033: Recomeço
Nunca, jamais, reparei no quanto o pessoal de casa era silencioso pela manhã quando se preparavam para seguir suas rotinas diárias até hoje — em plena quarta-feira — ouvir o barulho infernal que alguém fazia no andar de baixo.
Deus, que horas são mesmo?
Eu arrasto meu rosto no travesseiro a fim de me livrar do cansaço da noite anterior no mesmo tempo que tateio ao meu redor a procura do meu celular para ver as horas, até me lembrar, poucos minutos depois de estar sentada, que perdi o aparelho em algum lugar e não o encontro desde domingo.
Como eu posso ser assim, hã?
Eu devia estar mais preocupada com o meu celular, não? Talvez, entretanto agora estou curiosa em saber quem foi o responsável por me acordar, e mais, onde foi o dito cujo agora que o barulho foi substituído pelo habitual silêncio.
Me empurro para fora da cama em direção ao banheiro onde escovo os dentes e lavo o rosto pálido com traços de um madrugada passada em branco, porém, desta vez não é cara de derrota que tenho, hoje consigo notar meus lábios levemente esticados em um sorriso discreto, responsável por me lembrar de tudo quanto aconteceu mais cedo neste mesmo banheiro e logo depois no jardim de casa para se finalizar no escritório do meu pai.
Suspiro, mas tenho para mim que este foi de alívio ou algo assim. Eu estou me olhando no espelho e não desvio o olhar nem um segundo sequer por repulsa. Essa é você Igith... Lembro para mim mesma, e rio um pouco da situação caótica que estão meus cabelos quando saio do cômodo e sigo à cozinha desse mesmo jeito, lá onde encontro apenas minha irmã tomando cereal consoante cantarola baixinho uma música infantil.
Eu chego de supetão atrás dela e inclino o rosto de modo que possa deixar um beijo estalado na bochecha dela, o que mais detesta por sinal.
Bursinha vira o rosto no mesmo instante para me encarar sem soltar a colher da boca, tem uma expressão de repreensão no rosto, de quem deixa claro que isso não é coisa de se fazer de repente.
Dou um risinho bem baixo contornando sua cadeira a fim de chegar a que está na sua lateral e poder encará-la melhor. Ela tira a colher da boca e respira fundo, entretanto, não a vejo limpar a região que beijei como de costume.
— Deve parar com isso, mana — reclama ela, fazendo careta. — Não gosto.
— Nem eu — replico. — Mas com você é diferente. — Pisco um olho e me dirijo ao armário, pego na minha caneca e me sirvo de um pouco de café na mesa ao me sentar do seu lado. — Quem estava fazendo barulho tão cedo?
Bursüm dá de ombros, desinteressada. Acho engraçado que quando ela come, conversa é a última coisa que deseja, principalmente pela manhã.
— Não é tão cedo assim. — Paro de sorver minha bebida amarga assim que me volto para porta e vejo a minha vó entrar por ela carregada de dois regadores médios, na certa, vazios. Ela caminha até a pia e deixa os objetos sobre a bancada antes de se virar para mim que já a estou analisando conforme tomo café. — É quase meio dia.
Ela aponta com o indicador para o relógio fixado na parede diagonal da porta do cômodo no qual estamos. Uau, então eu dormi muito mesmo. Ou não. Eram umas três da manhã quando peguei no sono se não me engano.
— São quase dez e meia vovó... — reafirmo. Ela maneia a cabeça sutilmente. — E, bom dia Büyükannem.
Pela forma que ela me olha, com um sorrisinho bem discreto, eu posso presumir que sim, ela já sabe da conversa que tive com meu pai hoje cedo no seu escritório. O que me deixa feliz e ainda mais aliviada quando ela me responde, sem remorso, sem dureza. Apenas como a minha avó Yamenet responderia.
— Bom dia Igith — ela indica para que eu me levante ao constatar que suguei todo o meu café em menos de cinco minutos. Não me julguem, fazem sete horas que não como nada. Como não sei o porquê dela me pedir para ficar de pé, eu simplesmente paro feito boba e a encaro negar com a cabeça como se eu fosse lerda. O que não estaria tão errado assim se for a ver os fatos... — Vem me ajudar aqui menina.
— Ah... — eu sopro apenas essa palavra, animada. Nem reclamo de estar enchendo os regadores por ela, pelo contrário, faço com muito prazer. Vovó Yame diz que vai os esperar no jardim e eu apenas assinto, ainda que soubesse que não era tão forte quanto aquela velhinha em carregar o peso que eram os dois cheios de água.
Quando finalizo, estou prestes a sair da cozinha quando Bursüm me aborda com um aceno de mão, que me obriga a parar e trocar o peso do corpo de um pé para o outro.
— Achei o seu celular por aí ontem, deixei-o a carregar na sala. A esta altura já deve estar cheio. — Eu juro que não sou tão ligada ao aparelho, mas a felicidade que sinto por saber que não preciso mais procurar por ele, ou então comprar um novo é grandíssima.
— Ai, você é mesmo minha anjinha da guarda — me curvo para beijá-la só por provocação, já esperando que se afaste, no entanto, Bursum deixa que eu finalize o ato, ainda que limpe a região logo a seguir. — Que fofa.
Ela dá uma risadinha.
— Só não se acostume muito com isso. — Declara divertidamente. — Vai lá mana, a avó deve estar a ponto de vir te puxar aqui.
— Não quero ela brava comigo outra vez. Então até logo. Adoro você.
— Adoro você.
Eu caminho em direção ao jardim com o coração aos pulinhos de tanta ansiedade. Ela vai mesmo conversar comigo... E, então, o nervosismo surge em mim quando entendo essas palavras ao passo que abro as portas traseiras, uma por uma. O que vovó Yame vai falar para mim agora?
Vendo ela alguns passos de mim curvada na direção de suas roseiras, suas flores favoritas, minha avó parece distraída com a visão que tem das amigas. Sim, ela afirma que as plantas lhe compreendem e essas coisas.
Atravesso o caminho de concreto ansiosa por largar logo os vasos de uma vez, ainda que ande com muita calma até chegar a mais velha e chamar sua atenção de modo que ela se ergue e se volta para mim, as feições mais leves que nos dias anteriores.
Ela pede que eu deixe os regadores próximo ao carinho de mão ali perto e, ao fazê-lo, eu noto pela primeira vez que faz bastante tempo que não olho para as flores da minha avó.
As rosas em especial, essas que me deram um lição tão grande que jamais pude imaginar ter. Elas estão lindas, mais rubras perante os feixes de luz que escapam por entre as nuvem que tentam esconder o sol. Ainda assim, continuam tendo seus espinhos... Traços desagradáveis por assim dizer, e, contudo, os que lhes fortalecem.
— O que achou delas? — A voz rouca da senhora Yame soa ao meu lado no mesmo instante que sua mão pousa em minha lombar, me fazendo dar um pulinho de suspresa até relaxar de fato. Seu toque era assim, relaxante para mim. O melhor do mundo todo. — Querin tem feito um ótimo trabalho aqui.
— Estão lindas, bem cuidadas. Diferente de quando sou eu quem tem que fazê-lo.
— Só porque não se dedica — diz ela, lenta e suavemente, me fazendo encará-la. — Porque quando você, Igith Kefrām, minha menina, quer algo, você consegue. Sempre. E apesar de saber disso, ainda esconde de si mesma como se fosse horrível ter determinação a esse ponto. Não é, pelo contrário, é bom ter garra para enfrentar as dificuldades que vem pela frente. E você já enfrentou tantas delas, que me faz crer que ainda irá enfrentar milhares de pé, engatinhando, ou até caída no chão. Porque você é uma garota forte e me orgulho disso. Tem muito para melhorar? Tem. E sei que vai, ainda vem longos anos para que isso aconteça.
Ela pega em ambas minhas mãos, mas sou eu quem peço sua benção como faço sempre que posso ao beijá-las e levá-las a minha testa. Ao encarar ela novamente, me contenho muito para não chorar, porque, poxa, essa sim é minha forma de demonstrar o quanto sinto tudo isso.
— Vovó, eu não vou mentir, eu odeio quando me dá sermões — falo uma verdade que guardava dentro de mim há tempos. Então, continuo: — Mas lhe agradeço bastante por fazê-lo. Muitas vezes tem sido eles que me fazem enxergar com clareza as situações, graças a eles consigo moldar mais uma parte de mim a cada vez que os recebo, graças a eles recupero uma pecinha minha ou reconstruo algo que em mim foi quebrado. É também graças a eles que tenho me tornado Igith mesmo que antes não percebesse, desde o dia em que a senhora lavou-me daquele homem sem ao menos ter a certeza de que ele havia me sujado.
— Igith, até à última batida do meu coração estarei disposta a lhe dar sermões se isso for te fazer uma grande mulher. E eu sei bem que o serás. — Devolve serenamente, e eu, emocionada, sorrio, pela primeira vez em cinco dias abraço a mulher baixinha que pelos cinco anos anteriores tem sido meu alicerce antes mesmo que eu ou meus pais percebessem que eu precisava de um. Inalo o ar intensamente e a abraço forte, tamanha a saudade que tive desde contato.
Certamente, tão emotiva quanto eu, minha avó chora em silêncio até se afastar de mim e levar uma de suas mãos até meu rosto e alisá-lo com carinho.
— Sou tão sortuda por te ter — eu digo, em suspiro de alegria.
Ela sorri.
— E eu a ti, bobinha. — Garante, feliz. — Mas tem que fazer isso valer a pena, o que acha de me ajudar com as plantas?
Ah, não.
Eu não consigo conter uma careta de desgosto ao ouvir suas palavras, a qual faz-lhe rir de mim quando dá um tapinha no topo da minha cabeça.
— Fazer jardinagem não é ruim, sabia?
Eu me encolho, gruhuindo pelo impacto nada sútil. Ela deve ter sentido saudades disso. Coçando a região afetada eu contra-argumento:
— A-hã, mas... Não estou disposta a por às mãos na terra tão cedo vovó, e mais, nem sou muito boa nisso. Chame o Querin, ele sim te ajuda e ainda dá um bônus tirando o lixo.
Vovó Yame revira os olhos com força como se estivesse entediada e se volta para suas plantas, levando as mãos à cintura.
— Ele não está aqui.
— O quê? Onde ele foi?
— Estão se mudando, ele o Ur. Parece que os planos da mudança surgiram mais cedo por um certo motivo.
Eu ignoro a parte que eles estão se mudando cedo por minha causa, e foco no ponto que ninguém nunca me conta nada nessa casa. Como posso ser sempre a última a saber das coisas?
— Meu Deus, vocês me excluem tanto! Como ninguém pensava em me contar antes? — Indago chateada. Vovó me olha por cima do ombro, sorrindo travessa para mim.
— Eu acabo de contar, e mais, duvido que eles planejavam fazer essa mudança até essa manhã. Devia ir vê-los, a esta altura já devem estar levando as últimas coisas.
— Posso mesmo?
— A-hã — assente. — Mas, Igith... — eu escuto, atenta, ainda que esteja muito, muito ansiosa mesmo por ir ao encontro deles. — Eu gosto de ver você sorrir. E gosto de ver vocês fazendo bem um para o outro. Desde aquele dia que os vi saírem do banheiro juntos, acreditei estar presenciando o início do vosso relacionamento. E estava realmente certa.
Meus ombros relaxam, eu relaxo. Olhar para ela é relaxante.
— Você, avozinha querida, dificilmente erra. — Então beijo demoradamente sua bochecha antes de entrar disparando para dentro de casa.
E juro que só faltava um tantinho para que eu tocasse a massaneta até que...
— Igith? — Ah não. A voz do meu pai soa vinda da cozinha, bem baixa.
O que ele está fazendo em casa a uma hora dessas?
Eu tenho que recuar e adentrar o cômodo onde senhor Onur está parado diante da janela da cozinha apreciando sei lá o que do lado de fora enquanto toma seu típico chá preto.
Seus cabelos castanhos estão estranhamente menos organizados que nos dias corriqueiros, e está vestido casualmente em calças cáqui e camisa xadrez com as mangas arregaçadas nos cotolevos.
Uau.
Me aproximo de modo a estar parada do seu lado e juro que fico até surpresa com a imagem que prendia a atenção do meu pai. Ur e Querin transportando dois sacos enormes contendo certamente suas coisas. Uma visão curiosa e muito chamativa para mim. Ambos parecem entredidos a ter uma conversa que da distância que estou parece os fazer rir. E que quando me induz a sorrir também, eu não me surpreendo muito, pelo contrário, penso que isso vai ser mais corriqueiro do que imagino.
Eu afasto as mechas que grudam minha testa para trás e me volto para o meu pai, disposta a encerar logo a conversa antes mesmo de comecá-la abro a boca para falar, porém a fecho no minuto seguinte porque Sr. Onur se antecipa e me pega de surpresa com suas plavras.
— Você gosta mesmo dele. — Acredito que era para ser uma pergunta, mas soa mais como uma afirmação de descrença ainda que ele não aparente ter desgosto nessa situação. Quando me encara, eu mordo o interior da bochecha, meio nervosa, meio constrangida.
Desvio o olhar somente para fitar novamente os dois garotos agora mais distantes de casa, e, olhando fixamente para Querin e lembrando de tudo que ele é para mim, tudo que ele me fez entender que quero ser eu torno a encarar meu pai e assinto com um sorrisinho tímido esboçado no rosto.
— Eu gosto mesmo dele.
— E é recíproco? — O interesse na resposta que darei é palpável. Meu pai sopra seu chá bem suave sem tirar os olhos de mim. Eu aceno com a cabeça. Duas vezes. Não pareço convencê-lo tanto assim. — Se caso ele magoar você...
Agito as mãos frente ao peito. Suspiro, me acalmo e digo por fim: — Não espere por isso, pai. Ele é um garoto legal e respeitoso, você o conhece. Então fica tranquilo. Confie em mim, e nele.
Nesse instante, a porta de casa se abre, anunciando a entrada de alguém. Dou uma olhada pela janela, mas não vejo quem possa ser, nem pelos passos da pessoa subindo as escadas.
— Não confio em garotos — replica simplesmente, voltando o corpo para olhar outra vez pela janela, e após tomar um gole de chá, continua sua fala. — Mas acredito que ele tenha boas intenções com você, na verdade, quero esperar por isso assim como anseio confiar em você e receber o mesmo em troca.
Pisco os olhos vezes seguidas, um tanto exagerada, mas só porque é inegável a felicidade que sinto por ouvir essas palavras dele.
Sorrio preguiçosamente, e enlaço as mãos frente ao corpo, bem calma.
— Prometo que vai ser assim.
— Sendo assim pode ir — eu semicerro os olhos, um pouco perdida. Papai nega com a cabeça, o entendimento de que sou meio lerda vem em cheio. — Estava indo atrás deles, não?
Dou uma risada baixa e sem graça e assinto, mas antes de me virar pelos calcanhares pergunto:
— Por que não foi trabalhar hoje?
— Tirei o dia de folga uma vez que sua mãe acordou resfriada.
— Pode isso?
— Quando se é o chefe, sim. — Diz, em tom presunçoso. Eu rio e aceno mais uma vez.
— Certo então — sorrio, recuando um passo. — Nos vemos mais tarde.
Meu pai estreita os olhos, parecendo que vai falar alguma coisa quando deixa sua xícara sobre o balcão da pia e me analisa estar prestes a fugir dele. O que com certeza eu faria se não me ocorresse voltar até o mais velho e lhe abraçar meio hesitante, a ver se me acostumo com o gesto.
Onur, com quem tive pouco contato nos últimos cinco anos, hesita também ao envolver meu corpo pequeno se comparado ao seu, mas se atreve a deixar um beijo afável no topo da minha cabeça.
— Obrigado — sussura, bem baixo. — Sinto muito orgulho de você.
— Eu que agradeço. — Me afasto dele e aprecio o meio sorriso que decora seus lábios no momento. — Agora sim, vou indo...
— Já sabe: mantenham uma distância considerável.
E é impossível não dar risada quando de fato fujo dele e saio às pressas de casa, apreciando a brisa no lado de fora e o solzinho gostoso que acaricia minha pele, dando a impressão de ser mais bronzeada que o habitual.
Eu sigo em direção a casa do senhor Feruk, um pouco intrigada comigo mesma por, em dado momento, não ter pensado sequer em trocar o pijama para atravessar a rua ou penteado os cabelos que voam para todas direções e atrapalham minha visão a medida que ando e...
— Ai meu Deus! — Eu berro quando alguém cutuca minha cintura por trás, e me viro para encarar a pessoa mal amada no mesmo instante, com o olhos arregalados de susto e a mão agora no peito por conta das batidas frenéticas do meu coração chocando contra as costelas. — Não faça isso, Ur! Um dia você me mata do coração...
E eu não estou brincando, a maneira que meu coração bate só demonstra o tanto que detesto toques supresas. Ainda não estou acostumada, e, acho que ele percebe isso ao tombar a cabeça para o lado e me olhar arrependido.
— Foi mal, Igith — ele ajusta os sacos de lixo que estão usando para transportar suas coisas de uma casa para a outra.
Eu respiro fundo, mais calma Agora.
— Deixa para lá, só... Não me aborde assim... dessa maneira. Ok? — Ele promete que nunca mais faz isso e indica o caminho para que continuemos. Ainda que tentamos fingir, acabamos que o assunto ainda nos deixa meio tensos, acredito que será assim por muito tempo, não é algo fácil de se falar na verdade. Por esse motivo eu decido mudar logo o rumo da conversa. — Por que estão se mudando tão cedo?
— Pelo motivo que está te levando até lá. — Responde ele me olhando de esgrela antes de me passar um saco de lixo sem nem perguntar se o quero ajudar. Não queria. Eu franzo o cenho, que tralhas Ur está levando aqui para isso pesar tanto?
— Que motivo?
— Hm... Deixa eu ver — meu irmão assume uma falsa expressão pensativa, como quem procura por uma boa resposta que certamente já tem em mente. — O meu amigo, talvez.
É estranho que uma risada sem graça escapa por entre meus lábios. Ai, ai.
— Eu não estou indo lá por conta dele — não totalmente, claro. Quero conhecer a casa deles também.
— Você é transparente demais para ser uma mentirosa, maninha. Foi só eu mencionar ele que seus olhos brilharam.
Ah meu Deus!
Eu me sinto ruborizar na hora, e então entendo do que Ur fala. No entanto, me atrevo a perguntar de uma vez a ele algo que queria há algum tempo.
— Isso te incomoda, Ur? — Não estou sendo arrogante e muito menos sarcástica. Quero mesmo saber da opinião dele como meu irmão e amigo do Querin. Olho para ele, que chutava uma pedra até surgir essa pergunta e ele parar no gesto e me encarar, transparecendo sinceridade.
— Não, Igith. Isso não me incomoda. — É direito, sem joguinhos ou provocações a que estou habituada. Ur leva uma das mãos aos cabelos castanhos clareados pela luz do sol e os afasta da testa, baixando o olhar novamente para seus pés. Sim, precisa de um corte urgentemente. — Sabe, sei que não gosta de falar nisso e para ser sincero nem eu curto o assunto, mas é uma realidade que a gente não pode infelizmente apagar, né? Vou só dizer que me sinto feliz que esse episódio da sua vida não esteja te impedindo de recomeçar não só por esse lado, mas por todos, com alguém como ele, um cara gente boa como o Querin, porque embora eu sinta vontade de dar um soco na cara dele por ter decidido logo ficar com você, eu também sinto uma enorme gratidão por ele ter aparecido na sua vida. Porque assim, ele abriu sua visão e a nossa também, é como se fosse a peça chave que ajudou a mudar a história da nossa família, de você, Igith.
Só quando ouço uma fungada sair de mim que entendo que minhas lágrimas já estão caindo. Malditas lágrimas que nunca acabam. Até no meio da estrada, poxa.
Eu as limpo com cuidado, com um sorriso bobo no rosto dou um soco de brincadeira no ombro ele que me encara e sorri de volta, um brilho incomum imerge deles, um brilho de orgulho.
Eu mereço isso mesmo depois de ter sido tão péssima por tanto tempo?
— Não me faça chorar mais, eu não aguento tanto assim — a reclamação saí da minha boca no momento que alcançamos as escadas da casa pintada a verde escuro.
Ur puxa meu cabelo como fazia antes quando pequenos, um lembrete que para sempre será aquele que implica comigo, o meu irmão mais velho.
— Quem fez você chorar? — Pisco algumas vezes para espantar as lágrimas dos olhos, ao voltar o olhar para a porta de madeira agora aberta, um sorrisinho se forma em meus lábios em pura admiração pelo garoto que está ali parado, com o corpo levemente curvado para frente, as mãos firmes em cada lado do batente, e os olhos escuros focados em mim.
— Ur estava sendo sentimental. Você já o ouviu sendo sentimental? É de desarmar qualquer um. — Brinquei, por fim dando uma risada chorada. Meu irmão apenas revirou os olhos e pediu licença para adentrar a propriedade.
Querin faz uma careta engraçada me puxando para o interior da casa. Uma vez que não tinha uma troca de chinelos, deixei os meus no tapete ao lado da porta no mesmo momento que Querin levou das minhas mãos o saco de lixo com os pertences de Ur.
— Ela chora fácil, essa é a verdade — Ur grita ao entrar em um cômodo que suponho ser seu. A casa em particular não estava arrumada. Era tingida de um cinza opaco e um azul que prendia para a cor anterior. O cômodo onde estávamos era a sala, que seria dividida em sala de estar e a de jantar visto que tinha uma mesa de madeira polida com quatro cadeiras espalhadas ao seu redor na parede oposta a que comportava o balcão da cozinha da casa, da qual vinha uma forte luz solar, tal igual as que as janelas do lado da porta que davam acesso a rua, iluminavam o cômodo.
Tinham caixas de papelão espalhadas pelo chão ainda empoeirado, indício de que ainda faltava muito para se concluir a mudança dos dois. Tal que, quando ocorresse, passaria a dividir meu tempo entre uma casa e a outra, certeza. Já tinha gostado do ambiente em si.
— A casa até que é linda — comento, colocando as mãos no interior dos bolsos traseiros. Querin concorda ao deixar o saco em um canto e voltando até onde estou, ficando de frente para mim.
— Sim, mas ainda há muito que fazer, por isso começamos com as limpezas hoje.
Eu olhei em volta avaliando o lugar mais uma vez. Sorri com sarcasmo.
— Isso aqui ainda não está limpo.
Querin faz que sim rindo, aquele riso silencioso acompanhado de um piscadinha de deixar o coração derretido.
— O meu quarto está — garante ele, estendendo a mão para mim. — Quer conhecer ele? Aí talvez eu te ajude com essa bagunça no cabelo.
Ruborizo um pouco por ele comentar sobre meus cabelos, apesar de que eu saiba que ele sequer se importa com o estado deles. Porque se fosse para desistir de mim por isso, já teria acontecido faz tempo.
Eu coloco minha mão sobre a sua, quente como sempre, um contrate enorme com a minha. Sorrimos um para o outro com cumplicidade, e um friozinho me invade ao constatar que vou realmente conhecer o seu novo quarto.
Mas, quando estamos cruzando o corredor, Ur está saindo do seu e nos encara com suspeita, estreitando os olhos ele aponta para nós.
— Ela ainda é minha irmã, Querin, e eu ainda estou aqui.
Nós só fazemos rir do comentário, achando graça que ele parece sentir ciúmes.
A casa tem apenas dois quartos e um banheiro comum. O maior sendo do meu irmão e o que estamos agora, menor — mas estranhamente maior que o meu — é o do Querin. Que não mentiu ao dizer que estava já limpo, somente um guarda-roupa velho se encontrava ao lado da janela aberta para, provavelmente arrejar o ar do ambiente, e uma cama de solteiro na qual o garoto está me indicando para sentar no momento.
Eu aceito o convite após conferir se a janela tem acesso a minha. Infelizmente, tem apenas acesso a janela do quarto do Ur e do dele lá em casa.
— É maior que o meu — digo me acomodando na cama, sentando de pernas cruzadas sobre ela. Ele acena com a cabeça, a este ponto está procurando por algo dentro do único saco de lixo que Suponho ter suas coisas.
Quando se volta para mim, está segurando uma escova e eu sorrio imaginando mil e um modelos que ele pode fazer nos meus cabelos. E admito, adoro quando ele toca neles.
— Isso na verdade não faz muita diferença, desde que tenha um lugar para passar a noite e ainda por cima não precise pagar por ele, está de bom tamanho para mim. — Confessa ele com tranquilidade que me faz sorrir mais ao vê-lo se pôr sentado do meu lado. — Vamos ao trabalho.
Quando nos posicionamos melhor, de modo que ele está sentado de pernas cruzadas atrás de mim e eu com as costas bem próximas ao seu peito, Querin começa a passar a escova com delicadeza pelos meus fios emaranhados.
Enquanto ele penteia os meus cabelos devagar como se temesse me magoar, eu me permito relaxar ali, cutucando as pontas soltas dos rasgos no joelho da sua calça jeans.
Em dado momento, quando o sinto fazer algo semelhante a um rabo de cavalo, Querin fala pela primeira vez desde que estamos juntos no seu quarto.
— Tenho uma novidade para você — ah, isso está se tornando interessante. Sinto Querin finalizar com o meu cabelo e pedir com uma batidinha no meu ombro para que eu me vire para ele. Eu faço, e, nossa, quase não existe espaço entre nós.
Eu bato palminhas como uma criança entusiasmada. Ele ri e aperta minha bochecha com carinho, o mesmo que os olhos escuros em meia lua transparecem ao me encararem.
— Conta, vai.
— E para a Zeinebe — tombo a cabeça para o lado, faço beicinho meio chateada. Por quê para a Zeinebe? — Ei, ei, ei, não fica assim. É uma notícia que envolve você. — Afirma, dando risada da minha careta.
— Fala sério, o que seria?! — Faço a pergunta com curiosidade, mesmo que no fundo esteja bem agitada por ter ideia do que se trata.
Querin se inclina levemente em minha direção e aproxima nossos rostos, ai, juro que meu coração erra uma batida na hora e eu estremeço na base. Ele sorri de canto, me encarando com aquela expressão de sempre... Aquela cheia de um sentimento que transparece... Carinho, admiração, é uma encarada repleta de devoção como se eu fosse a pessoa mais preciosa que ele pudesse encarar neste instante.
— Eca, eu vou vomitar — nós nos afastamos bruscamente mediante a voz manhosa de Ur que está na porta agora, com o corpo curvado para frente e a mão na barriga simulando enjoo quando aproxima o dedo da boca e nos olha com desaprovação.
Minhas bochechas ardem de vergonha e vejo que Querin — pela primeira vez nessa vida — sente o mesmo que eu ao encarar meu irmão.
— Vocês dois são perigosos juntos e sozinhos. — Murmura meu irmão, fazendo careta ao ajeitar a postura e enfiar as mãos nos bolsos da calça de moletom. — Estou voltando para casa, então, por favor Querin, se mantenha o mais longe possível dela. Lembrando: ela é minha irmã e não quero bater em você.
Querin faz que sim, coçando a nuca meio sem jeito. Deus, ele fica tão fofo envergonhado.
— Fica tranquilo, eu respeito ela.
Ur revira os olhos, nada convencido disso.
— Sei — ironiza. — E você, estou de olho em você também.
E quando ele se vira e vai embora eu rio muito, porque definitivamente Querin parece muito, mais muito mais próximo de mim agora.
— Ele com ciúmes é um fofo.
— Você corada é a coisa mais fofa — diz ele, abrindo um sorriso preguiçoso para mim.
— Papai e Ur não vão facilitar as coisas para a gente. — Murmuro, fazendo círculos preguiçosos na sua coxa.
— E nós vamos deixar que eles dificultem as coisas?
Eu dou uma risada e a resposta vem quando aponto para o seu celular vibrando do nosso lado, na tela aparecendo o nome do meu pai.
Ele também ri, puxando meu rosto para perto, cobrindo-o com suas mãos ao trazer seus lábios até o canto da minha boca, deixando claro que não irá beijar meus lábios até o dia que oficialmente eu me tornar sua namorada. Que bobo.
O aparelho vibra vez atrás de outra, irritante. Nós rimos e nos afastamos para que ele possa pegar no celular e atender a chamada que quase caía na caixa postal.
Querin faz questão de deixar no viva-voz.
— Querin?
— Sim?
— A Igith está aí? Pode passar para ela? — Eu olho para o garoto que tem um dos cantos da boca puxados em um sorrisinho divertido.
— Estou aqui pai, e estou te ouvindo.
Papai pigareia do outro lado da linha.
— Hm... Voltem para casa. Agora.
— O que houve?
— Reunião de família, estão faltando apenas vocês dois. — Eu encaro Querin e ele me encara de volta, surpreso.
— Ok, estamos aí em dez minutos.
— Cinco minutos e fim de papo. Não demorem.
E ele desliga, sem me dar tempo de contra-argumentar.
— Você ouviu, cinco minutos. — Querin diz se levantando da cama e me ajudando a levantar logo de seguida.
Eu ajusto meu pijama no corpo e sorrio largamente para ele.
— E aí, qual era a novidade mesmo? Não vai me deixar curiosa, vai? — O garoto faz que não no mesmo momento.
— De jeito nenhum, até porque acredito que você já sabe. É simples, estou prestes a namorar uma garota muito extraordinária e é você quem vai contar para a Zeinebe. — Ele disse envolvendo meu ombros e beijando minha testa quando nos dirigimos a saída da casa. Eu sorri, mais ainda quando vi Aslan com um curativo no nariz me fuzilar com o olhar ao pé da porta da casa dele, com Zilena ao seu lado acenando para mim.
Eu aceno de volta sem problema algum, mas fico curiosa mesmo perante a imagem que tenho diante de mim na casa ao lado da nossa. Uma Yudis muito animada tira metade do corpo pela janela do carro que está prestes a arrancar com tia Banu no banco de motorista. Ela acena para nós e manda alguns beijos no ar em nossa direção, sorrindo.
— Ei, aonde estão indo? — Eu pergunto curiosa para ela que parecia esperar pela pergunta.
— Conhecer a casa do papai — diz ela, divertida. Por um momento fico confusa até entender que ela está falando do próprio chefe, o namorado da tia Banu, o que me faz sorrir. — É uma mansão Igith amiga!
Não sei se sua empolgação é tão genuína assim, mas me agrada que Yudis pareça feliz. Só que tia Banu não aguenta tanta agitação da filha assim, porque baixa o vidro da sua janela e murmura para nós:
— Yudis acordou agitada hoje, não se assuste. Mas eu já estou a um ponto de surtar com ela.
Yudis ri voltando a meter o corpo para dentro do carro, mas o rosto fica para fora.
— Mãe! — E revira os olhos antes de colocar as mãos em concha em volta da boca e parecer sussurar sendo que está berrando. — Acho que hoje consigo nossas passagens para Espanha.
— Yudis, aperta o cinto — tia Banu pede. — Meninos, mandem lembranças para o restante da família, a gente está um pouco atrasada. Nos vemos mais tarde.
Nós acenamos para elas, que dão partida no mesmo momento que seguimos para o interior de casa, trocamos os chinelos na entrada e encontramos o pessoal distribuído pelos sofás.
Ur e mamãe no maior sofá da sala, com o garoto atento no celular como sempre, Bursinha e vovó no outro que se situa no lado oposto a parede que comportam as janelas enormes e sempre fechadas da casa, onde dois puffs no qual eu e Querin nos sentamos assim que cumprimentamos a todos ali presentes.
— O que houve dessa vez? — Pergunto logo de uma vez para quebrar o silêncio torturante que paira sobre o ar, dando a impressão de que algo ruim vem por aí.
Meu pai, o único de nós parado no meio da sala, pede que Ur desligue o celular e minha avó bufa aborrecida com tanto suspense.
Eu te entendo vovó.
— Onur, não temos o tempo todo, o café está esfriando na mesa. — Reclama a mais velha, alisando os cabelos bagunçados de sono da minha irmã que está bem aconchegada nela.
Papai limpa a garganta, assentindo.
— Convoquei vocês por conta de uma decisão que eu e a sua mãe tomamos esses dias pelos últimos acontecimentos que a nossa família esteve submetida. — Ele soprou ar, tenso, parecia ser algo difícil de se falar, pelos vistos. — Sabemos o que se passou com a Igith e vimos o tanto que isso abalou cada um de nós, mais que diversos problemas que tivemos de enfrentar. Mas, de alguma forma isso nos levou a decidir algo importante para o nosso futuro.
— Eu fiz o quê? — Pergunto, realmente confusa.
— Aprontou! — Ur respondeu no mesmo instante, me provocando. Mostrei a língua para ele.
— Cala a boca, Ur.
— Por favor... — nosso pai nos interrompe, impaciente. — Escutem, é simples o que vou dizer e espero que compreendam que isto é algo que devíamos ter feito há tempos, porque a situação da vossa irmã trouxe para nós com clareza que a nossa família precisa de terapia, e é exatamente isso que iremos fazer.
Não devíamos, mas parecemos mais surpresos — ainda que ansiosos — pela sentença de papai. Nos entre olhamos, curiosos para ver a reação de cada um, e de modo geral nos encontramos da mesma forma, aliviados. Sim, aliviados porque faremos isso juntos, eu por cima de todos. Tinha um medo gigante de dar esse passo sozinha.
— Uma vez ouvi minha irmã dizer que nossa família sempre optou por varrer os problemas para debaixo do tapete — ela começa a falar, todos hesitamos em concordar, porém, fazemos. — Talvez ela tenha razão, por muito tempo fizemos isso. Acho que nosso maior medo era admitir nossos erros e piorar a situação ao colocá-los na mesa.
— Em algum momento todos fomos covardes e imprudentes uns para com os outros. — Continuo com o que minha irmã dizia. — Nossa distância se deveu mais a falta de coragem para dialogar sobre o que nos incomodava, talvez até desejássemos conversar, mas os membros da família Kefrām sabem ser orgulhosos.
— A explosão da Igith naquele dia talvez tenha sido exagerada — agora Ur toma a palavra — mas foi ela que nos fez perceber o quão importante é tratar sobre esse tipo de assunto em uma família. Ela nos mostrou que “conversar” é sempre a melhor opção, deixar assuntos pendentes ou fingir que eles simplesmente não existem, é um erro do qual sofremos as consequências em algum momento.
— A-hã, gosto de como cada um de vocês aprendeu a deixar o orgulho de lado para pedir perdão quando erra. Acho que agora sabem que admitir seus erros ou buscar o perdão dos outros não mata ninguém. — Vovó Yame comenta com tranquilidade.
— Penso que negligenciamos várias coisas durante anos. Não soubemos ser sinceros, tentamos levar uma vida normal com imensos problemas mal-resolvidos. Nos julgamos e nos afastamos. Isso nos fez perder a essência de uma família por muito tempo. — Mamãe se esforça a falar, a voz nasalada pelo resfriado que a obrigou a se agasalhar melhor.
— É a hora de mudar isto, no entanto — senhor Onur volta a se pronunciar, ignorando que acabo de enlaçar meus dedos aos de Querin sobre o seu colo. — Está decidido, semana que vem começamos com a terapia.
Todos sorrimos, felizes e aliviados por estarmos nisso juntos. Neste momento, mais uma vez, a família Kefrām decidiu recomeçar, todos juntos, um sendo o suporte do outro, garantindo que será sempre assim. Embora passemos por dificuldades, das mais simples as complexas, nos apoiaremos, pois nos amamos de um jeito imperfeito, porém, incrível e incomparável.
Todo dia
é um bom dia
para recomeçar
não importa
o que houve
ontem
o hoje está
acontecendo
então faça valer
a pena
as batidas
do seu coração
são elas
que te lembram
o tanto de sonhos
que ainda tem
para concretizar
Dinazarda
Mds, eu estou chorosa hoje. Mas uma vez terminei com a obra e sinto que terei muita falta dela, dos personagens, dos comentários, e principalmente, de vocês. Adoro tanto interagir com cada um! Então deixo aqui a confissão que sentirei sim, saudades de vocês.
Obrigada por me acompanhar até aqui, espero que tenha gostado da obra, do final dela e dos personagens, mesmo que alguns tenham dado motivos para serem odiados rs.
Sem me prolongar aqui, deixo mais beijinhos para vocês e até a próxima vez queridos!
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