Interlúdio
Através das memórias de Blasph, Sophia conseguiu compreender melhor a sequência exata de acontecimentos. Infelizmente, ela ainda não conseguia entender exatamente como o animal surgiu, e o que aconteceu de tão especial para que o mesmo despertasse, mas conseguiu visualizar o ocorrido.
"Blasph não suportou ver a mestra se desculpar, Blasph sentiu que deveria fazer algo" — foi como ele descreveu o momento exata de seu nascimento.
E assim que ela se desculpou por estar lhe abandonando, o animal surgiu como uma somatória surreal de vontades que nem mesmo Sophia compreendeu, mas que sabia muito bem partiram dela. Era algo tão distante, que o Blasph de agora, fundido com a adaga, era muito mais fraco do que o Blasph que havia acabado de ganhar consciência.
Sem escrúpulos Blasph se alimentou de uma quantidade surreal de almas enquanto avançava em direção ao portal aberto no céu, e foram essas almas das quais se alimentou, as quais devorou, que lhe deu poder para se esconder de Alster. Se lembrar de como Blasph perfurou e consumiu aquelas vidas em desespero e agonia não fez exatamente bem para Sophia. Ela já sabia disso, mas constatar era um pouco aterrorizante, a grande verdade é que, por sua mestra, Blasph não se importaria de consumir e destruir tudo a sua volta. Mesmo que milhares de vidas fossem destruídas, ele não se importaria desde de que sua criadora estivesse bem.
Enfim, o poder de uma vida é algo muito poderoso, e com esse poder acumulado o gato não só invadiu a biblioteca do velho, como se escondeu de forma que o mesmo nem sequer percebesse. Apesar de ter devorado milhares de almas ainda não era suficiente para vencer aquele monstro, Alster era surreal e o gato percebeu isso logo de cara. Bastou um golpe do Bibliotecário e quase noventa por cento do poder de Blasph foi consumido enquanto tentava defender sua criadora. O gato se desesperou, mas como precaução o mesmo já estava tentando escapar daquele ambiente sem precisar necessariamente do aval daquele velho medonho. Quando a situação apertou Blasph conseguiu escavar um caminho e foi através deste que fugiu dali.
Por fim, enquanto Sophia cortava os céus, usando o corpo gelatinoso de gato como receptáculo temporário, o animal fez o que julgava ser sua última ação. Em meio ao desespero ele implorou por uma saída, e um ser que conhecia muito bem respondeu por instinto, Desejo, a Blasfêmia mais antiga de Sophia, e em seu ápice, a mais assustadora. Blasph não achou que algum daqueles seres adormecidos pudessem acordar, não com tão pouco para lhes preencher, mas o mais próximo de sua criadora o fez, pois assim como Blasph, a amava demais.
"Você sabe o que deve fazer..." — disse Desejo, e em um tom que evocaria em qualquer mortal uma vontade incompreensível de ceder e simplesmente se ajoelhar em sua presença. Mas apesar de ser uma voz que simplesmente por ser reproduzida conseguisse colocar quem a ouvisse no caos, o ser que emitia não apresentava ressentimento, pois este sempre esteve, está e estaria disposto a se sacrificar por aquela que o criou, este era Desejo, a primeira Blasfêmia de Sophia e o responsável por conceder a mesma tudo o que desejasse.
Entendendo seu companheiro Blasph se desculpou e fez, sacrificou um dos domínios de sua criadora e sua própria vida para ressuscitá-la. Não foi um trabalho perfeito, mas era o que ambos podiam fazer naquele momento, pois todos estavam fracos demais no momento.
Só que, apesar de aquele gatinho ter alcançado seu ponto de ruptura, algo não deixou que ele mergulhasse eternamente no esquecimento. Antes que a criaturinha dissipasse, antes que o gato despencasse na escuridão absoluta, uma mão o agarrou.
Foi um evento corriqueiro para as proporções vastas do universo. Juntando forças por milhares de anos a fio, um antigo rei, um homem chamado Hereges, um ser tingido pelo abismo devido ao contato que teve com o assassino de sua mestra — mestra no sentido de professora e não de servidão —, sentiu algumas presenças estranhas.
Mesmo que aquele sarcófago de pedra tivesse sido construído para selar sua ira pós-morte, não era infinito, e aquele velho aguardou pacientemente até que o mesmo deteriorasse.
Há milhares de quilômetros do solo, logo acima de um mundo tão mágico quanto antigo, especificamente sobre os vastos cânions de Saluth, uma fissura que permeava tanto o mundo material quanto espiritual, surgiu. De dentro desta despencou uma jovem alma envolta por uma gosma escura que a todo custo queria protegê-la.
Mesmo preso em seu sarcófago Hereges ouviu, pois aquele ser de presença assustadora clamava por ajuda. Em seu âmago havia uma alma de aspecto curioso, completamente pura em toda a sua essência, mas que misteriosamente projetava uma escuridão abissal que lhe servia com afinco.
Apesar de ter ouvido o clamor desesperado daquele nobre servo animal, Hereges decidiu não interferir, aquele era o poder que reuniu por milênios e se os ajudasse, perderia tudo. Sua chance de escapar daquele selo escorreria por entre seus dedos, e mesmo que fizesse tanto tempo seu desejo de vingança permanecia intacto.
Mas de repente o clamor feroz daquele ser foi atendido, fazia tempo que Hereges não sentia uma presença demoníaca tão vil, uma com tanto Desejo. Um ser respondeu ao chamado do gato, e sacrificando o que lhe restava o animal redirecionou a alma de sua criadora. Não foi um trabalho perfeito, haviam falhas, mas aquele velho selado não conseguiu evitar de admirar a dedicação do pequeno animal.
Em questão de segundo artes secretas foram lançadas no ar, o domínio espiritual rangeu e uma alma alcançou um corpo recém-morto.
Percebendo que o responsável por tudo aquilo estava prestes a se deteriorar, prestes a sumir da existência, o velho não conseguiu evitar de se mover. Foi muito mais forte do que ele. Quando viu já estava diante da gosma que se decompunha, e junto a ela encontrou uma pessoa que há anos não via.
— Já faz tanto tempo Ciris, como Alster têm estado? — Hereges sorriu e fez um movimento rápido, simples e elegante, sem qualquer cerimonia ou desperdício ele simplesmente agarrou seu alvo.
A moça não conseguiu evitar o susto. Ela estava absorta em sua missão. Assim que Alster disse pega, ela correu. Com todas as suas forças ela atravessou os céus daquele mundo a passos largos, um feito deveras impressionante para alguém que usava saltos em seus pés e uma saia consideravelmente incomoda para corridas. Tudo foi feito em prol de capturar aquele pequeno individuo antes de o mesmo se decompor. Não era fácil para aqueles sem conhecimento sobre o assunto dominar qualquer coisa que tivesse ligação com o fim dos tempos, com as profundezas do abismo. E por isso foi fácil para Hereges, um indivíduo que a muito tempo teve sua alma tingida pela escuridão absoluta.
Sem hesitação Hereges apenas capturou o animal em sua mão direita, e sorrindo, sumiu no ar. A moça chamada Ciris só teve tempo de suspirar, pois logo que perdeu o animal ouviu um grito furioso que atravessou dimensões somente para perturbá-la... digo, avisá-la. Sem muito mais o que fazer e com seus ombros pendendo entristecidos, a moça recebeu em suas mãos, e de uma distância surreal, uma carta envelopada e selada com o brasão da instituição de seu patrão. Já tendo falhado naquela missão a jovem Elfa simplesmente atirou o envelope contra a vastidão daquele mundo, mas teve certeza de que a mensagem chegaria ao seu destinatário.
Naquele instante, enquanto ainda fugia de um certo besouro negro, Sophia não tinha muito como receber a mensagem, mas hereges a pegou, repassou e a jovem em questão a respondeu.
Com a mão em seu peito e completamente ofegante, mesmo seu "corpo" não passando de uma projeção, um senhor de idade que há muito tempo perdeu seus olhos, sorria. Uma vontade fantasmagórica de adormecer tomava por completo seu espírito, mas este resistiu, pois estava extasiado demais por causa de uma imagem. O rosto daquela jovem de olhos ferozes e cor de âmbar permanecia intacto em seu imaginário, e era muito similar ao daquela pessoa.
Uma gargalha que não conseguiu impedir logo irrompeu, e mesmo que sangue negro saísse de sua boca; escorresse por seus lábios, ele riu com vontade e paixão:
— Me desculpe mestra, mas eu pequei, eu fiz o que jurei a ti não fazer, eu não só a vi, como fiz pior, eu a ajudei... — A gargalhada de Hereges reverberou ainda mais; ainda mais louca, ainda mais feroz, ainda mais envolta em vontade e alegria, histérica; mas de repente cessou, pois o velho sem olhos encarou o teto pedregoso do espaço onde foi selado e caiu apagando lentamente.
Só que não o fez antes de proferir um último praguejar, antes de sibilar suas vontades:
— Só que não me arrependo mestra Morgana, pois sei que ele a quer, e tanto quanto puder, vou alimentá-la, mesmo que ela engula o mundo, a alimentarei, pois quero que o assassino da mestra sofra o inferno, e espero com todo o meu ser que sofra nas mãos do próprio abismo... — Hereges riu com um gosto sem precedentes, quanto mais imaginava aquele que odiava sofrer, ele ria, pois estava animado. — Pense só no quão irônico, o motivo de sua idolatria ao final de sua vida mortal ser o motivo de seu fim. — O velho não conseguiu evitar a empolgação que preenchia seu peito, não conseguiu evitar que a êxtase que tomava o controle de sua existência enquanto desvanecia. — Provavelmente o abismo não gosta de ser idolatrado por tipos asquerosos como você, Salomão. — Gargalhou loucamente até, por fim, não ter mais força sequer para manter uma simples projeção.
Sem qualquer força restante, Hereges simplesmente se deixou levar pela escuridão de seu sono, infelizmente levaria tempo para que pudesse se recuperar o suficiente a ponto de rever o mundo que existe no exterior de seu selo.
E levaria mais tempo ainda para que pudesse quebrá-lo por si mesmo. Apesar de ter ficado velho, Hereges tinha que admitir, o selo era muito bem-feito.
Mas claro, isso apenas se desconsiderarmos as ações de Sophia.
As luzes de um suntuoso salão em formato circular estavam ligadas. Já fazia algum tempo que aquele ambiente fora usado pela última vez, mas devido a ocasião especial, o dono de todo aquele complexo decidiu que deveria mostrar cortesia. A pessoa que receberia ali não era um de seus mestres supremos, mas mesmo que não fosse deveria mostrar-lhe respeito, pois mesmo que desgostasse, era um ser mais poderoso do que Alster.
Flutuando no ar havia uma esférica pedra arenosa parecida com uma pequena lua emitindo um fantasmagórico brilho esbranquiçado e tranquilizador. As paredes do salão em si foram construídas com tijolinhos de pedras esverdeadas similares a malaquitas e de aparência hipnótica devido a sua peculiar sedimentação; já o piso era composto por blocos hexagonais de um escuro azul opaco, bem parecido com lápis-lazúli. Bem no centro deste ambiente em formato arredondado havia uma larga e longa mesa com estrutura de sustentação feita em Aço Celeste, um metal de coloração branco perolada, e tampo de Granito Nebuloso, uma misteriosa pedra negra que devido a sua estranha formação parecia abrigar dentro de si toda uma mistura de gases ionizantes e poeira multicolorida.
O velho estava dentro da sala mais luxuosa daquela estrutura, o complexo do qual Alster é dono e onde se encontra a Instituição Mágica de Ponte Rubi, a qual é reitor, e a grande Biblioteca Sem Fim, local do qual mais têm ciúmes e apreço em toda a extensão de suas posses.
Naquele momento Alster estava acomodado numa cadeira de madeira branca com leves e claros riscos amarronzados em toda a sua extensão. O reflexo suave que a mesma emitia era tão belo que parecia ter sido lustrada até o ponto de quase adquirir brilho próprio. O estofamento vermelho sangue feita com fios de Seda Demoníaca e preenchidos com plumas de Grifo apenas ressaltava a faustosidade do item. Só que mesmo rodeado por tanta riqueza o velho não conseguia se acalmar. Com os cotovelos sobre a mesa Alster apoiava seu queixo sobre seus punhos e encarava fixamente uma carta envelopada cujo conteúdo o mesmo já havia assistido e repetido. Seus olhos não vacilaram por um segundo sequer, mas sua perna direita movendo-se incessantemente por baixo da mesa deixava clara a inquietação que sentia.
— Droga! — o velho não conseguiu evitar de pronunciar antes de enfim se deixar relaxar um pouco. — Gato maldito! — praguejou de forma mais leve, mas ainda resignado com o ocorrido.
Após ter controlado melhor sua tensão Alster fez um sinal, abanou sua mão direita para uma bela jovem de cabelos loiros, presos em um volumoso coque atravessado por dois pauzinhos, e que permanecia em silêncio logo ao lado daquela grande mesa, esperando uma ordem.
Quando chamada ela se aproximou um pouco, mas logo parou a uma certa distância do senhor de idade, só que não o fez antes de, por toque, ajeitar sua gravata borboleta cor vermelha.
— Não se preocupe, não a culpo por não ter conseguido. — Alster suspirou consternado. — Sinceramente não imaginei que meu antigo colega estivesse bem ao ponto de atravessar brevemente seu selo — resmungou em voz baixa.
Não querendo interferir a jovem mulher apenas continuou parada enquanto se mantinha altiva e imperturbável, apenas escutando. Aquela jovem era a visão perfeita de uma atendente. A moça trajava um colete cinza com botões de ouro, uma camisa branca semitransparente por baixo do mesmo e em conjunto com uma longa saia negra até os joelhos dotada de curtas fendas em ambos os lados.
— Enfim... — o senhor de idade se voltou para um tópico um pouco mais eminente. — Ele deve estar próximo, então apenas traga algo que o mesmo possa gostar — completou mudando de foco.
Após receber sua ordem a mesma apenas maneou sua cabeça e bateu palminhas com suas mãos cobertas por luvas brancas. De repente, toda a mesa fora preenchida por uma fartura insondável de comida dividida em uma boa variedade de pratos. Aquela é a principal atendente de Alster, uma jovem que desconhece a brevidade de uma vida, um ser que já beirava seus milhares de anos e uma governanta fiel, aquela é Ciris
— Espero que esteja de seu agrado — A jovem desejou antes de se retirar.
Quando Ciris partiu, atravessando a grande porta dupla vermelha e redonda que dava acesso aquele ambiente, não demorou para que todas as luzes do ambiente falhassem e a entrada reagisse. O batente composto por blocos escuros e cheios de runas douradas emoldurando seu contorno, brilhou, e quando o fez, a porta de madeira se abriu para revelar uma pessoa, ao menos, a silhueta de uma. Quando esta figura se focou em Alster, um largo sorriso surgiu em seu rosto sombrio.
— Você me parece muito cansado Alster, não quer que eu lhe substitua na gerência da Biblioteca Sem Fim? — Um homem, dotado de uma voz tão idosa quanto a do velho a quem se referia, se prontificou.
No rosto daquela figura havia um sorriso provocativo, mas muito difícil de perceber, pois este ser estava envolto por uma fina, mas concentrada, camada de escuridão. Os contornos e nuances de seu corpo foram completamente apagados fazendo com que houvesse ali apenas uma silhueta escura com duas bolinhas brancas e brilhantes — seus olhos — acima de uma fileira de quadradinhos cor de marfim — seus dentes. Só que, apesar de suas vestes também sofrerem do mesmo mal que seu corpo, ainda eram reconhecíveis.
Em sua cabeça o mesmo sustentava um chapéu cônico e pontudo, mas com sua ponta levemente curvado para trás devido ao peso de sua estrutura, e com uma dourada fivela habitada por um grande olho inserido na vertical. Não dava mais para reconhecê-lo desta forma, mas aquele já foi um belíssimo chapéu de couro. Por fim aquele senhor também trajava uma longa e lustrosa túnica, mas que assim como as demais peças, também fora consumida pela escuridão.
Olhando de perto aquele ser quase parecia um desenho em preto e branco que se move. As características de suas roupas só eram reconhecíveis devido a seu peculiar sombreamento. A imagem daquele homem era a de uma ilustração tridimensional feita a partir de fugazes injeções de nanquim, mas preenchido com detalhes aos quais nada mais eram do que a não aplicação de tinta preta sobre o papel branco. Em resumo, um desenho preto sombreado a branco.
Ver aquele homem trouxe a Alster memórias de um certo gato, fazendo seu humor já bastante azedo, piorar um grau a mais.
— Prefiro evitar suas interferências desnecessárias, Salomão —retrucou de forma amarga.
O olhar afiado que ambos os velhos trocaram podia cortar uma pessoa ao meio caso fosse colocada entre aqueles dois. Esse era o tanto que não se gostavam, mas apesar de terem suas rixas, se respeitavam como iguais, pois aquele ser também fazia parte do mesmo seleto grupo que Alster.
Quem surgiu foi uma das divindades mais jovens — por tempo de atividade e não aparência — mas poderosas, do panteão superior; Salomão, o atual Senhor dos Demônios, ou se preferir, o atual Maou.
— Desnecessária? — Salomão emitiu uma gargalhada ensaiada. — Eu a tornaria muito maior do que como está em suas mãos! — ele parou de repente para emitir um olhar sério e fulminante.
— Eu adoraria ver você tentar? — Alster devolveu o olhar sacando seu cajado.
Por algum tempo eles permaneceram assim, tencionando o ar com a força de suas desavenças. Mas após aquela breve troca de farpas, ambos suspiraram e sem muita cerimonia Salomão sentou de frente para Alster, na ponta oposta à que o bibliotecário estava. Apesar de não se gostarem era melhor que não lutassem e o atual senhor dos demônios era quem mais tinha a perder com aquela batalha.
Assim que um evento começava, Alster se tornava praticamente intocável. Salomão só conhecia dois seres que poderiam espancar o velho mesmo durante o período de um evento, mas seria custoso demais ganhar a boa vontade de um deles, fora não valeria a pena.
— Por que me chamou aqui? — Salomão já logo indagou, não estava muito a fim de perder qualquer fração que fosse de seu precioso tempo.
— Só queria me certificar do quão bom ator você é. — Alster não se absteve de lançar sobre seu convidado um intenso olhar provocativo.
Por alguns instantes Salomão pareceu confuso. Não haviam muitas nuances em seu rosto devido a escuridão que o permeava, mas ter parado a taça de vinho que planejou degustar em meio ao ar deixou claro seus sentimentos.
— Mas já tenho minha resposta, sua ação me deu a resposta que queria — Alster continuou e a cada frase que dizia Salomão ficava consideravelmente mais confuso, mas o velho não se conteve: — Então coma, e não se acanhe, pois já sei que é o melhor dos atores. — Alster voltou a apoiar seus cotovelos sobre a mesa e esconder sua bocarra sobre a interseção de suas mãos, encarando seu convidado ainda imóvel por cima de seus dedos.
Por alguns instantes Salomão permaneceu daquela forma, imóvel, parecendo processar aquelas linhas repentinas, mas após longos segundos, sorriu.
— Finalmente você enlouqueceu velho gagá? — Não conseguiu evitar de questionar.
E não conseguindo conter sua fúria Alster rosnou.
— Não se faça de desentendido Salomão! — Socou o tampo da mesa fazendo com a enorme variedade de pratos chacoalhasse, talheres vibrassem, e algumas taças, até mesmo garrafas, tombassem sobre a mesa ou rolasse sobre sua superfície perfeitamente alinhada até superarem suas bordas e se encontrarem com o chão. — Um fragmento do abismo não surge do nada em um mundo estéril — irrompeu perdendo as estribeiras em seu tom e se levantando vermelho de ódio.
Colocando cuidadosamente sua taça sobre a mesa, Salomão gargalhou alto, alto e claro.
— E que culpa eu tenho? — debochou apenas dando de ombros. — Eu ainda permaneço vivo, logo, não creio que tenha feito nada de errado — complementou sorridente.
"Caso eu tivesse feito algo condenável, você sabe que os Ancestrais já teriam me apagado." — Foi basicamente isso que o velho abraçado pela escuridão quis dizer nas entrelinhas, e Alster sabia que não estava errado, mas a maneira como os Ancestrais agiam sempre fora um mistério para o mesmo, e ele definitivamente não queria apostar sua vida em possibilidades quase vazias.
— Você devorou a magia daquele mundo Salamão! — sem mais qualquer nível de paciência o velho se descontrolou, pecando em sua dicção. — Você banqueteou-se com a carne dos deuses daquele buraco, você tingiu cada um dos demônios de lá com a essência do abismo até enlouquecê-los e ganhar controle sobre os mesmos, então me diga você como um fragmento do abismo pode surgir naquele mundo que... — O velho fez uma pausa breve, apoiou suas mãos sobre a mesa e projetou seu tronco para frente. — Naquele mundo que você mesmo disse que era morto, fadado ao fracasso e ao esquecimento, no mundo em que você disse ter devorado toda a magia que existia — enfim colocou para fora o que queria, e apesar de um pouco aliviado, não hesitou em seu olhar furioso.
Salomão não se intimidou, todo aquele ódio destilado contra sua pessoa não passou de uma leve brisa de verão. E sorrindo o senhor da escuridão se dirigiu ao companheiro de posto.
— Sente-se Alster, você claramente precisa tomar um fôlego. — Apontou para a cadeira em que o mesmo esteve sentado antes de perder seu controle. — Salamão é sacanage — protestou, mas em um tom despojado que claramente abraçava o deboche.
— Me responda logo! — o senhor monstruoso rugiu diante a clara falta de consideração.
Salomão não conseguiu evitar de se deliciar com o fato, mas conteve seu ímpeto brincalhão, e não gargalhou.
— Nunca faça afirmações tão concisas sobre algo que não entende Alster — completamente composto o senhor dos demônios disparou, e entes que seu colega explodisse, continuou. — Não se faça de entendido, você não sabe o que é o abismo, e muito menos como surge, mas como companheiro, lhe direi uma coisa. — Salomão se aproximou um pouco mais da mesa, puxando sua cadeira para frente, e então projetou seu tronco o tanto quanto conseguiu, o tanto quanto um corpo humano conseguia, e colocando sua mão direita do lado esquerdo de sua boca sussurrou. — Não têm relação alguma com qualquer poder que você conhece, é algo que simplesmente surge e, curiosamente, quase sempre ele surge perto do fim de algo — finalizou exibindo seu mais glorioso, e um tanto quanto intimidador, sorriso de orelha a orelha.
Por algum tempo Alster encarou Salomão, em silêncio, o homem de corpo e vestes escuras não se conteve, e diante de tanta comida não fez cerimonia em se servir. A verdade é que Alster não conseguia dizer se o mesmo estava mentindo ou não, e muito menos tinha como saber.
Perdido o velho medonho apenas retornou ao seu lugar.
— Você pode me explicar o que é o abismo? — questionou desgostoso.
Salomão não se demorou: — hehehe, gosto da posição que gozo hoje em dia Alster, e ela advém do conhecimento que possuo sobre o Abismo, não posso entregar de mãos beijadas o conhecimento que me tornou o que sou hoje — ele sorriu.
Alster não insistiu, mas seus olhos ainda recaiam profundamente pensativos e desconfiados sobre o ancião que, curiosamente, era mais novo do que ele próprio. Percebendo que ainda estava sendo julgado Salomão parou um pouco com sua bebedeira e comilança e se voltou para seu antigo companheiro
— O que ainda tanto te aflige? — questionou de maneira divertida
— Nada, só curioso com como um item oferecido justamente por você, um mestre relacionado a assuntos que tangem o abismo, foi parar nas mãos dela — Alster fingiu descaso, mas apenas fingiu, pois claramente estava se mordendo de desgosto.
Salomão cravou o garfo que segurava em um pedaço de carne qualquer, levou-o a boca e mastigou vagarosamente, e tendo terminando não se absteve de responder: — Você sabe, coincidências acontecem, as vezes o universo parece menor do que o meu pau — o velho sorriu e continuou a saborear as delicias contidas naquele suntuoso banquete.
— Como se você ao menos tivesse algum. — Alster não conseguiu evitar de suspirar.
E Salomão não evitou de responder. — Pois é, nem corpo eu tenho mais! — brincou, e abrindo seus braços como se quisesse deixar bem claro o estado no qual estava, sorriu largamente com seus dentes anormalmente brancos. — Mas lhe garanto que nem sequer preciso de um para realizar maravilhas — incluiu uma piscadela breve junto a sua provocação final.
Alster apenas suspirou contrariado.
A belíssima luz dourada que normalmente transmitia vida para aquele salão nunca pareceu tão acinzentada. A porção de comida que havia servido para si mesmo continuava intocada, pois não importava o quanto a encarasse e se forçasse a tentar comê-la, não possuía ímpeto suficiente. A experiência que teve a pouco não permitia que a mente daquele velho bibliotecário e reitor se acalmasse por um instante sequer.
— Droga! — disse em voz baixa em meio a um suspiro sem gosto e a uma carranca cansada.
Percebendo que comer não lhe traria a paz necessária, seguiu em frente. Deixando seus talheres de lado Alster pegou um sininho que permaneceu o tempo todo sobre a mesa logo ao lado de seu prato, e o tocou sem qualquer cerimônia.
Em questão de segundos uma jovem passou pela enorme porta vermelha com gravuras em seu batente. Sem demoras a mesma atravessou o grande salão e parou logo ao lado da suntuosa mesa, apenas a alguns passos do senhor monstruoso.
— Deseja alguma coisa mestre Alster? — disse Ciris após se curvar respeitosamente na presença do velho de feição claramente azeda.
— Retire a mesa. — Alster foi breve.
A jovem não questionou, e assim como fez mais cedo apenas bateu palminhas. Em questão de segundos todos os pratos sumiram no ar como se nunca tivessem sequer existido. E não só os pratos, mas qualquer migalha deixada por Salomão também fora aspirada para o mesmo limbo.
Assim que a jovem terminou o ato a voz gutural de Alster preencheu o recinto novamente: — Ele estava mentindo... — afirmou sem qualquer delonga. —...assim como sempre esteve. — Não conseguiu evitar que suas veias saltassem a testa, mas permaneceu contido, segurando essa raiva dentro de si.
Tentando se acalmar e se lembrando de que sua principal atendente estava logo ao lado, se virou para a mesma e alinhando sua postura a questionou:
— Quais foram os resultados, Ciris? — Sua voz soou muito mais composta desta vez.
— Se me permitir — a jovem passou o braço direito à frente de seu tronco e se curvando um pouco esticou seu braço esquerdo em direção a porta, como se apresentasse a mesma, algo parecido com como um mágico e sua assistente fazem no meio de um show, mas essa incrível atendente o fez de forma consideravelmente mais elegante do que uma assistente de palco o faria.
Alster logo entendeu as intenções da moça e maneou sua cabeça positivamente, dando-lhe sua permissão. Ele não discutiu, pois desejava algumas perguntas. Interessado no que estava por vir Alster cruzou suas pernas, se aproximou um pouco mais da mesa e apoiou seu rosto no punho semifechado de seu braço direito, deixou que o mesmo sustentasse no ar o peso de sua cabeça.
Ciris rapidamente se dirigiu a porta e, abrindo-a, três seres pisaram seus pés naquele suntuoso recinto. Três indivíduos de túnicas pretas, esfarrapadas e com capuz entraram no recinto e logo que vislumbraram a figura de Alster ajoelharam-se encarcando suas testas contra o chão. Aquele velho ainda era uma Divindade Superior, e isso queria dizer que, não importando o panteão, Alster ainda era consideravelmente mais poderoso do que uma infinidade de Deuses através dos múltiplos universos que existem.
— Oh, meu senhor, estes humildes servos sentem-se gratos por poderem vislumbrar sua grandiosidade — disparou a figura que jazia ao meio do grupo de três.
Alster revirou os olhos. Aquela cena lhe trouxe lembranças dolorosas, aquelas três figuras se prostrando daquela forma logo o fez se lembrar de si mesmo, logo o fez se lembrar de todas as mesuras que fazia, e de todas humilhações que passava diante dos Ancestrais.
— Se abstenham de tagarelices — irrompeu. — Vamos direto ao assunto, por favor — completou.
Não era possível saber apenas observando de fora se tinham, e talvez aquelas três criaturas realmente não possuíssem, mas sincronizadamente os três engoliram em seco mesmo que sequer parecessem ter um meio para tal.
O pouco que era possível ver de seus corpos carcomidos, tornava fácil perceber que aqueles seres não estavam em um bom estado. Diferente de Salomão, que parecia ter se fundido de corpo e alma com a escuridão, aquelas três figuras se encontravam em uma situação bem mais delicada. Nos braços, única parte exposta, tornava-se possível ver o efeito do abismo. A pele estava roxa, com veias entupidas de sangue coagulado e diversos machucados que minavam um líquido denso escuro como petróleo. Também era possível perceber que de vários pontos estruturas obsidianas piramidais, que pareciam perfeitamente esculpidas, fissuravam a pele dos mesmos surgindo diretamente do interior de seus corpos.
— S-sim, t-tudo bem, o que deseja de nós, meu senhor? — aquele que parecia o líder se apressou para perguntar educadamente.
Aquilo também lembrou Alster de si mesmo, o medo que sentia sem saber se havia irritado ou não aquelas criaturas superiores que chama de Ancestrais. Aquelas ações só não lembraram a ele seus próprios atos, da violência que perpetuava contra seres dos quais não tinha o menor interesse, e que perpetuou contra todas aquelas almas humanas as quais inseriu sem escolha alguma em seu joguinho.
— Primeiro sente-se na mesa, há uma cadeira logo a sua frente, e os demais, podem se levantar — Alster irrompeu.
As criaturas pareceram vacilar, mas Alster não deixou que duvidassem. — Andem logo! — Seus olhos queimaram uma brasa fugaz de um ódio fingido.
As três figuras encapuzadas estremeceram e sem perderam qualquer segundo a mais se levantaram. A figura que parecia o líder já logo se apressou e sentou-se à mesa junto com o velho reitor e bibliotecário.
— Melhor — parabenizou sem demonstrar muita afeição e logo chegou no ponto que queria. — Me digam, o que encontraram naquelas almas? — questionou sem mais delongas.
A figura encapuzada sentada a mesa, e com suas mãos tremendo embaixo da mesma, apenas levantou um pouco sua cabeça e coletando uma força que mal sabia ter, respondeu.
— Sim, senhor! — começou, e sem esperar que seu contratante pedisse, foi em frente: — Todas as dez almas mais proeminentes estão tingidas pelo abismo. — respondeu de cabeça baixa, mas em um tom completamente audível.
— Tudo bem — foi apenas isso, foi tudo o que Alster disse.
O rosto do velho reitor e bibliotecário permaneceu igual. Seu olhar, suas feições, tudo continuou o mesmo, impassível. Mas por um milésimo de segundo Alster quase alcançou o estado de descontrole, foi uma ação rápida, tão rápida que quase passaria despercebida, mas aquelas três figuras, e Ciris, sentiram. Uma fúria aterrorizante preencheu o ambiente e sumiu tão rápido quanto surgiu, crescendo e diminuindo em um espaço de milésimos.
Como se nada tivesse acontecido Alster se pronunciou novamente: — Vocês conseguiriam me dizer o que é essa... — de repente as palavras não saíram, o mesmo não sabia bem como colocar aquilo em palavras, pois por mais que odiasse admitir, Salomão estava certo, ele realmente não sabia nada sobre o abismo, apenas que era perigoso e que quando se descontrolava consumia tudo apagando o que fosse da existência. Não havia livro algum sobre aquilo, ao menos não que Alster os conhecesse, mas não duvidaria que Salomão tivesse os poucos exemplares escritos. — ...mancha? — Alster não tinha certeza sobre a palavra que escolheu, mas se seus convidados entendessem, então serviria. — ...enfim, essa coisa que está com eles. O que é? — Encarou a figura encoberta pela escuridão de suas vestes.
As três figuras se entreolharam brevemente e parecendo terem concordado com algo, o líder logo se pronunciou.
— Não é uma mancha comum do abismo, foi o trabalho de alguém que entende o mínimo, é simplesmente uma porção inerte. É uma técnica antiga, já que a escuridão do abismo não costuma interagir com nada conhecido, costumamos usar porções sem reação, inertes, como uma espécie de defesa contra detecção.
Alster ficou em choque assim que compreendeu a ideia, mas ainda que estivesse, sua boca se moveu.
— Tudo feito apenas para esconder o que quer que esteja dentro, certo? — questionou, mesmo já sabendo a resposta.
Percebendo que era uma pergunta retórica, o líder das três figuras trajando preto, apenas balançou sua cabeça positivamente, mas não ousou falar nada. Apesar de seu rosto e tom atuais não expressarem raiva, os olhos de Alster estavam afiados, mais afiados do que qualquer navalha que aquelas figuras já tenham visto.
— Ciris! — Alster irrompeu de forma contida, ele não queria parecer um descontrolado e assim que sua atendente demonstrou reação já logo a incumbiu de um trabalho sem sequer se importar com a presença daquelas três figuras no recinto. — Emita um aviso, uma autorização de interferência está sendo solicitada, e destrua aquelas coisas, seja lá o que estiver escondido dentro de cada uma delas.
Ainda encarando aquelas três figuras, ou melhor, encarando um horizonte distante, encarando um passado no qual outro velho como ele esteve ali presente, os olhos de Alster emitiram um brilho assustador.
— Você ainda há de pagar com sua vida Salomão! — sibilou em voz baixa, uma emitida em uma frequência inaudível para humanos e uma porção de outras raças, pois aquela frase fora proferida em sua língua materna. — Eu juro! — completou.
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