Capítulo 38 - Normal
Logo que ela entrou no elevador, saímos do nosso esconderijo e abri o apartamento, tudo parecia no lugar. Se não tivesse visto a moça, jamais imaginaria que alguém pudesse ter estado ali depois que o dono da casa viajou.
— Por que acha que ela estava aqui?
— Como é que eu vou saber, meu bem? Ele pode ter pedido pra alimentar os peixes, regar uma planta...
— Claro, Josué. Faria todo o sentido se tivesse aquário ou uma planta nesse apartamento. Aliás, nem assim. Não consigo ver motivo racional para aquela mulher ter a chave do apartamento dele.
— Meu bem, se a gente for falar em ser racional, você também não devia estar aqui.
— Eu vim fazer uma gentileza.
— Ele não te deu a chave.
— Acha que deu a ela?
—É o que parece. Ela não arrombou a porta.
Peguei o caminho de volta para casa, com as pernas tremendo. Assim que me deitei, lembrei do celular e nele havia duas mensagens dele.
"Eles parecem ótimos"
"Tenho certeza que você vai fazer diferença para esses meninos como faz para todos à sua volta. Sempre me orgulho de quem você é."
Uma sensação de embrulho subiu do estômago até a garganta. Se tem tanto orgulho, por que aquela mulher estava na casa dele? Por que deu a chave, a entrada da casa que ele divide com os meus filhos, a ela? O que ela podia querer lá sem a presença dele? Quando foi que eu me tornei esse tipo de doida ciumenta?
Os dias passaram sem sinal de novidades. As aulas com os garotos da ONG continuavam sendo a melhor parte dos meus dias. Leonardo, empolgado com a minha presença, organizava um grande evento com a comunidade local, e contava com a cobertura da imprensa, o que tinha grande potencial de aumentar as doações e voluntários para o trabalho. O trabalho na editora também voltava ao normal. Um novo lançamento estava marcado para breve e, embora eu não tivesse participado da produção, estava empolgada por lançar mais um romance de autor estreante. Voltar à vida normal tornava quase possível não pensar na cena do apartamento. Jay permanecia fora do país, participando de convenções, programas de entrevistas , ensaios fotográficos desconfortavelmente românticos na companhia de Jesse e muito assédio de meninas com metade da minha idade. Aquela era nossa vida normal, embora normal fosse a última palavra que eu usaria para descrever tudo o que acontecia.
Meus pais decidiram alugar um apartamento perto de casa. Não voltariam ao Brasil tão cedo, mas, de acordo com dona Zita, eu já estava velha para precisar de babá. Era o jeito dela dizer que confiava que eu poderia cuidar de mim e dos meninos dali para a frente. Isso e, finalmente, ter escolhido a nova governanta para a casa, quase levando minha opinião em conta.
Na noite do lançamento, convidei Ana para me acompanhar. A venezuelana revelava um interesse impressionante pela literatura e tinha tudo para se tornar uma escritora profissional. É claro que eu faria tudo para vê-la chegar lá e o convite para um lançamento empolgou a menina. Talvez tanto quanto a mim. A menina conversava com grandes escritores e produtores com uma segurança impressionante para seus 14 anos.
— Espero só algum dia ter a sensibilidade da Liane Moriarty e o dom de intrigar de Edgar Allan Poe - ela comentou com Robert Morty, um dos agentes mais influentes de Los Angeles, que não parava de sorrir, encantado pela eloquência da garota. Geralmente as pessoas descobrem muito mais tarde que falsa modéstia não ajuda em nada no show business.
Observava de longe, vendo-a se virar muito melhor que o autor nova iorquino que quase conseguiu fazer Josué perder de vez a paciência na noite de autógrafos, dando um pequeno chilique de fã cada vez que algum famoso se aproximava pedindo o livro autografado. Ver meu amigo ultrapaciente revirar os olhos cada vez que o outro tremia o queixo foi quase engraçado. Teria sido, se ele não tivesse percebido minha diversão e trocado de posto comigo, me obrigando a cuidar do marmanjo pelo resto da noite. A única vantagem foi não precisar responder quando sairia o meu próximo livro. Em bloqueio há meses, a cobrança crescia a cada lançamento da editora e já me faltavam respostas evasivas. A verdade é que, depois de uma década lançando pelo menos três livros ao ano, existia uma chance real de eu me aposentar como escritora, mas não estava pronta para anunciar nada assim.
Passava das 11h quando tudo acabou. Ana cochilava no sofá de couro da recepção, a equipe de limpeza começava o trabalho e o autor talentoso e excessivamente sensível partiu para o hotel.
— Vamos, pessoal! - Josué deitou no banco traseiro e Ana fazia um esforço visível para se manter acordada.
— Tem certeza que quer me levar? Posso pedir um Uber. - ela comentou sem muita convicção.
— Sem chance. Você hoje é responsabilidade minha.
O caminho foi silencioso e rápido. Quase nenhum carro estava na rua àquela hora e a vizinhança da ONG estaria deserta se não fosse um grupo de rapazes conversando na esquina. Parada no semáforo, um movimento me chamou a atenção. Leonardo saía do prédio acompanhado de uma moça, gesticulando e discutindo. Quando o farol de uma caminhonete passou por eles, pude divisar o casal. Bela gritava com o diretor que a segurava pelo cotovelo. Duvidei que estivesse vendo direito e acordei Josué, pedindo que confirmasse o que estava acontecendo. Ele nem precisou responder nada, Ana olhou a cena intrigada.
— Vocês conhecem essa moça? Ela sempre vem falar com o Léo nesse horário. Ultimamente, quase toda noite. Nunca tinha visto os dois brigarem.
Deixamos a menina em casa, menos de uma quadra adiante. Mal ela desceu, Josué me impediu de ficar a sós com meus próprios pensamentos.
— Acha que é coincidência demais?
— Não faço ideia do que pensar. Essa mulher agora está em todo lugar. O que ela quer com o Léo? Será que ela quer alguma coisa com a ONG? Acha que isso tem alguma coisa a ver comigo?
— Não sei. Dessa vez, se é neura sua, estou na mesma vibe. Tem alguma coisa errada nisso aí e nós vamos descobrir o que é.
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