032: Escolha final
— Já volto, fique aqui — Querin pede ao se levantar no mesmo minuto que decido que vamos ficar mais tempo no jardim. Apenas faço um gesto com a cabeça, concordando e o vendo se dirigir até casa.
Quando está de volta trás consigo um lençol dobrado e a parte de cima do seu moletom. O garoto me passa o agasalho e passa a tentar desdobrar a coberta, e acho tão engraçado a dificuldade que ele tem em fazer aquilo que acabo me levantando e o ajudando assim que visto o moletom, mantendo o zíper aberto.
— Senhora Yame merecia um prêmio por dobrar lençóis com tanto empenho — murmura ele resignado ao espertigar o lençol de modo que ele se estenda por completo. Eu rio, e deixo que ele nos cubra no momento que voltamos a nos sentar na grama fria.
— Nem ouse fazer esse comentário para ela, vai que se sente ofendida — eu devolvo em tom divertido, me aproximando mais um pouco dele. A este ponto nossos braços se tocam, porém o toque não é direito devido aos tecidos de nossas roupas.
Querin ergue as mãos na altura do ombro na defensiva, mas tem a sombra de um sorriso brincando nos seus lábios.
— Não ousaria, acredita. — Garante ele, afastando para longe a bandeja com as sobras de comida. Eu acompanho o movimento, atenta. É um gesto simples quando ele se deita na lateral do corpo e apoia a cabeça na mão de modo a estar me encarando diretamente nos olhos.
— Você não trouxe nenhuma almofada... — comento sem desviar os olhos dos seus. Ele me dá um sorrisinho tão bonito que sinto minha estrutura toda estremecer.
Deus...
— Talvez eu quisesse que você me usasse de almofada — pondera ele divertidamente. Eu rio e o soco de brincadeira na boca do estômago. Querin dá um risada suave também, mas está me olhando com certa expectativa que me faz morder de leve o lábio inferior. — Porque de qualquer forma não irei voltar lá dentro, sabe disso, não? E é só uma sugestão, não leva a sério.
Eu dou outra risada baixinha, ele parece um pouco nervoso. É como se temesse que seu comentário me fizesse ficar desconfortável. Perceber isso nele me conforta a ponto de eu balançar a cabeça e me aproximar ainda mais dele.
— É uma boa sugestão — digo ao ficar deitada perpendicularmente a ele. Um pouco hesitante arrasto o corpo para baixo de maneira que minha cabeça encoste seu abdômen e minhas pernas curtas fiquem estiradas para frente. Sinto como seu peito sobe e desce sob mim quando ele respira profundamente. É, acho que ele entende muito bem o que sinto perto dele. — Pode se ajeitar um pouquinho? Quero poder olhar para você daqui.
Ele não diz nada, mas faz o que peço. Dá a impressão de estar assimilando minha decisão de estar tão próxima. De uns tempos para cá temos avançado tanto no contato que me surpreendo comigo mesma.
Quando já estamos numa boa posição, eu ainda não estou o encarando de verdade. A timidez. Ela está me consumindo nesse momento e já devia estar a espera disso na verdade. Estou prestes a falar de algo que não faço com frequência, acho que posso pegar leve comigo mesma por enquanto.
Eu encaro o céu nublado, hoje não há sequer uma estrela brilhando lá em cima, o que faz parecer o jardim ainda mais escuro que o costume. Levo as mãos a barriga e as entrelaço ali, um pouco ansiosa. Então limpo um pouco a garganta e não contenho o suspiro ao sentir os dedos dele fazendo um carinho preguiçoso em meus cabelos. De novo.
— Querin, agora a pouquinho eu disse que havia mentido sobre te detestar. E isso é pura verdade. Eu não te destesto. Só que... Eu também menti sobre outra coisa.
Seus dedos param de súbito, como se esperassem o que vem a seguir. Uma promessa silenciosa que depois daqui tudo pode pender para um lado diferente entre nós.
— Mentiu? — Eu assinto, esperando que sua mão continue com ato. Demora um pouquinho até voltar a acontecer. — Sobre o que você mentiu Igith?
— A-hã, por isso preciso que cale a boca por enquanto e me ouça, ok? — Como um garoto obediente ele apenas assente, e sei que também me encara embora eu esteja evitando fazer o mesmo. Covardia? Não. Medo? Quem sabe. Vergonha? Com certeza! — Ontem no seu quarto eu disse que não fazia idéia do que é gostar de alguém... — sopro as palavras devagar, sentindo o peito inflar de ansiedade. Ai, como pode isso? De uma vez por todas tomo coragem e viro o corpo todo para encará-lo me encarar de volta. Sinto o rosto ruborizar, mas não me contenho nem pouco. A cabeça eu enterro na terra depois.
— Isso é mentira... Eu sei o que é gostar de alguém. Porque... porque eu sei o que é gostar de você. Eu gosto muito de você. Gosto demais. Às vezes mais do que devia. E é exatamente isso que me deixa na certeza de que também estou apaixonada por você, Querin. Isso pode parecer meio clichê, mas quando respiro e sei que você faz parte desse ar, eu amo você. Quando sorrio e sei que você é o motivo, eu amo você. Quando me perco e é você quem me encontra, eu amo você. Em todas as circunstâncias eu simplesmente amo você, meu garoto dos olhos intensos. — falo cada palavra com cuidado, como se fossem cortar minha garganta caso as dissesse de maneira errada.
Querin me olha em silêncio, como se estivesse assimilando as palavras que acabam de ser confessadas por mim. Acredito que ele já sabia de tudo que acaba de ouvir, porém, as coisas aparentam ser diferentes quando os pensamentos que rondavam em sua mente se tornam palavras proferidas pela pessoa de quem você deseja ouvir. Porque comigo foi assim, tão maravilhoso que fiquei sem reacção.
— Uau, Igith Kefrām acaba de me deixar sem palavras — ele empurra as palavras precedidas de um suspiro contido bem no fundo da sua alma. Essa sua reação é a melhor que ele poderia demonstrar para mim, pois meus lábios se puxam em um sorriso bastante sútil e contente. — Não vou mentir para você, não esperava por essas palavras desse jeito, ou tão cedo assim. Me pegou desprevenido e agora sinto que posso explodir de felicidade a qualquer momento. Essa é a melhor confissão sua que já ouvi, e amá-la me faz te amar ainda mais. — Ele se curva e beija o canto de minha boca, me fazendo arrepiar toda e abrir ainda mais o sorriso. — Deus, como você é incrível.
Sorrio aliviada por ouvir isso, em certo momento temi ser a primeira a confirmar meu amor por ele em palavras e não ouvir de volta.
— Você também é incrível, um garoto uau. Usarei essas palavras porque ainda não achei um adjetivo perfeito para qualificar você.
Ele dá um risada silenciosa, daquelas que adoro, e alisa minha bochecha com o pelegar, um gesto muito suave e agradável.
— Garota, vai me deixar sem jeito se continuar usando as palavras dessa maneira — sua réplica bem-humorada me faz escarancar um sorrisão, e me motiva a falar tudo que penso sobre ele.
— Ah, agora vai ter que calar a boca e deixar eu te falar o quanto te acho um gato. — Rolo do seu peito de modo a estarmos nos encarando frente a frente agora. Corpos deitados na lateral, cabeças apoiadas sobre a mão e sorrisos estampados na face. Bem próximos um do outro com toda intenção do mundo.
Apesar do frio gigante em minha barriga, das borboletas que parecem alçar vôos simultâneos dentro do estômago, esse momento é tão tranquilo e suave, que se torna desejável prolongá-lo.
Com uma expressão irônica no rosto ele arrasta sua mão livre até encontrar a minha e começa a fazer círculos preguiçosos ali, sensibilizando a minha pele.
— Essa é a segunda vez que você me manda calar a boca e, nossa, achei ter ouvido você dizer que não tem um adjetivo que me qualifique tanto.
— Então cale a boca pela terceira vez e me ouça. — Rebato firme, ainda assim, sorrindo de canto. — Você é um cara perfeito de mais — decido enfatizar cada adjetivo que lhe ateibuo, calma e divertidamente —, e gosto tanto de como consegue ser tão intenso e tão calmo em simultâneo. Isso me deixa rendida de uma maneira inenarrável. — Deus, a maneira como ele sorri para mim a medida que falo quase me faz desistir de continuar e eliminar de uma vez por todas a distância que nos separa. — Amo como é atraente a ponto de me fazer perder o foco, e me deixa apaixonada por você cada vez mais, e mais, e mais. — Então solto um suspiro dramático que lhe arranca uma risada rouca e fraca, uma combinação tão gostosa de ouvir. — Garoto, até sua risada beira ao angelical. A-hã, você parece um anjo vindo do céu com a missão de salvar essa pobre alma.
— Igith, para. — Ele pede, contido. Mas nem um pouco bravo. Eu pisco os olhos de maneira inocente, de seguida me deixo de barriga para baixo e apoio o rosto em ambas as mãos, lhe olhando com carinho e diversão. Minha expressão o faz dar uma gargalhada bem audível, sem deixar de ser suave e apreciável.
— O que foi? — Tombo a cabeça para o lado, comprimindo os lábios. Acho que essa risada vai para a lista das que eu mais amo nele.
— Poxa, se continuar assim vai me fazer explodir de tanto inflar meu ego.
— E não gosta? — É inevitável meus olhos desviarem até seus lábios quando ele dá aquele característico sorriso ladino. Perfeito.
— É maravilhoso, mas não vai querer me ver todo cheio de mim. Sou insuportável. — Seus olhos também estão nos meus lábios, e me sinto corar um pouco ao retomar minha postura.
Dou uma risada baixinha e me sento no mesmo instante, o intimando a fazer o mesmo. Querin se senta de pernas cruzadas igual a mim e a este ponto nossos joelhos se tocam pela curta distância entre nós.
— Sério?
— Seríssimo!
— Eu gosto de ser bajulada. Pode inflar meu ego se quiser — é pura mentira. Geralmente detesto palavras do gênero. Mas sugiro com tranquilidade, talvez querendo o convencer, eu belisco as pontas da relva sem tirar os olhos dele que parece ponderar a minha ideia.
— Ok, vem cá. — Ele chama e dá tapinhas nas suas coxas, me convidando a me aproximar. — Vou fazer carinho em você enquanto te lembro o quão incrível você é. — Eu hesito por um momento, depois de alguns segundos me arrasto um pouco em sua direção até fechar os olhos com muita força e sentir o corpo enrijecer ao contato de suas mãos em minha cintura.
Eu sobressalto, me afastando bruscamente, e suas mãos não estão mais em mim. Apenas arrepios nada agradáveis se espalham por minha pele a medida que me forço a abrir os olhos e lágrimas se contém neles mediante as lembranças que precorrem minha mente.
Querin está olhando para mim, arrependimento caracteriza melhor sua expressão nesse instante. Ele se sente culpado por gerar esse estado meu e eu inevitavelmente me sinto culpada por ainda não ter domínio sobre certas partes de mim que me fazem lembrar de Gāni. Que ódio. E lá vou eu tornar o clima suave em pesado.
— Me desculpa — eu sussuro, baixo o olhar até o chão e com a manga da camisa limpo os olhos antes que eles transbordem e inspiro uma boa porção de ar, extasiada.
Sério isso, Igith?
— Você não deve me pedir desculpas Igith. De jeito nenhum. Não por isso. — Sua voz é contida, reprimida. Como se ele quisesse brigar com alguém, mas esse alguém não sou eu. — Olhe para mim — ele pede. Não faço. Extremeço. Não gosto dessas palavras, Gāni as dizia para mim, mas... Ele não é Gāni, e não as diz com aquele tom detestável, ele é... manso. Ele é o Querin, Igith. — Igith, olhe para mim, por favor. — É uma súplica, ele necessita que eu o encare. Mas não sei se quero ver o que seus olhos estão dizendo de mim agora. Deus, eu não quero. Tenho medo que seja cruel. E... Ainda assim, me arisco a olhá-lo. E não me arrependo do que vejo. Porque não é pena e agradeço, não é repulsa, nem desprezo ou impaciência, é condescendência. Ele me olha com total compressão.
E toca meu rosto como se eu fosse de cristal, limpa as poucas lágrimas que escorreram de meus olhos com tamanha delicadeza a ponto de dar a impressão que posso quebrar se o fizer de maneira errada.
— Você não me deve desculpas. — Ele repete, extasiado. — Não me deve desculpas quando está sendo tão forte nos últimos dias, como acredito que foi sempre e sempre vai ser. Não é culpa sua que ainda sinta gatilhos em partes específicas, e entendo completamente se às vezes quiser que eu não faça contato com você, pois merece deixar isso rolar no seu tempo, no seu ritmo. E vou acompanhá-lo com toda paciência porque sei que vale a pena. Você vale a pena Igith. E aquele desgraçado não merece isso, não merece que você não viva por conta dele. Então quero que entenda uma coisa:
Querin se aproxima de mim com calma, e, quando nossos joelhos já se encostam outra vez e suas duas mãos estão em meu rosto, ele inclina o seu de encontro ao meu de modo que nossas testas de grudem. Eu suspiro, quero fechar os olhos, mas ele pede que o encare. Então continua.
— Esse sou eu, não ele. Eu nunca, jamais, vou magoar você Igith. Quando eu tocar você vai ser exclusivamente porque te amo, porque aprecio cada parte de você, até às que mais tenta ocultar de todo mundo — sua mão esquerda vai descendo, ao chegar ao meu pescoço parece haver um incêndio sendo causado ali pelo contato de nossas peles, e, Deus, é um suplício não poder fechar os olhos, e ao mesmo tempo bom demais porque vejo claramente nos seus olhos a verdade que foi verbalizada. — O que ele fez com você não deve, nunca, definir quem você é. Porque eu vejo muito mais que isso em você. Queria que eu inflasse seu ego, mas o que direi é toda a verdade que existe em ti.
Então, a mão desce mais umas polegadas, ela desliza por meu braço vestido no moletom, e ainda me sinto incendiar. De repente já não parece mais estar frio aqui fora, meu corpo aquece e aquece e aquece mais.
— Você é esplêndida Igith, transformou suas dores em arte de uma forma que poucos conseguem. É uma garota tão incrível, tão talentosa e única. Eu te acho extraordinária. E não importa o que já disseram de você, a verdade é que tentaram ofuscar isso, mas quando se é genuinamente alguém, ninguém consegue roubar essa identidade de você. Ninguém. Então, sim, você é uma garota extraordinária. Entende? — E sua mão já pousava na minha cintura, delicada. A outra fazia carinho em meus cabelos e eu não chorava mais. Nem queria afastá-lo de mim. Eu precisava mesmo era de ar porque esse garoto me deixava sem fôlego. Ele se inclinou até sua bochecha encostar a minha e falou ao pé do meu ouvido, sem sensualidade, sem jogos, apenas uma verdade. — Ele não roubou isso de você Igith, e eu espero que nunca se esqueça disso.
Se meu corpo já incendiava, agora estava arrepiada na base. Meu. Deus. Do. Céu.
Eu não sabia que precisava de ouvir tais palavras até ele dizê-las para mim. Foram tão sinceras, e fortes e necessárias. Foram as mais adoráveis que já me disse e sinceramente, senti-as indo se instalar diretamente no mais profundo canto do meu coração. Eu as guardaria lá para sempre.
Querin mal se afastou de mim quando eu, tomada por muita coragem, segurei em seu rosto com determinação e o beijei como se minha vida dependesse disso. Era a primeira vez que eu beijava alguém por iniciativa própria, e era incrível demais.
— Eu nunca vou me esquecer disso — prometo ao nos afastarmos, e sem o dar tempo de responder, o beijo uma vez mais.
Querin ri sobre meus lábios e me empurra com delicadeza para me olhar com tanta devoção que me sinto a pessoa mais importante do universo. Do seu universo.
— Que bom. — Ele diz, eu o beijo de novo. Deus, eu o beijaria até morrer se pudesse. Mas assim que paramos, ele ainda está rindo, e eu, meio corada e envergonhada me contenho em perguntar qual é a graça.
— Que foi?
— Garota, eu prometi para mim mesmo que só te beijaria depois de te ter como minha namorada. Mas parece que você tinha outros planos.
Eu rio.
— Sério isso?
— Seríssimo. — Assente. — Meu pai me ensinou a fazer certo, não vou fazer diferente com a garota que quero casar.
— Assim você não me ajuda a me conter.
Ele ri.
— Vai ter que ser forte para resistir a mim. — Ele diz, todo cheio de si. Meu Deus. Começou.
— Nem comece — Querin se deita na grama e me convida a deitar do seu lado. Eu vou, porque é ele, o meu futuro namorado. A esta altura ele está rindo do meu aviso, seu corpo todo o acompanha. E juro que eu nunca vou me cansar de o ouvir rir e sorrir. A princípio eu o achava muito intimidante por ser difícil o ver fazer tais gestos, mas depois, gente, seu sorriso se tornou o meu favorito do mundo, a sua risada o melhor som que eu já ouvi na vida. — Obrigada por você existir, Querin. Sou tão sortuda por te ter.
Embora estamos próximos um do outro, Querin ainda respeita meu espaço e minha limitação a toques, como de costume sua mão está somente fazendo carinho em meus cabelos. A outra, sou eu quem tenho — mesmo com medo — de pegar e puxar até estar sobre minha cintura, sem envolver, e por fim entrelaçar nossos dedos. Nesse instante sinto um beijo no topo da minha cabeça e sorrio de canto, sentindo outra vez aquele frio na barriga e o formigamento nos pés.
— Obrigada por você existir, Igith. Sou tão sortudo por te ter. Você não faz ideia.
[...]
Sinto meu corpo ser sacudido lentamente por alguém. Ao abrir os olhos noto que ainda está escuro, presumo que devam ser por volta das três da manhã. Ainda estou deitada no peito de Querin, é ele que me acordou, porém, ao olhar para baixo, do nosso lado vejo os chinelos de alguém. Sigo meu olhar dos pés até encontrar o rosto da pessoa.
É meu pai.
Saio arrastada de perto de Querin, mantendo uma distância considerável entre nós, aos olhos do meu pai que nos encara claramente sério. Ele sequer disse uma palavra até agora, o que de certa forma me preocupa.
Está silêncio demais aqui, diferente de quando estava apenas eu e Querin antes de apagarmos, o qual está impressionantemente calmo para um garoto na situação dele. Gente, eu juro, estou quase tendo um piripaque.
— Os dois — meu pai diz, contido. Solta o ar com uma calma que parece tirar da alma para não surtar e gesticula em nossa direção, de mim para o garoto com o dedo indicador. — Para o meu escritório. — Então se volta para casa no mesmo instante, com os músculos contraídos ele leva as mãos as têmporas e as massageia, impaciente. A falta de ação da nossa parte o faz nos encarar por cima do ombro com a mandíbula cerrada. Entre dentes ele conclui:
— Agora.
Quando meu pai se dirigiu a porta traseira nós nos encaramos com cumplicidade, contendo risos óbvios. Se de nervoso ou de diversão aí eu não sei. Só uma coisa tenho certeza: ainda estou muito preocupada com o que vem a seguir.
Antes que o mais velho volte para nos levar aos puxões Querin se levanta e me ajuda a levantar também. Ele está sorrindo de canto, como um menino mau pego cometendo um crime, o que me faz sentir ser dessa laia uma vez que fui eu quem sugeriu a ideia de vir até aqui.
— Acha que estamos ferrados? — Eu pergunto, ele ri e dá de ombros despreocupado.
— Se a gente demorar mais um pouquinho, sim, estaremos muito ferrados.
Desta vez quando um riso irrompe de mim, eu sei, é de nervoso. Estou apreensiva sobre o que meu pai irá dizer agora. Ainda mais quando batemos a porta do escritório e o encontramos com um semblante seriamente pensativo.
Onur estava tomando chá preto até então, com a nossa entrada ele deixa a xícara de lado e sobre as lentes dos óculos de leitura nos encara, inexpressivo.
Detesto esse olhar mais que tudo.
E o suspiro de lamentação que dá depois disso, ai, ai, seria melhor eu nem ter saído do quarto hoje.
Que situação.
— Querin deve ir embora de casa. — Ele fala sem rodeios. Meu coração dispara em desespero na hora. Como assim “ir embora?” Ele não sabe da condição dele? Olho para Querin que se mantém impossívelmente calmo.
Porque ele não pode reagir. Não pode. Será que eu posso?
Impulsivamente eu reajo.
— Pai?! — É mais uma súplica em uma única palavra.
Meu pai se apruma no assento, endireita as costas e solta um ar cansado, massageando novamente as têmporas.
— Ele sabe disso — lança um olhar breve a Querin que concorda com a cabeça. Então tira os óculos e os pousa sobre a mesa de madeira compactada. Eu olho incrédula para o garoto ao meu lado, que parece saber muito bem onde vai parar essa conversa. — Sabe que só poderão ter alguma coisa caso ele saia de casa. Em hipótese alguma eu deixaria vocês dois na mesma casa.
— Como assim você sabe?! — Questiono indignada para o dito cujo. Eu sou sempre a última a saber das coisas nessa casa, só pode!
— Igith fica calma — Querin tenta me suavizar, mas não dá certo. Eu estou desesperada.
— E como o senhor é capaz de expulsar ele, pai? — me volto para meu pai, gesticulando de maneira exagerada enquanto falo. Porém, começo a ficar verdadeiramente calma quando penso no que acabei de ouvir.
Então ouve uma condição. Isso torna as coisas diferentes, mas não estou menos agitada.
— E onde ele vai ficar? — Dessa vez, não estou alarmada, estou cada vez mais... Tranquila.
— Vai morar com o Ur. — isso está realmente me deixando tranquila. — E só para deixar claro: nada de ficarem sozinhos, deitados na grama, de madrugada. E também não quero você na casa deles acima da meia noite. Caso contrário eu rompo com isso. — Apesar de eu estar feliz por, de forma indireta meu pai estar aprovando nosso relacionamento, sei que ele continuará impondo regras acima de regras se eu não o parar.
— Está bem pai. Eu entendi. Nós entendemos.
— Querin, trate de seguir todas regras se pretentende mesmo namo... — meu pai pigareia, inconformado com o que estava prestes a dizer. Totalmente indisposto a continuar com a frase. Frustrado ele massageia a têmpora esquerda e suspira. — Obedeça minhas condições se quiser ter a Igith como... — e ele tosse, gente, ele está incapaz de admitir em voz alta. Eu mordo o interior da bochecha quando sinto a mão de Querin encontrar a minha e entrelaçar nossos dedos numa distância que os olhos do meu pai não alcançam. — Enfim, você entendeu. Eu espero que tenha entendido.
— Perfeitamente — é a primeira vez que ele se dirige ao meu pai. Todo tranquilo. Impressionante.
— Podemos ir embora? Tá tudo resolvido? — Eu arrisco perguntar. Meu pai assente voltando a colocar os óculos, de seguida pega na sua xícara de chá e aponta para porta.
— Cada um para o seu quarto — decide lembrar. Nós assentimos e antes que nos viremos... — Querin? Largue a mão da minha filha. Eu ainda não permiti o namoro de vocês.
Inevitavelmente eu dou uma risada silenciosa ao soltar a mão dele, que pela primeira vez se encolhe um pouco, envergonhado. Ele é muito contraditório, Deus.
Então, parados ao pé da escada eu sorrio de canto para ele o admirando em meio ao breu que está a sala.
— Você é bem confiante, hein!
— Só porque eu já tive essa conversa antes com o seu pai, o contrário, certamente estaria nervoso. Seu pai é bem intimidante, mas também é um cara legal.
— Como assim “teve essa conversa antes”?
Querin está um degrau acima do qual eu estou, logo ele parece bem mais alto que o normal, me faz sentir pequena quando leva sua mão ao topo da minha cabeça e bagunça os meus cabelos.
— Um dia depois que você se acertou com eles, eu e o seu pai ficamos juntos no jardim da sua avó e ele deixou esse assunto bem claro. — Querin disse, se espreguiçando. — Mas não quero falar sobre isso, vai ficar tudo bem. Eu sabia onde estava me metendo, e seu pai foi simpático em me deixar ficar com o Ur.
Nossa.
— Uau, eu literalmente sou a última a saber sobre as coisas nessa casa mesmo que elas me envolvam.
— Não está brava, está?
Dou de ombros. — Eu vou ser sua futura namorada, então não tenho porquê reclamar, entende? — Ele dá uma risadinha e se inclina para beijar o canto da minha boca. Sorrio, e olhando por cima do ombro, para a direção do escritório, eu suspiro, sabendo que falta uma coisinha para fechar madrugada realmente. — Preciso falar com o meu pai. Promete não dormir até que termine lá?
Ele me puxa para mais perto e me abraça. Gente, seu abraço nunca antes foi tão gostoso quanto agora.
— Só se você prometer que vem me dar boa noite.
— Prometo.
— Então eu prometo.
— Agora entendo porque meu pai não nos quer juntos na mesma casa. A gente é tão brega. — Me afasto do seu abraço rindo, ele pisca para mim sorrindo antes que eu siga até a sala particular do mais velho.
Abro a porta devagarinho e somente enfio a cabeça para o interior da sala. Meu pai parece bastante exausto, ainda assim está mexendo em um monte de papéis sobre sua secretária enquanto toma seu chá. Muito provavelmente não consegue pegar no sono novamente. Então é de família...
— Insónia? — Chamo sua atenção que estava focada no computador a sua frente. Ele parece respirar profundamente quando seu tronco sobe e desce com calma ao fazer um leve aceno com a cabeça.
— Trabalho e mais trabalho. Não queira virar adulta Igith. — Embora a voz grave e rouca, ela vem acompanhada de um traço de humor que dificilmente meu pai deixa transparecer.
Eu deixo que meu corpo fique metade para dentro, metade para fora da sala. Ainda seguro na porta e encosto a bochecha no batente.
— Isso, infelizmente, é mais uma das obrigações que não posso escapar... — Murmuro no mesmo tom, papai maneira a cabeça e me olha atento.
— O que houve?
Mordo o lábio inferior, nervosa. Eu vou mesmo fazer isso.
— Para que horas marcou a terapia? — Onur me analisa com tanta atenção que sinto ter falado um palavrão. Meu Deus, foi só uma simples pergunta, que agora melhor observada, ele enfim entende o motivo de tê-la feito e... Esboça um sorriso. Sim, meu pai parece feliz pela minha decisão.
— Sábado às nove.
— Sábado às nove — repito, recuando dois passos para fora. — Certo. Tenha uma boa madrugada pai, até mais logo.
Eu nem deixo que ele diga alguma coisa mais, apenas deixo sua sala com a sombra do sorriso de orgulho que estava estampado no seu rosto. Foi suficiente.
Com muito entusiasmo subo as escadas em direção ao quarto de Querin. A porta já estava aberta, uma certeza de que ele me esperava. Quando entro ele desce da cama e vem ao meu encontro — o que entendo como “daqui você vai para o seu quarto descansar, garota ruiva.” —, ele está vestindo a mesma roupa de antes, mas agora seus pés se encontram descalços.
— E então, como foi?
— Tenho uma consulta marcada para sábado às nove.
O brilho que transpassa seu olhar nesse instante é tão cativante que me faz corar.
— Meu Deus, como eu estou orgulhoso de você Igith! — Diz ele, talvez mais entusiasmado do que eu com a ideia. Eu mordo o lábio contendo uma risadinha tímida. Querin se aproxima mais, pega em ambas minhas mãos e beija cada uma delas com carinho sem desviar os olhos dos meus. — Já disse o quanto te acho extraordinária?
Eu assinto, quase rindo com o olhar suplicante que ele dá de meus olhos para para minha cintura, um sútil e silencioso pedido que ele faz.
— Você disse — eu digo, ponderando minha próxima afirmação. — E você pode.
— Posso?
— Pode.
Querin se anima tanto, mas tanto... Que quando segura minha cintura para me erguer faz com tanta delicadeza que me sinto ser de cristal e poder quebrar a qualquer instante.
— Disse o quanto me acha extraordinária, mas eu quero ter o ego inflado mais um pouquinho antes de deitar.
Ele dá uma daquelas risadas gostosas, me inclina para ele e beija as minhas duas bochechas. Indisposto a me beijar novamente antes que me torne sua namorada. Bobo. Rio com isso também, antes de abrir um sorrisão com as próximas palavras:
— Você é a garota mais extraordinária que já conheci, Igith Kefrām.
ele tocou
meu pensamento
antes de chegar
à minha cintura
meu quadril
ou minha boca
ele não disse que eu era
bonita de primeira
ele disse que eu era
extraordinária
Rupi Kaur
Feliz ano novo gente bonita!
Primeiro capítulo do ano e penúltimo da obra hehe. Espero que o ano de vocês seja melhor que o anterior e que cada um consiga alcançar seus sonhos.
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