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Cantaluz - um sinal de esperança (@sonhos_da_narniana)

Encaro minhas pernas inúteis e mais uma vez sinto vontade de chorar. Eu deveria estar vivendo um sonho e não um pesadelo. Grito porque não posso fazer mais nada. Porém, me arrependo assim que o som deixa minha boca, pois as enfermeiras logo estão ao meu redor certificando-se que está tudo bem e me encarando cheias de pena. Os últimos trinta dias têm sido assim, todo mundo me olha com pena, e quando percebe que estou vendo, desviam o olhar e começam a falar que os Aliados estão prestes a desembarcar. Não quero saber se os aliados estão ou não prestes a desembarcar na Normandia ou na China, quero apenas a minha vida de volta, meu palco e meu collant.

Três meses atrás eu estava saltitando de alegria, obviamente preocupada com a guerra, mas eu confiava nos Aliados e não tinha mais porquê me preocupar. Já havia chorado tudo o que poderia por Klaus. Faziam treze meses que havíamos recebido o comunicado de sua morte, mamãe continuava de luto, mas eu tinha uma carreira brilhante e tinha sido convidada para dançar para a nossa família real refugiada na Inglaterra desde a queda Ka'yer. Seria meu primeiro solo de relevância, se eu imaginasse o que aconteceria teria recusado e seguido com a Companhia para a América, porém não temos como saber.

— A senhorita tem visitas — fala uma das enfermeiras entrando no quarto e me trazendo ao presente novamente. Ela tem a pele tão escura quanto ébano e é a única que não me dedica a sua pena.

— Não mudei de ideia, continuo não querendo receber ninguém.

— Tudo bem, direi ao general Wilson que...

— O general Wilson está aí fora?

— Exatamente.

— O que ele está fazendo aqui?

— Isso a senhorita terá que perguntar — abriu um pequeno sorriso. Raios, ela tinha razão.

— Me traga um espelho, Esther, não quero estar parecendo uma gata borralheira — sorriu ainda mais. Alguns minutos depois estava com os cabelos penteados e as bochechas artificialmente coradas, e Esther me arrumou da melhor forma possível em uma cadeira ao lado da janela. Eu odeio a minha nova condição, mas o general Wilson não me verá lamentando.

— Anya — diz entrando no quarto, a primeira coisa que realmente vejo é sua farda absolutamente engomada.

— Senhor — sorri. — Eu faria uma mesura se pudesse...

— Eu vim em paz, Anya — suspira.

— E o que o traz ao Hospital dos Inválidos? — pergunto encarando seus olhos muito azuis, um reflexo dos meus próprios.

— Eu havia me esquecido desse seu gênio forte, Annie — abre um pequeno sorriso. — Senti de forma extremamente dolorosa o seu acidente, temi perdê-la como perdemos Klaus, por isso quero que você vá para a América...

— Eu não vou para a América, general...

— Não seja teimosa; Além de estar em segurança, você será atendida pelos melhores médicos. Existe até mesmo um programa de reabilitação em Nova York. Você ficará em uma base...

— Eu não sou um dos seus soldados...

— Você pode não assinar mais meu nome, mas ainda é minha filha, Anya.

— Me lembro do senhor deixar bem claro quando recusei o pedido de casamento do Peter Fox que não era mais sua filha — rebati no mesmo tom.

— Estávamos todos abalados com as proporções da guerra...

— E por isso o senhor passou dois anos sem responder às cartas que enviei....

— Troquei muitas vezes de posto, Annie, quando finalmente as recebi...

— Eu já havia desistido do senhor e foi a minha vez de trocar de cidade com a Companhia.

— Você deveria ter ido para a América com os outros...

— Klaus deveria estar vivo. Essa guerra sem sentido nunca deveria ter começado. Eu deveria ter pernas. O senhor, quer mesmo falar sobre coisas que nunca vão acontecer? — questiono amargurada.

— Você ainda tem uma vida pela frente, An...

— Por favor, não me chame assim...

— Todos sentimos a falta dele — fala com pesar.

— Fiquei tão brava por ele ter sobrevivido à Batalha da Ponte para morrer de forma tão estúpida, eu disse para ele não voltar para casa...

— Eu sei, filha, mas se ele não tivesse voltado teríamos perdido vocês dois.

— Sei me cuidar, pelo menos sabia quando tinha pernas.

— Anya, você ainda tem pernas...

— Inúteis. Estou presa em um corpo moribundo.

— Você é jovem, tem a vida inteira pela frente, Annie...

— Uma vida inteira presa a uma cadeira estúpida.

— Você... — sua fala é interrompida por um pássaro que se choca contra a janela, levo as mãos ao peito com o susto. O general Wilson se aproxima da janela e a abre, resgatando o passarinho minúsculo e colorido do frio. — Veja, Annie, é um Cantaluz...

— Como isso é possível? Estamos em fevereiro, está muito frio para eles já estarem em Londres — lembrei completamente em choque enquanto ele me mostrava o pássaro típico do nosso país.

— É um sinal de esperança, Annie.

— Esperança do quê, senhor? Nosso futuro é incerto, a guerra tem tomado proporções gigantescas e está nos aniquilando.

— A guerra pode ter tomado nossa casa e levando Klaus, mas ainda há esperança. Sairemos quebrados dessa guerra, contudo, vitoriosos.

— Não vejo muitas vitórias no meu futuro.

— Você está amargurada pelo acidente..

— Eu nem mesmo deveria estar naquele carro, aceitei apenas por causa do príncipe, que nem teve a decência de vir me visitar! — gritei farta daquele discurso que eu deveria ser grata por estar viva, que sou um milagre. Eu preferia ser um milagre com pernas, mas estava condenada a ser uma bailarina que nunca mais pisaria em um palco por culpa de um bombardeio idiota em uma guerra idiota.

— Annie — O pássaro piou e meu pai me encarou. — É horrível o que lhe aconteceu, mas não podemos mudar o passado, apenas viver da melhor forma possível o futuro. Por isso insisto para que você vá para Nova York, você vai gostar da cidade...

— É o que as cartas de Lizzie dizem, vou gostar da cidade, achar maravilhosa, mas isso era antes, quando eu ainda tinha pernas.

— Anya, o que lhe aconteceu foi uma fatalidade terrível, porém, o que acontece daqui para frente é escolha sua. Você pode escolher viver eternamente amargurada e ressentida com tudo e todos ou pode aprender a ser feliz na sua nova vida, porque tudo o que somos apenas nós determinamos — com cuidado, ele colocou o passarinho em cima da cama e observou sua asa, que parecia ferida. — Eu perdi um filho para essa guerra, Annie. Me recuso a perder outro. É por isso que voltarei amanhã e quantos outros dias forem necessários até convencê-la a ir para a América. Lá você não apenas estará segura como também terá chances de ser feliz.

Ele pegou o animalzinho e deixou o quarto, sem se importar se me deixava ou não atônita. Foi a primeira vez que vi o famoso general Wilson demonstrar tantos sentimentos, mas não foi a última. Tanto que ele e mamãe acabaram por me convencer a ir para Nova York. Em vinte e um de maio de mil novecentos e quarenta e quatro mamãe e eu embarcamos em um navio e partimos rumo a nossa nova vida mais uma vez despatriada.

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