29 - Só mais uma segunda-feira
A segunda-feira amanheceu chuvosa, o que fez Ana desistir de surfar. Estava se sentindo melhor da enxaqueca, mas o fato de passar a noite inteira acordando comprometeu seu descanso.
Já trocada e devidamente maquiada, foi até o refeitório para tomar um bom café da manhã. Ela sabia o quanto a alimentação era importante para recuperar o corpo e a saúde depois de uma crise como a que ela teve no final de semana.
Sentada numa das mesas em meio a apenas dois hóspedes que permaneceram na pousada, ela se pegou esperando que Lucas entrasse no refeitório. Foram raras as vezes que ela o viu ali, ou porque ele tomou café muito cedo, ou porque não tomou café.
No pouco tempo em que conviveu com ele, pôde notar como os horários dele eram caóticos e como ele parecia negligenciar as próprias necessidades. Ele passava longas horas sem comer, dormia mal, e quando dormia, era um sono tenso e pesado, como se estivesse morto de cansaço. Isso faria mal para qualquer tipo de pessoa, e ela não podia evitar a preocupação que sentia por ele. Por mais que quisesse se abster de sentir, não conseguia evitar pensar nele o tempo todo.
Do Luau até a notícia de que estranhos estavam perguntando sobre ela, o final de semana tinha sido um tornado de emoções e conflitos internos, no qual Lucas ocupou o vórtice. Ela ainda estava sentida com ele e não sabia nem ao certo o porquê. Quando ele bateu à sua porta na noite anterior, foi muito difícil para ela não abrir, e a decisão acabou custando sua noite de sono.
Sem querer saber se ele estava no quarto ou não, ela deixou o refeitório, se despediu do pai e correu debaixo de chuva até o veículo que já a aguardava em frente à pousada. O trabalho a esperava, e quando retornasse, se estivesse se sentindo menos insegura, talvez o procurasse para conversar.
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– Apareceu a "Margarida"! – exclamou Carla assim que a viu entrar no escritório.
– Bom dia para vocês também – Ana respondeu com um sorriso forçado.
– A gente ficou se perguntando onde você tinha se enfiado no sábado. Eu já estava em outra dimensão, mas o Pablo ficou preocupado com você. A Larissa disse que você tinha se enfiado na cama de algum ricaço por ali mesmo.
Ana ficou tensa com a auditoria dos amigos em cima da sua vida pessoal, principalmente agora que estranhos andavam fazendo perguntas.
– Que ideia mais absurda! Eu só estava me sentindo mal e resolvi ir embora.
– Ah amiga, você está subestimando nossa capacidade de xeretar a vida alheia! – Larissa comentou do outro lado da sala – a gente ficou sabendo que a senhorita saiu da festa, mas não saiu do condomínio!
Agora Ana estava realmente preocupada. Que gente mais impertinente!
– Espera! – Pablo entrou na conversa – Caramba, gente! Vocês duas, deem um tempo! Ela vai pensar que somos stalkers, pega leve, pessoal – e olhou para Ana – as meninas ficaram preocupadas com você porque você não avisou que tinha ido embora. Ligaram pra portaria para saber se você tinha saído e o porteiro falou que não. Tentamos chamar no seu celular, mas dava caixa-postal, depois telefonamos para a pousada e soubemos que você não ia voltar para casa. Foi só isso. Essas meninas gostam de tocar o terror.
"Só isso?"
– Quem estava preocupado, Pablo? – Carla perguntou de maneira travessa – esse carinha aí, Ana, é que ficou enchendo nosso saco para te encontrar. Não que nós não estivéssemos pensando onde você tinha se metido... ok, eu confesso que nem lembrava mais seu nome no fim da noite, mas ele ficou te procurando, então, relaxa, foi só um cuidado inocente.
– Certo – Ana respondeu, sem graça – me desculpem, só não estou acostumada com todo esse interesse em mim.
De fato, ela tinha se enfiado na cama de algum ricaço, algum amigo misterioso de Lucas, ela só não sabia quem era. Só mais uma das muitas perguntas sem resposta. Larissa cruzou a sala e, do nada, deu um abraço em Ana. A atitude da moça a pegou de surpresa.
– Que bom que você está bem, amiga. Desculpe nosso jeito, mas é que somos uma equipe, vá se acostumando, estamos aqui para você.
Ana sentiu os olhos molhados, comovida com as palavras de Larissa. Aceitou o abraço, agradeceu o carinho e voltou para o computador, disfarçando as emoções. Ela se deu conta de que andava tão sensível e com os nervos tão à flor da pele que quase caiu em prantos com o simples gesto da colega.
– Agora, assunto sério, pessoal! – Carla anunciou – hoje o Sr. Ricardo vem para cá. Deve chegar a qualquer momento. Ele pediu uma reunião com você, Ana.
– Comigo? Mas... Você sabe por quê?
Ela se sentiu insegura. Estava só dando os primeiros passos ali, será que já cometeu algum deslize?
– Relaxa. Ele sempre faz isso quando alguém é novo. Você foi contratada pelo R.H. mas, eventualmente, ele faz questão de conhecer toda a equipe pessoalmente.
– Certo. Vou me esforçar para não derrubar nada na sala dele.
As meninas deram uma gargalhada com a menção a um certo romance famoso, e Pablo sorriu, um pouco abobado com a simpatia e beleza de Ana.
A manhã passou rapidamente enquanto Ana analisava alguns relatórios e os traduzia para o inglês. Perto da hora do almoço, Ricardo chegou e cumprimentou a todos brevemente com um aceno de cabeça. Cinco minutos mais tarde, Carla a chamou para a antessala do escritório dele.
Ana adentrou o espaço e ficou impressionada com o luxo e requinte do lugar, todo em mármore e vidro. Após anunciada, ele pediu que ela entrasse, e ela o fez, com medo de, de fato, derrubar algo, como o próprio queixo no chão.
– Sente-se Ana. Como você está? – ele perguntou, cordial. Ela se sentiu um pouco menos tensa por causa do sorriso dele e a forma como ele a encarava, direto nos olhos.
– Estou bem, e o senhor, como está?
De perto, Ana o achou ainda mais elegante. O cabelo grisalho era perfeitamente cortado, a pele branca e lisa de tão bem barbeada era bronzeada e conferia a ele um aspecto saudável, mas o que mais chamava a atenção eram os olhos, de um azul muito profundo, quase hipnotizantes.
– Por favor, não me chame de senhor, ok? Posso descontar essa insolência do seu salário.
Ana arregalou os olhos para ele, depois relaxou quando ele começa a rir. O gelo se quebrou um pouco.
– Você acha que eu faria uma coisa dessas com você? – ele perguntou, ainda rindo.
– Na verdade, sen... você... como devo chamá-lo? De fato, eu não sei o que você poderia fazer comigo.
Depois de pronunciar as palavras, Ana sentiu um calor subir pelo rosto. Não tinha se dado conta do sentido dúbio que aquelas palavras poderiam ter. Ele poderia levar para o lado de que ela esperava algum comportamento inapropriado por parte dele.
– Me desculpe, eu não quis dizer... — ela tentou consertar.
– Tudo bem, fique tranquila – ele se apoiou com os cotovelos sobre a imensa mesa de vidro e a encarou mais de perto – eu não faria nada de que você pudesse se arrepender depois...
Ok. Agora estava ficando bem estranho.
– ... Como, por exemplo, mandar você traduzir um texto do árabe ou mandarim. Se acalme, garota! Estou só brincando com você – ele sorriu e recostou na cadeira de volta. O sorriso dele a ajudou a se acalmar, então ela respirou fundo e finalmente relaxou.
Eles passaram mais algum tempo conversando, ele fez perguntas de cunho profissional, e outras pessoais com o intuito de conhecer melhor o perfil psicológico dela. No fim, já estavam conversando como velhos conhecidos, e com isso ela percebeu como ele era extremamente comunicativo, carismático e relacionável. Com tal lábia, ele provavelmente conseguia tudo o que almejava.
Ricardo sinalizou que a entrevista estava terminando ao se levantar da cadeira. Ela fez o mesmo e enxugou as palmas das mãos ainda úmidas na saia. Só percebeu isso quando pensou que ele lhe estenderia a mão.
– Espere um pouco antes de sair, vou pedir que você leve uma papelada para a Larissa – ele deixou a sala por uns minutos.
Nesse curto período, Ana se sentiu à vontade para correr os olhos pelo espaço, apreciando alguns objetos de decoração aparentemente caros, porém meio sem sentido. Os móveis eram do mais alto padrão, a sala cheirava a couro, madeira e charuto. Na mesa dele descansavam dois porta-retratos que, curiosa, ela se inclinou para analisar de perto.
Em um deles, Ricardo parecia mais jovem, os cabelos ainda loiros, posando ao lado de uma linda mulher com traços indígenas numa espécie de embarcação. Estavam abraçados e aparentemente felizes. No outro porta-retrato ele estava mais velho, ao lado de uma jovem moça de cabelos pretos, lindíssima. Repentinamente ela se lembra da história de que ele tinha perdido uma filha, e se sentiu mal com isso. Nesse momento ele retornou à sala e lhe entregou os papéis.
– Bom, Ana, foi um prazer imenso conversar com você. Tenho certeza de que construiremos uma história de sucesso juntos – ele finalizou com um sorriso caloroso e finalmente lhe estendeu a mão. Ana deixou a sala, agradecendo efusivamente a oportunidade.
Quando a porta se fechou, ela cruzou o olhar com Carla e ambas sorriram em cumplicidade.
– Eu acho que ele gostou de você, hein? – Carla comentou.
– Eu espero mesmo que sim. Ele me pareceu muito simpático e... humano.
– Ele é um arraso, mulher! Por que acha que eu ainda estou aqui? – Ela deu uma gargalhada curta.
Ana riu também e seus olhos repousaram aleatoriamente numa das paredes da antessala, onde havia uma espécie de mural formado com várias fotografias. Eram fotos de Ricardo com personalidades famosas, jogadores de futebol, políticos e até atores. Entre elas, algumas outras imagens da mulher de cabelos longos e pretos.
– Essa mulher... era a filha dele? – ela perguntou à Carla, curiosa.
O sorriso de Carla murchou e ela respondeu de maneira triste.
– Sim, a Alice. Ela faleceu em maio. Não podemos falar disso aqui no escritório, por ordem do Ricardo. Isso ainda deve afetá-lo profundamente, imagino... perder a única filha, da forma como aconteceu, enfim...
Ana se distraiu do que Carla estava falando.
– Alice...?
– Sim, Alice Donatore. Foi bom que Ricardo gostou de você – Carla continuou, alheia ao avoamento de Ana – demorou para aceitar que precisava preencher ao menos uma das funções dela aqui. É sinal de que está tentando seguir em frente. Ana?
Impelida por uma inquietação estranha, Ana deixou Carla falando sozinha, entregou a pasta para Larissa e retornou à própria mesa.
Era claro que existia uma infinidade de Alices por aí, mas era a segunda Alice que surgia na vida de Ana sem que ela soubesse exatamente de quem se tratava, e isso era uma coincidência que valia a pena investigar.
Já no próprio computador, Ana abriu o navegador e digitou na barra de busca: "Alice Donatore". Uma série de links surgiram na tela, vários canais noticiando o acidente. Ela rolou a tela e clicou para ver imagens.
A tela se encheu de fotos de Alice, em várias mídias e com muitas pessoas. Ana costumava ser tão desligada de tudo que nem TV ela assistia direito, e quando assistia, optava por séries curtas da Netflix, então não tinha acompanhado aquele acontecimento, mesmo tendo ocorrido tão próximo a ela. Curiosa, abriu um site famoso de notícias para ler sobre o ocorrido.
"Alice Donatore, filha do famoso empresário Ricardo Donatore, faleceu vítima de uma queda de aproximadamente 15 metros da sacada de sua casa, na cidade de São Sebastião, Litoral Norte de São Paulo. O acidente ocorreu na noite de terça-feira, 11 de maio, porém o corpo só foi localizado dois dias depois, trazido pela maré. Familiares, amigos, personalidades e empresários do setor imobiliário lamentam a morte da socialite, que partiu jovem demais, com apenas 29 anos."
A fotografia mostrava Alice num conjunto social azul celeste que combinava perfeitamente com o azul dos olhos. Ana se impressionou com a beleza dela e sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Lembrou-se de Larissa falando que talvez tivesse sido suicídio. Uma queda de 15 metros... que coisa horrível!
Ana continuou clicando em links aleatórios numa obsessão em saber mais sobre a mulher de quem assumiu a função dentro da Donatore. Navegou pela aba de notícias e continuou rolando a página, até chegar a uma nota sobre o funeral. Sem pensar muito no porquê, talvez por conta dessas curiosidades funestas que fazem as pessoas procurarem imagens de acidentes na internet, ela abriu o artigo, e ao fazer isso, se deparou com uma imagem que fez seu mundo virar de ponta cabeça.
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