Capítulo 9 - A escuridão em suas órbitas vazias
Com um pulso de informação a sensação de quase morte girou as engrenagens do cérebro de uma garota. Ainda com medo e pronta para se defender uma jovem de pele escura e cabelos cacheados acordou assustada enquanto imediatamente se lembrava do que havia acontecido. Em extremo alerta ela pulou em pé. Sem demoras Sophia logo procurou o besouro negro, mas o que viu foi completamente diferente. Ela estava deitada sobre uma espécie de altar com gravuras estranhas em sua superfície, e ao redor deste haviam quatro pilares tão destruídos que ficava claro que há anos não sustentavam nada. Em volta do ponto no qual acordou havia apenas vegetação. Uma floresta com árvores de copas tão frondosas que o solo mal tinha a oportunidade de receber a luz do sol. Os poucos filetes de luz que conseguiam avançar por entre as folhas serviam apenas para criar uma atmosfera sombria.
— Eu não morri? — Sophia não conseguiu evitar de se questionar. — "E que lugar é esse?" — Levou sua mão direita até sua testa dolorida.
Há pouco ela esteve dentro de uma biblioteca, em seguida cortou os céus, depois surgiu no interior de um amplo salão e agora estava em uma floresta lúgubre. A mudança repentina a cada vez que acordava definitivamente não estava fazendo bem para sua sanidade, e como se estivesse apenas esperando uma deixa, sua cabeça, que também não estava respondendo bem a tudo isso, teve o incomodo que lhe afligia transformado em uma dor incisiva muito mais do que apenas irritante.
— Droga! — Sophia xingou enquanto seu olho direito piscava espasmodicamente.
Quando enfim aquilo se acalmou ela pôde se mover um pouco e dar uma boa olhada ao seu redor, mas assim que fez alguns movimentos mais bruscos na tentativa de se levantar, sentiu seu corpo inteiro doer. Ela estava toda dolorida, dolorida como se fosse uma encomenda enviada através dos correios. Novamente ela não fazia a mais puta ideia de como tinha chegado ali, e nem de que lugar era aquele. A única coisa que conseguiu perceber foi que se parecia com uma vasta floresta tropical, apenas menos densa em quantidade de vegetação rasteira. O solo era úmido e havia uma grande quantidade de folhas secas e plantas mortas o forrando ao longo de todo o espaço circundante.
Apesar de não entender bem sua situação, Sophia ficou incomodada com as gravuras estranhas nas quais acordou deitada sobre. Em alguns tipos de história aquilo definitivamente não seria positivo, e ela, como leitora de horror, entendia bem isso. Até onde sabia aquilo podia muito bem ser um altar de sacrifício para um ritual, e essa possibilidade não parecia boa. Por mais que não conseguisse ler o que estava escrito, só de olhar para aqueles símbolos estranhos sentiu um grande incomodo, e confiando nesse instinto se afastou dali, andando a esmo, pois definitivamente não estava com vontade de bater um papo com quem fez aquelas gravuras.
Foi enquanto caminhava sem rumo ponderando sobre sua localização, observando atentamente os arredores, que ela viu um animal voador recolher folhas secas e amontoá-las sobre o galho de uma árvore. A princípio o que chamou sua atenção foi o tamanho do "passarinho", mas assim que se aproximou um pouco mais, logo entendeu que não se tratava de um simples pardal. Não era uma ave, aquilo tinha, pelo menos, o tamanho de um vira-lata caramelo, sua pele era escamosa e duas asas de morcego brotavam de seu corpo. Para Sophia não havia outra forma de descrever o animal senão chamando-o de lagarto, ou melhor, lagarto voador. Era exatamente igual a um wyvern, só que em miniatura, com rosto de iguana e olhos que giram independentes como os de um camaleão, mas foi o que a criaturinha estava fazendo no momento que fez Sophia, a princípio, acreditar que fosse um pássaro, e também despertar uma dor excruciante em sua cabeça. O animal estava construindo sua casa, e essa visão foi um gatilho. Imediatamente Sophia sentiu uma pontada em sua cabeça, como se um espeto perfurasse seu cérebro. Após o grito agonizante que surgiu devido a queimação de sua mente, cuspiu uma palavra:
— Ninho!
Tentando fazer aquela agonia sumir procurou se acalmar e massagear o foco de seu sofrimento torcendo para que isso fizesse a dor sumir. Após alguns segundos a dor se tornou apenas um incomodo, e então desapareceu.
Quando ela se foi é que Sophia teve uma ideia melhor.
— Ni-ninho do Dragão... — sussurrou para si mesma. — Ou o ninho de um dragão? — se questionou confusa com a resposta que recebeu repentinamente de sua própria cabeça.
Aquilo não dizia muito para Sophia, mas lá no fundo ela tinha uma estranha sensação de que era algo importante. Tentando vasculhar sua mente e entender o motivo pelo qual aquilo estava lá, foi que um nome saiu de sua boca.
— Ilvre...? — sussurrou confusa.
— Muito bem, impressionante, é realmente impressionante que esteja conseguindo acessar as memórias de seu receptáculo — uma voz masculina, robusta, rouca e pomposa, surgiu expressando um leve fascínio. — Mesmo com todas aquelas limitações ele ainda conseguiu ressuscitá-la. Não têm como não admitir que foi um trabalho realmente impressionante para um... — a voz se permitiu parar alguns instantes, era como se ainda estivesse dirigindo algo que não lhe desceu muito bem, algo complicado de acreditar —...gato. — Completou ignorando a estranheza de suas palavras, ainda impressionado, mas sem perder a compostura.
Sophia não esperou uma deixa. Assim que ouviu aquela voz, uma que lhe enviou calafrios, rolou pelo chão com o susto e rapidamente se colocou em posição de batalha. Mesmo que Sophia não pratique faz anos, seus instintos naturais ainda não lhe abandonaram. Mas para sua própria surpresa, quando se voltou para o ponto no qual acreditava ter alguém, não viu nada lá. Nem sequer um sinal ao menos.
"Será que eu to ficando loca?"
Essa era uma questão extremamente importante de se considerar. Todos os acontecimentos até o presente momento lhe faziam acreditar que talvez estivesse em meio a uma grande viagem de ácido. Se não fosse o nível de lucidez que sentia teria seriamente considerado que não sofreu um AVC, e que ao invés disso houve algum tipo de vazamento de gás ou químicos em sua residência, e que ela estava delirando. Um velho medonho, presentes, divindades, um besouro azeviche, uma aparente reencarnação, cortar o céu como um meteoro, Blasph ganhando consciência e assumindo uma forma gelatinosa, tudo isso era uma loucura, mas aconteceram enfileiradas.
— Blasph?! — Ela rapidamente se lembrou das últimas palavras da criatura. — Blasph?! — Ela ficou atônita enquanto procurava qualquer sinal do bichano ao seu redor.
E nesse momento a voz retornou.
— Fico feliz que tenha acordado tão empolgada, mas ainda está muito perto daquele portal. Com toda certeza um batedor já deve ter avisado sobre sua presença para algum grupo de patrulha — a voz masculina retornou, mas dessa vez perto ao ponto de acariciar seus tímpanos, e como se não bastasse, veio acompanhada de um toque em seu ombro e um complemento sussurrado: — Aqui eles dão muita importância para visitantes.
Novamente Sophia quase teve um ataque do coração, os pelos de seu corpo arrepiaram e uma sensação ruim percorreu seu âmago, seu ser; mas contrariando suas próprias expectativas ela venceu esse medo, se virou rapidamente e saltou para trás no intuito de tomar distância. A pessoa que ficou mais surpresa com essa reação não foi outro senão ela mesma, pois seus reflexos pareciam melhores do que jamais foram; mesmo quando esteve em sua melhor forma não se lembrava de seu corpo já ter lhe respondido tão precisamente. No instante em que o dono da voz masculina lhe tocou ela usou todas as forças restantes em suas pernas bambas para se afastar, mas estranhamente, e contrariando o que se possa pensar, ainda conseguiu ouvi-lo em alto e bom tom mesmo que este tenha apenas sussurrado.
— Não precisa ficar com medo. — O homem sorriu.
Parado onde a pouco Sophia esteve havia uma pessoa, mais precisamente, um senhor de idade, só que diferente de qualquer pessoa comum que já tenha visto, aquele homem não tinha olhos. Só precisou de uma olhadela para que vislumbrasse sua morte, para que vislumbrasse o terror petrificante do abismo. As órbitas de seus olhos não eram simplesmente vazias, cada uma delas era um poço eterno de desespero mórbido, e quando Sophia as encarou, estremeceu. No instante em que ela olhou dentro daqueles buracos escuros, foi sugada. Ela não estava mais em uma floresta, de repente ela estava em uma caverna escura, uma cripta que parecia escavada em um paredão rochoso e que em seu centro tinha um sarcófago retangular, liso e muito simples, um que não passava a ideia de ter sido criado no intuito de abrigar um rei, faraó ou figurões do tipo. Apenas um simples caixão de pedra com letras entalhadas sobre seu tampo empoeirado.
— Muito descuidada. — O homem sorriu, um branco e largo sorriso. — Mas me olhar nos olhos não foi uma escolha inteligente — o mesmo deixou escapar uma fina camada de malícia em seu tom.
O homem de pele cadavérica e enrugada, abriu seus braços como se desse boas-vindas, e ao fazê-lo antigas tochas mofadas presas a suportes enferrujados que por milagre ainda jaziam inteiros, irromperam em chamas.
"Definitivamente isso não é humano" — Sophia não teve um pingo de dúvida, pois em volta daquele velho havia uma aura perturbadora e bastante opressora, uma que comparando as que viu até então, só perdia para a de Alster.
Diante de seus olhos havia um homem coberto por uma túnica de coloração cinza bastante puída e batida, uma que possivelmente já teve, em seus tempos de glória, uma coloração bonita e aspecto vistoso, mas que no hoje não passava de um trapo com capuz, velho e desgastado. Sua barba longa caía descontroladamente sobre seu peitoral como uma cachoeira, escorria por sua barriga quase inexistente de tão magro que é, e terminava em sua cintura. Assim como Alster aquele homem era seco ao ponto de parecer prestes a morrer de fome, seus membros eram ossudos, enrugados, e seu corpo alto acabava fazendo-o ter uma aparência disforme em proporção. Apesar de parecer humano, tendo um nariz comum, uma boca comum, uma estrutura de rosto comum, aquele velho parecia estar morto. Não havia como Sophia considerar alguém em tal estado um ser humano, e seu senso de perigo gritando para que ela fugisse dali com todas as suas forças era motivo mais do que o suficiente para lhe fazer crer nisso. Já era a terceira vez que algo do tipo acontecia, primeiro foi o velho, depois o besouro, e agora aquele cadáver ambulante.
— A senhorita não precisa levantar uma guarda tão alta contra mim — o velho sorriu novamente enquanto encenava uma espécie de tom inocente. — Eu apenas desejo propor uma troca justa. — O mesmo deu um passo à frente e esticou sua ossuda mão direita com longas e afiadas unhas no intuito de cumprimentar a jovem diante de si. — Me chamo Hereges, e não lhe farei mal algum — completou.
Mas Sophia não devolveu o gesto, pelo contrário, deu um passo para trás.
"Droga!" — esbravejou internamente.
No fundo ela ainda tinha esperanças de que tudo não passasse de um sonho, e mesmo que ela própria sentisse que não era o caso, desejou com todas as suas forças que fosse, mesmo que um pesadelo.
"Merda de desmaios" — continuou a reclamar em pensamento.
Sophia achava que o fato de ter abraçado a escuridão mais de uma vez estava lhe deixando sequelas. Naquele momento sua mente parecia consideravelmente confusa e fragmentos de memórias que não eram seus, ao menos ela não achava que fossem, piscavam a todo instante.
— Não é por causa dos desmaios, é que aos poucos a senhorita está absorvendo as memórias de seu receptáculo. — Tentando se colocar em uma posição amigável o homem sorriu e balançou sua mão esticada para pedir que a jovem não o deixasse no vácuo. — Pois como já parabenizei, seu companheiro felino fez um belo trabalho.
Sophia arregalou os olhos.
— Você leu minha mente? — Instintivamente ela deu mais um passo generoso para trás. — E cadê ele? — questionou, olhando ao redor em busca de seu gato, mas sem deixar de ser cautelosa.
Sophia não sabia se socos fariam diferença contra algo como aquilo, mas não é como se tivesse uma vasta gama de opções, então optou por não relaxar em sua guarda alta. Aquela parecia o mesmo tipo de situação unilateral vivida com Alster. Talvez fosse o modus operante de criaturas com imenso poder.
"Merda!" — ela praguejou novamente.
Sophia odiava perder o controle das coisas.
Sentindo a tensão no rosto daquela garota o homem barbudo e sem olhos calmamente recuou um passo, e em seguida optou por responder à pergunta de sua convidada em demonstração de boa-fé.
— Me desculpe, talvez não tenhamos começado com o pé direito. — Ele fez uma reverência casual e continuou: — Não é que eu esteja lendo sua mente, eu estou literalmente dentro dela no momento. Tudo o que você vê... — o sem olhos abriu seus braços e girou brevemente ao redor de seu próprio eixo no intuito de indicar todo o ambiente — ...não passa de uma projeção. — Ele concluiu com um sorriso dúbio em face.
Infelizmente para aquela jovem, a mesma havia encarado um abismo que não deveria. Agora ela sabia disso, mas saber não a deixou nem um pouco feliz.
"Nem mesmo olhar nos olhos é confiável" — suspirou com a lição amarga que havia aprendido e em seguida se voltou para o sorriso daquela criatura.
Era impressionante para Sophia o quão não confiáveis seres como aqueles pareciam independentemente de suas palavras e ações serem verdadeiras ou não. Tudo por causa do sorriso falso que tornava o ato de acreditar no que dizem uma tarefa complicada. Apesar de bem mais educado o senhor sem olhos agia muito parecido com o velho da biblioteca. As vezes seu sorriso era debochado, as vezes uma forma de esconder suas intenções ruins, mas eram sempre máscaras. Além disso, no ponto de vista de Sophia, havia uma pessoa ali. Não importava como ela olhasse, havia alguém. Ela, inclusive, sentia isso.
— Não é o que parece pra mim — retrucou ainda em guarda e tentando não parecer tão desconfiada ou agressiva.
— Sua percepção da realidade pode facilmente ser alterada. — O senhor não pareceu se incomodar com a aspereza das palavras proferidas por Sophia e sorrindo bateu palminhas leves.
No instante em que aquela ação corriqueira foi realizada, e bem diante dos olhos daquela jovem, o ambiente se tornou preto e branco.
— Hã?! — ela ficou em choque.
— Viu? — O Sem Olhos se divertiu com a feição da mesma.
Em seguida ele repetiu o ato e tudo voltou ao normal.
— Q-quem é você? — Sophia vacilou por um instante, mas se manteve de pé e com sua guarda erguida.
Vendo isso o sem olhos abriu um largo sorriso. — Creio que já tenha me apresentado, não? — O mesmo levou seu dedo indicador direito até o queixo, fingindo que estava seriamente pensativo, como se tivesse alguma dúvida, mas obviamente era um ato, pois ele sabia muito bem que havia sido deixado no vácuo alguns minutos atrás.
— A-acho que sim... — Sophia respondeu desconcertada.
Uma risada tranquila cobriu o recinto.
— Não se preocupe, como também já dito, não vou lhe fazer mal algum. — E dando mais um passo à frente, continuou: — Caso tenha se esquecido, me chamo Hereges. — O mesmo fez uma breve reverencia e esticou novamente sua mão direita no intuito de cumprimentá-la.
Sophia Hesitou por um instante, mas não viu muita escolha. Se o que aquele velho disse era verdade, então não havia como ela escapar de algo que estava literalmente dentro de sua cabeça. E assim que apertou a mão do moço, sentiu-se ainda mais incrédula, apesar de não duvidar. Havia acontecido coisas demais, então em seu estado atual era fácil pensar: "Sim, isso é possível". O motivo de ficar incrédula era simples, estava tudo lá. A sensação do calor gerada por um aperto, a aspereza enrugada de sua pele, a pressão gerada pela musculatura, tudo fora perfeitamente emulado.
— Creio então que finalmente possamos começar a nos entender. — O velho sorriu e no intuito de evitar o claro incomodo que sua convidada sentia, se afastou um passo da mesma e se aproximou um pouco mais de seu caixão de pedra.
Dessa vez Sophia não se distanciou mais, não parecia fazer sentido, mas respeitou a distância que o velho criou e se manteve afastada, também não é como se ela tivesse criado confiança do nada. Assim que o sem olhos chegou ao lado da estrutura de pedra, o mesmo calmamente colocou seu dedo indicador sobre o tampo do mesmo e o arrastou lentamente sobre a superfície rústica do recipiente funerário. Parecia que o velho queria acariciá-lo, mas não conseguia, e assim que se colocou de frente para o sarcófago selado sua voz retornou.
— Este sou eu — disse em voz baixa, em um ato quase solene, e apesar de o mesmo ter se demorado nisso, Sophia não falou nada. — Ou melhor, eu estou aqui dentro. — Se permitiu um sorriso fraco. — O que você não passa de uma projeção. Uma que é fruto de milhares de anos recuperando poder e esperando esse maldito selo enfraquecer. — O sem olhos suspirou com um desgosto tangível. — E tudo por causa de poder, ele fez tudo isso para obter mais e mais poder, aquele desgraçado! — Hereges não se controlou, as veias em seu corpo saltaram e se o mesmo ainda possuísse olhos sem dúvidas os mesmos estariam injetados com ódio. — Ele corrompeu meu povo! Destruiu minhas terras! E me fez contar cada maldito segundo! Me fez sofrer cada maldito minuto! — Sem conseguir se segurar enfim a figura composta se desfez lançando socos sobre o tampo de seu sarcófago, um soco para cada frase de indignação. Mas o que veio após a torrente de ira não fora outra coisa senão silêncio mórbido. Longos segundos de silêncio até que enfim completasse: — E por fim sacrificou nossos professores.
Normalmente Sophia ficaria muito aflita por ter presenciado um acesso de raiva como aquele, mas foi tão humano que a mesma permaneceu imóvel. Aquele era sem sombra de dúvidas o momento certo de correr, ou talvez atacar o velho. Hereges estava de frente para seu recipiente funerário e de costas para ela, seus ombros penderam e o mesmo parecia desatento enquanto melancólico. Só que não havia para onde e, mais importante, Sophia também não sentiu vontade alguma naquele instante. O que diferenciava aquele velho sem olhos de Alster, era o fato de parecer muito mais humano.
"Ahhhh pronto, simpatizei com o monstro!" — Sophia suspirou, revirou seus olhos e levou sua mão esquerda até seu rosto no intuito de massagear sua glabela.
— Fico feliz por não ser tachado de mentiroso pela senhorita, assim como já fui várias vezes no passado. — O senhor de idade se virou enquanto exibia um sorriso, e desta vez pareceu bem genuíno, pois suas órbitas vazias também sorriam.
Mas apesar de parecer verdadeiro, era ainda mais assustador.
"Crendeuspai!" — Sophia quase correu da visão infernal.
O rosto do velho se contorceu por um instante e percebendo essa reação Sophia se lembrou de um detalhe muito importante.
— É claro... — suspirou desconcertada —, você está na minha cabeça. — A mesma logo se lembrou do fato infeliz.
— Sim, e devo dizer que a senhorita não é uma moça de pensamentos respeitosos — Hereges retrucou, e antes que Sophia pudesse protestar, concluiu com uma frase que a feriu como um espeto: — Dizer que eu sou um monstro apenas por ter perdido meus olhos, ter unhas grandes, uma barba mal feita e ser magro como se estivesse prestes a morrer de fome, é de uma indelicadeza sem tamanho.
Sophia imediatamente engoliu em seco.
"É claro..." — Ela congelou. — "Ele também tem me ouvido desde que o encarei nos olhos" — concluiu desanimada.
"Exato" — O velho sorriu e, diferente de qualquer outra resposta que ele tenha dado, esta ecoou diretamente na cabeça de Sophia. — "Mas mesmo tendo escutado tanto disparate, atenha-se ao fato de contínuo a tratá-la com respeito" — sublinhou o ponto com bastante ênfase.
A jovem suspirou, ela já havia aceitado a derrota, ao menos em termos de tratamento o mesmo realmente foi bem mais educado, mas mais do que abalada ela parecia desanimada.
— Então... — Sophia logo pôs sua mente no lugar certo. — O que você quer de mim? — dessa vez foi direto ao ponto.
E ouvindo aquilo Hereges seguiu o fluxo.
— De verdade o que eu desejo da senhorita é que façamos um trato, juro que não será ruim para ti e prometo respeitar suas vontades, além de que a senhorita tem muito mais a ganhar do que eu. — A melancolia de a pouco já havia sido apagada e substituída por algum nível de empolgação. — Eu estive selado nesse ambiente por muito tempo, meu selo precede o nascimento desse ninho, apesar de acreditar que o responsável por me prender aqui têm ligação com o criador desse ninho e o convenceu a fazê-lo propositalmente sobre mim...
Ao ouvir todo aquele discurso os ombros de Sophia penderam, por mais que gostasse das coisas bem explicadas, estava sem tempo.
— Hamham! — ela deu uma pigarreada forte no intuito de impedir o senhor de continuar e com isso limpar seu próprio palato. — É, moço, deixa eu perguntar uma coisa. — Com um sorriso desconcertado em face ela levantou sua mão direita no intuito de capturar um pouco da atenção daquele velho.
Por um instante ela se sentiu de volta na escola.
— S-sim... — Hereges, que parecia já ter se perdido em sua própria explicação, voltou a si.
— Toooooooooda essa contextualização é realmente necessária? — questionou inquieta.
Não era como se ela quisesse estar ali, enfrentando aquela situação, mas já que estava, ao menos queria que ele fosse conciso.
Hereges ficou surpreso com a interrupção. Na cabeça dele parecia importante que tudo ficasse bem explicado, mas ele parecia ter se esquecido de um "pequeno" detalhe, um que Sophia não podia ignorar.
— Olha, não é como se eu estivesse entendendo tudo, mas creio que se esse papo contigo está acontecendo dentro da minha mente, meu corpo permanece quietinho no meio daquela floresta assustadora onde acordei, não? — Pelo menos foi isso que Sophia havia entendido.
Hereges ficou em silêncio por alguns instantes, surpreso com a abordagem, mas logo sorriu. — Sua suposição está correta. Me perdoe. — O mesmo fez uma leve reverencia assim que entendeu o medo da jovem.
— Muito bem, julgando pela situação não preciso muito saber de todos os seus motivos, afinal de contas, sou eu o gatinho acuado aqui, então por tudo que disse posso supor que esteja querendo que eu quebre seu selo, correto? — Sophia se apressou em colocar as cartas na mesa, ela realmente não desejava ficar inerte e desprotegida no meio de uma floresta assustadora.
Naquele momento não importava mais a procedência daquele homem, se era realmente humano ou não, monstro ou não, demônio ou não, vivo ou não.
O velho continuou surpreso, mas assim que passou o estado de admiração ele trouxe de volta, um ainda mais largo, sorriso. — Novamente uma resposta correta — congratulou.
— Então só me diga como realizar essa tarefa e já era. — Sophia fez um sinal de positivo seguido de um sorriso capenga.
Não era como se aquilo à agradasse, mas Sophia era boa em julgar a situação na qual estava, ela fez muito isso enquanto na terra; e nem sequer era um poder, era apenas fruto dos ambientes onde viveu. Mas para Hereges pareceu um show à parte, e assim que a garota terminou de falar uma gargalhada alta preencheu o recinto.
— Que foi?! — Sophia ficou confusa.
— Nada, é só que... — Ele fez uma pausa para se recompor. — Eu achei que seria muito mais difícil do que isso, foi bem anticlimático na verdade — respondeu ainda sem conseguir controlar completamente o riso.
E o motivo era óbvio. Ninguém nunca havia reagido de maneira tão racional diante dele.
— Olha moço, não tô muito a fim de passar sufoco aqui não. — Ela respondeu, e logo explicou: — Eu trabalhei algum tempo em uma empresa meio carrasca. Posso ser nova, mas sei julgar minha posição em situações como essas, e não acho que socar sua cara com força vai funcionar muito bem, então prefiro aceitar logo meu carma ruim.
A gargalhada espalhou-se ainda mais, e muito mais poderosa do que antes, o velho simplesmente havia quebrado. O mesmo não estava preparado para lidar com aquela situação. Ele estava preparado para gritos, xingamentos, desconfiança e tudo que há de ruim, mas não para tranquilidade.
— Porra, virei comediante agora — Sophia bufou irritada.
— Me perdoe, mas é a primeira vez que algo assim me acontece. — Hereges lutou para controlar seu estado mental e recolocar sua aura opressora nos eixos, mas estava falhando miseravelmente.
Então, após algum tempo, tendo se recomposto o mínimo, continuou: — Eu juro que não queria rir da senhorita, me perdoe. — Ele fez uma reverência sincera.
— Tudo bem, deixa quieto. — Sophia suspirou, ela claramente ainda estava incomodada, mas preferia não criar um caso.
— Bem, já que é assim... — O velho novamente se voltou para seu caixão de pedra, e então passou suas mãos sobre o sarcófago, limpando um pouco da poeira milenar que repousa sobre o mesmo. — Creio que não tenha mais motivos para escondê-lo da senhorita.
Hereges rapidamente enfiou sua mão esquerda em um dos bolsos de sua túnica e retirou algo. No primeiro momento Sophia não conseguiu identificar o que era, a mão ossuda e estranhamente grande daquele senhor abarcava completamente o que quer que fosse, mas mesmo que não visualizasse, sentiu algo, uma estranha sensação de familiaridade.
Sem demoras o velho levou seu punho ainda fechado até o meio da tampa de pedra de seu caixão e soltou o que havia pego em seu bolso sobre o mesmo. Era uma espécie de piche, um amontoado de aparência liquida; mas não newtoniana, que por vezes parecia petróleo, mas em outras parecia uma estranha massa gelatinosa.
— BLASPH?! — Sophia gritou a plenos pulmões, e quando o fez, o ambiente cavernoso onde jaz o sarcófago deu lugar a floresta que acordou a pouco, mas ela não percebeu.
Hereges sorriu com o vislumbre do acontecido.
"Fascinante!" — O velho não conseguiu conter sua admiração. — "Mesmo que eu tente, não consigo suprimir os picos." — constatou.
Hereges não havia ajudado à toa, ele tinha uma pequena ideia do que estava acontecendo, ele tinha uma pequena ideia de quem era Sophia. Criaturas gelatinosas e abissais não surgem do nada. Só que diferente dos pensamentos que Sophia tinha, os dele permaneciam consigo mesmo e por isso a jovem não captou aquele trecho.
Além de que, naquele momento, tudo o que importava para Sophia era aquela pequena criatura que tentava, em vão, manter a forma de um gato. Blasph estava fraco demais. E assim que Sophia se aproximou um pouco, o velho interveio.
— Posso supor que temos um trato? — O mesmo escondeu o bichano atrás de sua mão esquerda, colocando-a na frente do mesmo como se fosse uma parede e esticando sua mão direita em direção a Sophia.
A jovem não sabia o que era, mas sabia que se devolvesse o gesto algo aconteceria, e por isso...
— Do que se trata exatamente? — hesitou por um instante.
Hereges não se incomodou.
— Como presumido pela senhorita, desejo que me liberte e se prometer que fará, lhe devolvo seu companheiro aqui. Sem meios-termos ou poréns — o velho respondeu com sinceridade, ou ao menos sua firmeza na voz fazia parecer que sim.
Mas também não era como se Sophia tivesse como julgar isso com exatidão, então o que lhe restava era acreditar. Além de que aquele era Blasph, e disso nem sequer havia como desconfiar, pois sentia com sua existência que era verdadeiro, mas antes que tomasse sua decisão final o velho acrescentou.
— É claro que se não cumprir com sua parte no acordo sofrera uma penalidade. — O velho imediatamente tirou esse empecilho do caminho para que não houvesse nenhum mal-entendido posteriormente.
Sophia hesitou por mais um instante, mas não era como se já não estivesse esperando por algo do tipo. Em seu mundo as pessoas tinham que prestar contas com a lei caso não cumprissem seus contratos, então provavelmente não seria diferente ali.
— E qual seria a pena? — questionou.
— Perderá o que ganhou no acordo — Hereges sorriu.
Aquilo sim foi um pouco surpreendente. Foi muito mais leve do que ela esperava. Não que fosse bom perder Blasph, mas levando em consideração a aura opressora de Hereges, parecia que o mesmo poderia fazer coisas muito piores para forçá-la.
Então, tendo tirado todos estes por menores do caminho, ela esticou sua mão esquerda em direção ao senhor de idade.
— Suponho que eu só possa confiar — enfim ela cedeu e apesar de uma pontada de desgosto persistir, concluiu que devia.
Já faz algum tempo que Sophia tinha percebido algo muito importante. Haviam falhas em suas memórias. Um trecho completo havia sumido. Ela se lembrava de Alster dando boas-vindas, entregando os presentes e, então, de repente uma escuridão tomou-lhe de assalto. Ela não sabia como do nada surgiu no céu e despencou, mas sentia que tudo estava relacionado ao seu gato, pois o sentiu, viu e ouviu, pouco antes de chegar ao solo. Então sim, ela precisava muito daquele carinha. Tê-lo afastado dela estava fazendo com que a mesma sentisse uma profunda e avassaladora sensação de perda, como se parte dela, do corpo dela, da alma dela, da vida dela, estivesse faltando.
Sem mais empecilhos e hesitação ambos puderam enfim apertar as mãos. Imediatamente Sophia sentiu uma estranha conexão se formar com o velho. Não foi dolorido ou incomodo como os presentes dados por Alster em sua biblioteca, mas também parecia ser algo que a estava afetando em nível espiritual.
— Isso...? — Imediatamente Sophia ficou aflita com o ocorrido.
— Não se preocupe, desde que cumpra sua parte no acordo, tudo ficará bem — Hereges respondeu. — Se está preocupada que eu tenha feito algo, saiba que é impossível, nesse mundo contratos são absolutos — concluiu com seu melhor sorriso tranquilizador, mas seus olhos sorridentes geravam o efeito oposto.
"Crendeuspai!" — Sophia novamente quase correu diante daquela visão infernal.
— E em demonstração de boa fé, eu vou primeiro — o velho disse pegando a pequena massa gelatinosa nas mãos. — Minha parte do contrato será paga de imediato. — Ele ofereceu o pequenino.
E lá estava Blasph, mas desta vez ele estava pequeno como um filhote. Assim como ele havia feito tudo que podia para salvá-la, ela deveria retribuir o favor, pois em sua concepção é isso que melhores amigos devem fazer.
— É só tocar — Hereges encorajou.
E Sophia o fez, com seu dedo indicador direito acariciou a cabeça diminuta do animal gelatinoso, e no instante seguinte ela sentiu que uma conexão especial foi reestabelecida. Uma que era absoluta, uma que nascia de um desejo especial, uma que abalou até mesmo o domínio do antigo rei Hereges. Imediatamente a imagem daquela caverna quebrou dando lugar a floresta na qual acordou após fugir do besouro. Aquele cenário sim era real, mas não era nem de longe a parte mais importante naquele momento, pois junto a isso Sophia sentiu que o que havia perdido estava de volta ao seu devido lugar.
Quando o espaço vazio em seu peito foi preenchido ela viu um vulto escuro tomar de assalto sua visão periférica. Se apressando a criatura fez uma saudação, colocando sua pata dianteira direita mais a frente e abaixando sua cabeça. Ao se curvar, sua voz embargada e relativamente assustadora, se mostrou presente.
— Me desculpe mestra, eu não fui muito útil em seus momentos finais e muito menos nos instantes posteriores. — Uma lágrima branca saiu de seu olho esquerdo.
Não era um líquido, mas sim uma gota branca desenhada em seu rosto. Parecia outro smile. Uma variação do rostinho de gato. Com a escuridão sem brilho no rosto de Blasph, o mesmo acabava parecendo uma tela escura e opaca, era quase como se Sophia estivesse assistindo uma televisão em formato de gato. Foi uma visão divertida.
Sem reservas a jovem correu para abraçá-lo. — Blasph! — Ela gritou. — Cala boca seu gato otário, se não fosse você eu nem sequer estaria viva. — Desta vez foram suas próprias lágrimas que escaparam.
Agora ele estava lá, assim como sempre deveria ter estado e que prometeu para si mesma nunca mais deixar que não estivesse. Lá estava Blasph, o senhor de suas Blasfêmias, O de Todo Pecado, A Mão Direita de Deus, seu querido gato de estimação na vida real e a inspiração para um personagem que havia criado em um jogo de RPG, ele também era, esses dois, e ao mesmo tempo. Uma soma surreal de desejos. Assim como, e o mais importante de tudo, o melhor amigo de Sophia.
Mas logo o pigarro de uma voz grave interveio.
— Prefiro não ser aquele que interrompe momentos como este, mas creio que ainda tenhamos coisas para acertar. — Hereges sorriu.
Blasph rapidamente pulou dos braços de Sophia e se colocou em posição de batalha, seu corpo gelatinoso começou a borbulhar de forma análoga a um gato que arrepia seus pelos quando se sente ameaçado e um miado estridente composta por centenas de vozes agonizantes saiu de sua boca.
"É real..." — O velho sorriu com o fato de ter percebido que estava certo. — "Assim como a mestra disse, é real."
Hereges encarou Sophia e seu companheiro felino, quase tão animado quanto extasiado.
"Talvez realmente tenha sido uma boa escolha ajudá-los." —Hereges sorriu enquanto divagava em pensamento.
Em pouco tempo a estrutura de Blasph triplicou de tamanho, ele já nem parecia que a pouco não passava de um filhote. Em apenas alguns segundos ele se transformou em um gato adulto. Bastou ter voltado para seu lugar de direito no coração de sua mestra, que reganhou sua forma de outrora.
Vendo tudo aquilo Sophia não conseguiu evitar de deixar seus lábios se curvarem ante a felicidade que sentia.
— Não precisa se preocupar Blasph — ela tentou acalmar o bichano.
— Mas... — O mesmo pensou em protestar, mas quando buscou o rosto daquela que tanto ama, desistiu assim que viu a expressão carinhosa que a mesma sustentava. — Tudo bem. — Ele recuou, mas insistiu em ficar de guarda bem na frente de sua criadora.
— Ainda têm mais alguma coisa? — Sophia questionou.
— Um recado, no início eu não queria, mas creio que não tenha escolha já que isso também pode me afetar. — Hereges suspirou.
— E o que seria? — Sophia ficou imediatamente incomodada, ver o velho sem olhos tão estranho imediatamente a deixou apreensiva.
Blasph instantaneamente reagiu, borbulhando ainda mais do que antes, mas logo se sentou quando sua mestra deu um passo à frente e acariciou sua cabeça para acalmá-lo. Apesar de ter a aparência de um gato, Blasph, naquele instante, estava agindo como um cão de guarda.
— Você conhece alguém chamado Alster? — A voz de Hereges saiu como sempre, firme e pomposa, mas para Sophia foi como se tivesse levado um soco na boca do estômago.
Aquele homem havia citado um nome que, mesmo após anos de terapia, seria difícil esquecer, e exatamente por isso, dessa vez, foi ela que se colocou em guarda primeiro. Blasph apenas fez como antes, pois já estava de guarda.
— Digamos que sim, e o que vai ser?! — O bom humor havia dado lugar a uma desconfiança sem tamanho e uma pontada de ódio.
— C-calma... — Hereges levantou suas mãos em sinal de paz, mas não conseguiu evitar de suspirar. — Como eu suspeitava, a senhorita está em uma situação bem ruim, mas era óbvio, ninguém cai do céu do nada... — O mesmo não parecia muito feliz, mas estava resoluto ainda assim, ele já tinha feito sua escolha.
— O que sabe? — Sophia continuou desconfiada.
— Ele deixou uma mensagem endereçada a senhorita — apesar de impactado pela reação imediata da jovem, Hereges foi rápido em sua explicação e não titubeou.
Sophia não desfez sua guarda, mas também não parecia disposta a ignorá-lo e muito menos parecia disposta a atacá-lo.
— Prossiga — foi tudo o que falou.
— Se me permitir, posso lhe mostrar...
Blasph reagiu a fala, encarando de volta sua mestra, Sophia sorriu para o pequeno demonstrando que estava tudo bem, e em seguida ela se voltou para Hereges.
— Faça — foi uma resposta curta, mas não foi agressiva em tudo, apenas muito direta.
— Muito bem...
E no que o senhor respondeu, a escuridão que reside em suas órbitas vazias, se agitou.
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