2 - Risca de Giz
Eram quase seis da manhã. Ana contemplava o vermelhão do firmamento, enlevada pela explosão de cores que prenunciava o amanhecer. Ela já havia entrado na água e remado um pouco, mas desistiu por estar cansada, afinal, tinha dormido muito mal à noite. Conformada, resolveu apenas ficar por ali, curtindo o som das ondas e a brisa ainda fresca do mar.
Ela gostava de ver o nascer do sol, apesar de detestar acordar cedo. Parecia incoerente, mas mesmo gostando tanto de dormir, se obrigava a levantar antes do amanhecer para surfar, primeiro por ser um horário mais tranquilo com a praia vazia e o mar favorável, segundo, porque era uma forma de ser resiliente consigo mesma. Também tinha o fato de que precisava ficar disponível para os afazeres na pousada na parte da tarde, já que Antônio assumia o horário da manhã, e isso fazia com que ela concentrasse tudo o que precisava fazer no período matutino.
E ela detestava aborrecer o pai.
Antônio sempre fora um homem bem reservado. Na casa dos 50 anos, viúvo desde o nascimento de Ana, ele não transparecia mágoa ou tristeza por ter perdido a esposa no parto da filha. Ana, contudo, sabia que dores assim não se curavam totalmente, então, a relação entre pai e filha era cordial, porém retraída.
Embora Ana fosse uma pessoa calorosa e afetuosa, Antônio, por sua vez, era um homem bronco e fechado, o que tornava qualquer demonstração de carinho muito rara. Talvez por isso Ana nunca tenha conseguido sair dali. No fundo, tinha medo de que, se fosse embora, seu pai se esquecesse tão rapidamente dela quanto se esquecia dos clientes da pousada.
Por crescer sem a mãe, ela aprendeu a ser independente e conhecer a essência de ser mulher de forma precária e na base da experimentação. Essa falta da mãe, associada à carência em relação ao pai, fazia com que, embora rodeada de pessoas, Ana se sentisse só na maior parte do tempo. Mas tudo bem, ela estava bem assim e isso não lhe tirava o sono.
Bom, talvez tirasse um pouco.
Distraída, com os olhos acima da linha do mar, ela acompanhava um avião de pequeno porte que riscava o céu como giz branco num quadro multicolorido. A linha branca e fina era lentamente pulverizada no ar. Ela ficou divagando sobre como o efeito de uma máquina tão potente podia ser tão efêmero, e especulou quem estaria pilotando o bimotor. Seria o dono do avião ou algum funcionário?
Tinha muita gente rica em São Sebastião, mas não era o caso dela. Apesar de trabalhar em um negócio familiar com períodos de lucro considerável, os ganhos da pousada eram bem sazonais. Ela e o pai precisavam cuidar muito bem das finanças ao longo do ano para conseguir pagar as contas nos períodos de turismo fraco.
Ana não se considerava uma pessoa ambiciosa. Apesar de ser formada em Letras e falar dois idiomas além do português, ela gostava de ajudar na pousada e utilizava sua formação para conseguir trabalhos como freelancer, traduzindo materiais corporativos, tarefa que desempenhava tranquilamente durante os plantões na recepção. Tais trabalhos lhe garantiam algum dinheiro, do qual ela guardava a maior parte.
Às vezes, batia nela uma ansiedade, uma vontade de fazer as coisas de modo diferente, e precisamente era isso o que vinha tirando seu sono ultimamente. Ela pensava, desejava, mas logo vinha o desânimo e nada mudava em sua rotina. Resiliente para algumas coisas e procrastinadora em muitas outras, já estava perto de completar 25 anos de idade e ainda continuava no mesmo lugar, sentada na areia, como uma adolescente que ainda não decidira seu futuro.
≈
Já fazia um certo tempo que Lucas estava por ali, a alguns passos dela, a sondá-la enquanto observava o mar. Depois de mais uma noite mal dormida, ele tinha saído para caminhar pela praia para espairecer, e quando estava voltando, viu a garota da pousada sentada na areia, absorta nos próprios pensamentos.
Ele ficou especulando sobre o que fazia uma moça tão jovem ter um ar tão profundo. O cabelo molhado e emaranhado não lhe dava mais do que 15 anos, mas a expressão denunciava mais maturidade. Sem dar muita importância ao fato, ele finalmente se aproximou dela.
– Bom dia, tudo bem?
Ana se assustou com o cumprimento. Estava tão compenetrada que não o viu se aproximar. De novo. "Ele não sabe fazer barulho?"
– Tudo bem, sim. E você?
Ela sorriu para ele, um sorriso tão leve e natural que o fez se sentir melhor apenas por merecê-lo.
– Tranquilo. Você surfa?
Ana estava usando uma wetsuit, sentada na praia ao lado da prancha de surfe, e Lucas se sentiu meio idiota por perguntar o óbvio. "Não, imbecil, eu pesco!", a imaginou respondendo.
– Não muito bem – ela confessou – mas eu me esforço bastante. E você, caminha?
A pergunta soou mais como uma brincadeira. Lucas estava usando uma camiseta clara, bermuda de sarja e um tênis que provavelmente devia estar cheio de areia. Os óculos continuavam lá, e o cabelo estava todo bagunçado por causa do vento.
– Caminho, mas nunca vou muito longe.
– É só não perder o ritmo – ela sorriu novamente, ignorando o duplo sentido da resposta. O sorriso dela o aqueceu um pouco mais.
– Sempre quis surfar – ele comentou depois de um breve instante – mas nunca tive tempo para aprender.
– É mesmo? E você mora perto do litoral?
– Eu sou do Guarujá, mas morei algum tempo aqui em São Sebastião.
– Legal! Conheço tudo por aqui. Onde você morou?
Lucas não respondeu. Por mais que se sentisse levemente relaxado depois de meses de tensão, num local neutro e com uma desconhecida, ele se calou. Sabia que precisava fazer seu trabalho na surdina, sem chamar a atenção e de forma muito cuidadosa, pois não tinha autorização para fazer o que vinha fazendo ultimamente.
– Eu preciso voltar para a pousada – ele deu meia volta – a gente se vê.
– Espera! – Ela se levantou tirando a areia das coxas e quadris – vou aproveitar e voltar com você.
Não era intenção dele voltar imediatamente para a pousada. Só pretendia interromper o diálogo saindo de perto dela, mas ficou sem graça de dispensá-la sem motivo. Ela se abaixou para pegar a prancha, e o movimento colocou os quadris dela em seu campo de visão, e ele se pegou encarando o corpo moldado pela wetsuit ainda úmida. Ficou constrangido com a própria atitude.
– Você quer ajuda? – Ele perguntou, apontando para a prancha.
– Não... fique tranquilo. Estou acostumada.
Ana o seguiu com uma expressão matreira. Pequenos vincos surgiram, um de cada lado dos lábios, quando ela ameaçou mais um sorriso. Era um sinal de que sorria muito e que talvez não fosse tão adolescente quanto ele imaginava.
O percurso até a pousada foi feito em silêncio, o que ele apreciou bastante. Quando já estavam na entrada do estabelecimento, ele se rendeu à curiosidade.
– Há quanto tempo você surfa?
– Eu não me lembro bem, mas já tem alguns anos. Foi quando comecei a ajudar o meu pai na pousada. Frequentemente eu preciso lidar com a arrumação, o café da manhã e outras tarefas que envolvem um subir e descer de escadas interminável, então, para ter pique e dar conta de tudo, eu comecei a surfar três vezes por semana, sempre ao nascer do sol.
– E por que o surfe e não uma academia?
Ela ficou intrigada com o tipo de curiosidade dele. Não era uma pergunta muito comum. Geralmente o assunto acabava quando ela punha a roupa emborrachada. Ninguém nunca perguntara por que ela preferia deslizar em ondas ao invés de suar em profusão num ambiente fechado e cheio de ferro.
– É porque eu gosto do desafio. Essa é uma praia de surfistas, tenho amigos que surfam e acho que o interesse foi natural, pois é algo comum por aqui. E porque, definitivamente, eu odeio academia e esses exercícios que não trazem nenhum divertimento.
Lucas quase sorriu com o comentário. Essa perspectiva nunca havia cruzado sua mente. Para ele, exercícios sempre foram um meio para um fim, nunca um fim. Na Academia de Polícia, o treinamento seguia um ritmo intenso, frequentemente levando o corpo ao extremo. Para a função que ele desempenhava, puxar ferro era tão essencial quanto comer ou dormir, embora, ultimamente, ele não estivesse cumprindo adequadamente nenhuma dessas três atividades.
– Você é daqui? Quero dizer, sempre viveu aqui? – Ele mudou de assunto.
– Sim. A minha vida toda.
– Você mora perto da pousada?
– Olha... Eu acho que isso não lhe diz respeito.
Ana procurou estabelecer um limite, sem se preocupar em parecer rude. Por passar a maior parte do tempo na recepção, ocasionalmente se deparava com hóspedes inconvenientes, solteiros que se estabeleciam por períodos curtos e estavam sempre em busca de diversão e companhia.
O interesse dos rapazes a surpreendia um pouco, já que ela não se considerava uma garota bonita. Na verdade, considerava-se bastante medíocre, mas estava acostumada a se esquivar dos mais insistentes. Não parecia que o novo hóspede tinha alguma intenção nesse sentido, mas infelizmente, ela não podia sondar, pois os óculos escuros dele ocultavam qualquer expressão em seu rosto.
– Peço desculpas. Eu não quis parecer intrometido – ele nem tinha percebido que parecia mais um policial colhendo o depoimento da garota.
Ana assentiu e continuou em silêncio. Não era hábil em conduzir conversas longas ou curtas. Crescera muito sozinha, e o silêncio sempre lhe fora reconfortante. Talvez por isso, nunca tenha se aprofundado muito em relacionamentos, mesmo conhecendo muita gente.
– É um hábito – ela respondeu, por fim.
– Eu sei como é.
– Sabe?
– Sim. Às vezes, devido ao trabalho, aprendemos a nos comportar de uma maneira específica. Entendo que você precisa estabelecer limites entre você e os clientes da pousada.
Ela ficou aliviada por ele entender, e intrigada por ficar aliviada. Não era como se ele a estivesse incomodando, absolutamente. Talvez fosse o jeito dele de fazer as perguntas, ainda que pessoais, não pareciam totalmente invasivas pela maneira como ele perguntava. Parecia mais curiosidade pura e simples, sem segundas intenções.
– No seu trabalho, você também precisa estabelecer limites?
Lucas se surpreendeu com a pergunta. Ela não fazia ideia do motivo de ele estar ali, e ele pensou na ironia dessa situação.
– Eu não quero falar sobre o meu trabalho, se não se importa – respondeu ele de maneira reservada.
– Me desculpe – murmurou Ana, encabulada.
– Não precisa pedir desculpas. Só estou de férias e prefiro não pensar em trabalho, ok?
– Ok.
Ela sorriu novamente, como se quisesse dissipar o constrangimento com um raio de sol. E conseguiu, pois ele sentiu o peito aquecer com o sorriso.
– Bom, vou tomar o café da manhã então... – ele afirmou, mas não se moveu; não conseguia entender por que estava demorando tanto para entrar na pousada. Uma brisa mais forte passou por eles, e ele percebeu um aroma que vinha dela. Não era exatamente um perfume, mas uma mistura de cheiro de pele, baunilha, sal e algo mais.
– Foi legal caminhar com você. A gente se esbarra por aí – ela finalmente encerrou o assunto, depois se embrenhou por um portão lateral e desapareceu.
Ele removeu os óculos e esfregou os olhos cansados. Por um breve momento, apenas um instante fugaz, tinha se esquecido dos próprios problemas, mas eles retornaram à mente assim que a brisa levou embora o aroma da garota e trouxe de volta o cheiro de sal. Frustrado, foi em direção ao refeitório para tomar o café da manhã.
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