23 - Cedo e tarde demais
Lucas ficou um bom tempo tentando decidir o que fazer agora que os seus planos estavam comprometidos. Ele cogitou a possibilidade de deixar a pousada e se esconder em outro lugar, mas voltou a pensar em Ana, e isso o fez se acovardar.
Pensou em pedir algum conselho a um amigo. Ele não tinha muitos, nem sabia se poderia considerar seus parceiros como amigos. Tinha Garcia, seu braço direito por anos, a quem poderia confiar a própria vida. Foram muitas as situações que mostraram o respeito e o afeto do colega de trabalho, e talvez não fosse tão difícil falar do assunto com ele, já que o homem já fora casado e tinha filhos com a ex-mulher.
Tinha Morato, o mais jovem da D.P., um prodígio em perícia digital. Lucas gostava muito do rapaz, mas não queria abrir para mais ninguém suas desconfianças e tudo o que envolvia sua história. Tinha Alencar, que mais parecia um pai, mas Lucas não estava feliz com a forma como o delegado havia conduzido as coisas em relação a si.
Havia Lívia, também da perícia, uma grande amiga mas eles tinham um passado e isso poderia interferir no julgamento dela. E havia o Dr. Joaquim, cujos conselhos Lucas escolhera ignorar solenemente.
Irritado, pensou na discussão que tivera com Antônio, e os conselhos de Helena, sua mãe, invadiram sua mente como um anjinho do bem. Diferente do Dr. Joaquim, não dava para ignorar aquela vozinha fofa que a matriarca tinha nem o poder de persuasão que ela empregava.
"Lucas, seja sempre educado e cortês. Não aja por impulso. Respeite os mais velhos. Respeite as mulheres..."
Rendido, assim que se sentiu mais calmo, ele resolveu conversar com Antônio novamente. A animosidade o incomodava, principalmente porque a relação entre pai e filha não parecia muito próxima, e Lucas não tinha o direito de piorar as coisas. Determinado, buscou reunir todo o seu autocontrole, que já não era muito, e foi até a recepção para tentar dialogar.
– Olá, Sr. Antônio. Sei que os ânimos ficaram um pouco exaltados pela manhã, mas eu gostaria de me desculpar – Antônio não respondeu, apenas o olhou por sobre o balcão – eu não posso lhe dizer por que estou aqui, mas é importante, assim como é importante que isso fique em sigilo. Ana não tem nada a ver com isso, eu a conheci aqui e ficamos amigos, e é a mais pura verdade.
– Quais as chances de ela virar dano colateral dos seus problemas?
– Não há chances de isso acontecer. Eu não tenho nenhuma intenção errada com a Ana.
– Também não tem nenhuma intenção certa.
– Olha, vamos com calma! Não tem por que falar de intenção agora. A gente acabou de se conhecer!
– É... e se conheceram bem rápido.
Lucas respirou fundo. Ele sabia que Antônio era um homem mais velho, não devia fazer ideia de como Ana era de fato, e só por isso, desistiu de argumentar.
– Tudo bem. Vamos fazer assim: eu preciso concluir um único trabalho, e enquanto isso, eu vou conversar com ela. Não posso falar sobre mim ou sobre o que estou fazendo, mas vou tentar ser o mais transparente quanto é possível e permitir que ela escolha o que faremos a seguir. Está bem assim para você?
Antônio não respondeu, e Lucas resolveu voltar à suíte. Precisava parar de perder tempo e agilizar as coisas. Quanto antes conseguisse concluir a investigação, mais rapidamente poderia ficar livre de tudo e seguir com a vida. Focado nisso, abriu a mochila e tirou dela os envelopes que havia recuperado em sua casa na tarde anterior.
No primeiro constavam alguns documentos e fotografias que ele tinha deixado na casa da mãe no Guarujá. Não foi por displicência que ele abandonara aqueles papéis; foi porque não conseguia lidar com eles. Independente do fato, semanas atrás ele pediu que Luís, seu irmão, lhe enviasse de volta o material que ele deixara guardado numa das cômodas de sua antiga casa.
Sem saber como iria reagir, ele espalhou o conteúdo do envelope sobre a mesa. Dentre os papéis estavam sua certidão de casamento e o atestado de óbito de Alice. Os documentos o encaravam, ofensivos, como atestados de incapacidade, de impotência pelo fato de ele não ter conseguido fazê-la feliz nem a proteger.
"Felizes... até que a morte os separe. Que grande ironia!"
Junto aos documentos, estavam algumas fotografias do casamento que antes compunham os poucos porta-retratos da residência que compartilharam. As imagens mostravam uma Alice que não tinha mudado muito, já Lucas não conseguia se reconhecer nas fotos.
Na época ele usava o cabelo bem curto, raspado na nuca, não tinha barba nem olheiras e o corpo em plena forma parecia bem mais forte do que agora. Ele devia ter perdido uns 10 Kg desde a captação desta imagem, ao menos uns 6 Kg só nesses últimos meses, depois da morte da esposa.
Um último papel dobrado repousava sobre a mesa, intocado. Lucas não relera mais o conteúdo da carta desde a primeira vez, quando a encontrara. Tratava-se da mensagem que Alice deixara para ele antes de pular da sacada.
Ninguém nunca soube da existência da mensagem. A carta estava sobre a cama, dobrada, e antes de entrarem no quarto, antes de qualquer investigação, Lucas a encontrara e a guardara, e nunca divulgara sua existência nem seu conteúdo para ninguém.
Ele sabia que tinha agido errado. A carta era uma evidência, e ele não permitiu que tivessem acesso a ela. Lucas sabia que a carta poderia representar o fim de qualquer possibilidade de investigação. Essa foi a desculpa, o motivo que ele manteve na superfície, mas havia outro, camadas abaixo, muito mais real e doloroso.
Vergonha. O conteúdo, vexatório demais para ele, o expunha e humilhava sem a intenção de fazê-lo. Por isso ele o escondia de todos, até de si mesmo. Agora, depois de meses, ele se sentia diferente em relação ao fato. Tanto que abriu a carta e releu as poucas frases e, ainda que a vergonha não fosse tão angustiante, o impacto das palavras ainda era o mesmo de meses atrás, como dardos num quadro feito de gelatina.
"Lucas,
Me perdoe pelo que eu fiz. Eu não podia mais suportar viver assim, com tanta escuridão dentro de mim. Eu não o culpo nem nunca vou culpá-lo por isso, acredite em mim, pois eu te amo demais.
Não deixe que minha partida o impeça de ser feliz. Me prometa que vai se lembrar dos nossos momentos, principalmente aqueles que deixaram marcas boas em nossa história.
E por falar em marcas, quando sentir minha falta, lembre-se do nosso lugar favorito no jardim. Você poderá me encontrar lá, e quando você sentir a chuva no rosto, lembre-se da nossa paineira, onde nos abrigávamos e onde permanece uma lembrança tão forte do nosso amor. Assim como nossos nomes entalhados, levo você comigo, e tudo o que eu quero é que você seja feliz.
Eu te amei com toda a minha vida.
Alice."
Lucas secou uma lágrima que ele sequer percebeu que vertera. Talvez não estivesse pronto a lidar com isso ainda, talvez fosse cedo demais, mas não importava o quão cedo parecia, era tarde demais para Alice. Angustiado, guardou a carta e os demais documentos e fotos de volta no envelope e o devolveu à mochila.
Na sequência, ele abriu o envelope sem identificação deixado por Jair e despejou sobre a mesa os diversos dispositivos de armazenamento. Os periféricos não tinham identificação, então Lucas separou uma caneta permanente e escolheu um, aleatoriamente.
Depois da queda de Alice, Lucas ficou focado nas buscas e não se preocupou com mais nada. Quando o corpo foi encontrado, a primeira coisa que ele fez foi checar as câmeras de segurança, e foi quando constatou, perplexo, que algumas câmeras, mais precisamente a da entrada e uma das câmeras do jardim, estavam desativadas, ou pelo menos não havia registro das gravações.
Na ocasião, Lucas averiguou o sistema de segurança e notou que não havia nada de errado com o equipamento, o mesmo estava em pleno funcionamento. Como sabia que todos os registros possuíam um backup numa central de segurança - isso porque Alice coordenava essa parte da segurança do condomínio - ele procurou a administração e foi informado que o material fora entregue ao responsável pelas investigações. Depois disso, Lucas foi afastado e não pôde mais ter acesso ao conteúdo das filmagens.
Agora, finalmente ele estava de posse do material na íntegra graças ao seu amigo porteiro, o Jair. O homem quebrara diversas regras para conseguir isso para Lucas, que agora tinha a esperança de encontrar alguma pista em algum dos dispositivos à sua frente.
Ansioso, conectou o primeiro flash drive na entrada do notebook e começou a assistir à gravação em modo acelerado. Não encontrando nada relevante, marcou o dispositivo com "V" em caneta permanente. Na sequência, ele escolheu outro, depois outro, e fez o mesmo processo repetidamente.
No sexto e, ironicamente, último dispositivo, enquanto observava sonolento a passagem rápida de câmera, algo chamou sua atenção e ele pausou o vídeo. Voltou alguns segundos e soltou a gravação em modo lento, olhando atento para a filmagem. Seu coração ficou subitamente gelado quando ele pausou em um quadro.
Seria possível? Ele marcou o tempo de filmagem num app de bloco de notas e continuou assistindo, quadro a quadro, a sequência da gravação enquanto seu estômago embrulhava e a raiva borbulhava. Aguardou o final do registro, removeu bruscamente o periférico e o marcou com um "X".
Profundamente irado, Lucas recostou na cadeira e fechou o notebook com mais força do que pretendia. A vontade que ele tinha era de jogar tudo na parede, mas seu histórico em lançamento de computadores o impediu.
Como pôde ser tão estúpido? Tão cego? Ele era a porra de um investigador que não conseguia perceber a merda fedendo bem debaixo do próprio nariz!
– Puta que pariu! Merda, merda, merda!
Ele se curvou sobre a mesa, os dedos bagunçavam o cabelo já despenteado, a mão direita tremia incontrolavelmente enquanto ele se esforçava para regular a respiração. Talvez fosse por isso que ninguém o deixara checar as filmagens. Ele imaginou seus parceiros rindo as custas dele pelos corredores da D.P., exatamente como deviam estar fazendo neste exato momento.
Agora que ele não ia mesmo embora da pousada. Nem fodendo! Ele ia terminar essa merda de investigação de qualquer jeito, custasse o que custasse, mesmo que o final fosse completamente diferente do que ele esperava.
Mesmo que toda a merda atingisse quem não merecia.
Mesmo que tropeçasse em Ana no meio do caminho.
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