educação, ela permaneceu sentada esperando que Lucas terminasse o próprio almoço.
Enquanto Ana aguardava, observava o hóspede novo de maneira descontraída. Percebeu a palidez da pele, um tanto acima do normal para alguém que morava na praia, e os cabelos, apesar de desalinhados, tinham uma textura agradável... bem bonitos, na verdade. Os óculos escuros repousavam sobre um nariz aquilino sutilmente torto, inclinado quase que imperceptivelmente para a direita, que ela concluiu já ter sido quebrado antes. Algumas sardas pontilhavam o rosto, uma barba clara e rala cobria o maxilar cinzelado sem o esconder, e ela sentiu uma pontada de frustração, já que os óculos impediam que visse os olhos do homem.
– Você está me constrangendo...
– O quê? – ela levou um susto.
Lucas apontou para ela com o sanduíche, e ela percebeu que estava com o rosto apoiado nas mãos, os cotovelos na mesa, o encarando de maneira nada discreta. Sem graça, ela se endireitou na cadeira.
– Desculpa... eu estava viajando.
– Olhando para mim? – Ele a encarou por trás das lentes escuras e mais uma vez ameaçou um sorriso. Ana sentiu vontade de fazer qualquer piada só para ver se ele sorria de verdade.
– Eu estava olhando através de você. É diferente.
Lucas quase sorriu, mas se conteve. Ela estava o encarando descaradamente, a boca rosada e carnuda meio aberta, o olhar curioso. Ele não podia se queixar, estava fazendo exatamente o mesmo, mas se aproveitava dos óculos escuros para observá-la sem ser notado.
Foi um pouco sacana da parte dele, mas estava se divertindo com a situação. Mesmo quando ela tentava mirar qualquer outro lugar, voltava a prestar atenção nele. Ele deu mais uma mordida no hambúrguer e deixou o olhar vagar sobre ela. Reparou na camiseta larga que ela usava, o modo como a gola pendia por um dos ombros revelando a alça do sutiã verde-água de bolinhas, ou talvez fosse um biquíni. A pele morena era dourada e lisa, o nariz arrebitado e redondinho na ponta, e os lábios... instigantes e sensuais, principalmente agora, na iminência de mais um sorriso.
Ele se deu conta de que estava há muito tempo sem prestar atenção em mulheres no geral. Parecia uma eternidade desde que estivera com uma mulher de fato.
– Saquei. – Ele murmurou, com a boca cheia.
– Sacou o quê?
– Que estava olhando através de mim. Eu faço isso às vezes.
Ana baixou os olhos, enrubescida. Novamente, tinha se perdido enquanto olhava para ele. O interesse na aparência do homem a intrigou; talvez fosse pelo mistério dos óculos escuros ou pelo ar circunspecto, ela não sabia dizer.
Lucas terminou o almoço, e eles ficaram mais um tempo por ali, encarando-se tentando não se encarar, enquanto ele tomava a cerveja sem pressa. Ele acabou pedindo outra porque o clima quente praticamente o obrigava a se refrescar e, o que não queria assumir, estava apreciando o momento.
– Você não vai à praia? – ela perguntou, resolvendo pedir uma limonada para si. Percebia as manchas de suor surgindo nas axilas da camiseta clara dele e as gotículas brotando nas têmporas e na testa parcialmente oculta pelos cabelos que se projetavam para frente, por cima dos óculos.
– Eu costumava ir...
Ana achou esquisito ele não continuar a conversa. Talvez não estivesse num bom dia, afinal, dava para notar que ele parecia um cara meio cansado demais, de certa forma melancólico demais, o que não combinava muito com férias. Ela acabou concluindo que ele talvez fosse um desses caras recém-divorciados fugindo da ex e seus problemas.
– Lá pelas seis da tarde, a praia está mais vazia, e as ondas ficam deliciosas nesse horário. Eu considero o melhor momento para dar um mergulho.
– Obrigado pela dica. Talvez eu vá mesmo.
Ana sorriu. Mais uma fisgada no ventre de Lucas, e ele começou a ficar bolado com isso.
– Bom, eu agradeço a companhia – finalmente ele se levantou e pagou a conta em dinheiro, e sem que ela percebesse, pagou também o suco dela.
– Não precisava...
– É pelo seu excelente serviço como guia turístico.
– Ah, vá! Eu só indiquei um sanduíche e sugeri um banho de mar.
– Foi suficiente para mim.
Ela sorriu novamente, ele se despediu e deixou o bar apressadamente. Ana o viu voltando para a pousada e decidiu seguir por outro caminho, em direção à praia. Quando Lucas chegou no quarto e foi até a sacada, viu-a de longe, os cabelos ao vento, rindo abertamente com um funcionário uniformizado de um quiosque à beira-mar, e a cena o fez sorrir de verdade depois de muito tempo.
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