OITO
É muito fácil se acostumar com as coisas agradáveis.
Virou parte da minha rotina, sempre ao final da aula fazia uma pequena caminhada até a casa do Pablo para conversarmos, nem que fosse por dez minutos. Apesar de programados, esses encontros eram muito mais espontâneos do que os que havíamos tido até então, o que me proporcionou a oportunidade de conhecer Pablo mais profundamente.
Eu sempre o encontrava no meio da sua rotina e quase sempre trabalhando na sua máquina voadora. Ela ainda não tinha forma, era apenas um monte de pedaços desconexos jogados pelo espaço, mas era possível vislumbrar levemente o que Pablo tinha em mente através dos desenhos e projeções que ele fazia. Elas quase sempre mudavam, mas percebi que uma das bases que ele usou foram as observações de voo do Magrelo, seu dragão.
Conhecê-lo melhor foi gostoso e me trouxe uma nova série de coisas que eu gosto e desgosto nele:
Gosto: da forma como me olha.
Desgosto: parece absorto demais no trabalho com a máquina, às vezes. Quando chego, ele me olha como se levasse um susto, toda vez. E parece ter certa dificuldade para sair desse fluxo de pensamento.
Gosto: de como ele é bondoso. Do tipo que se mostra incomodado com qualquer tipo de injustiça e parece capaz de qualquer coisa para defender aqueles que ama.
Desgosto: de como é quieto às vezes.
Gosto: da forma como me beija e suas mãos nunca ficam paradas.
Gosto: do jeito como ele sempre consegue me fazer rir.
Gosto: do "algo novo" do dia.
Gosto: de como enxerga o mundo.
Gosto: do seu cheiro.
Admito, tem mais "gostos" do que "desgostos" no final das contas.
Em uma dessas visitas que aconteceram ao longo dos meses, o encontrei embaixo da máquina voadora, apertando algum parafuso:
– Oi, Mel! – Disse enquanto saía de baixo. Ele passou a me chamar assim depois de um tempo.
– O que é isso no seu pulso? – Perguntei.
– Isso o quê?
– Isso. – Disse, enquanto me aproximava e segurava o seu braço.
– Ah sim. É o meu relógio.
Realmente era um relógio. De ouro maciço, com uns quatro ponteiros diferentes, movendo-se com uma precisão perfeita.
– E por que o relógio está no seu pulso?
– É uma longa história. Eu perdia tempo demais para tirar o relógio do bolso enquanto trabalhava na máquina. Também é perigoso quando se está em um balão, eu precisava ter as minhas duas mãos disponíveis sempre. Então fui a um joalheiro e pedi que resolvesse esse problema para mim. – Ele mostrou as costas dos pulsos para exibir como funciona o cordão que prende o relógio ao seu braço. – Depois de algumas semanas, o joalheiro chegou nessa solução. Simples, não?
– Parece que você está usando uma pulseira. – Brinquei.
– Não me importo. É prático! E se é prático, tenho que usar. Não posso ficar perdendo tempo com bobagens.
Não pude evitar que um pensamento passasse pela minha mente por um milésimo de segundo: e se eu fosse uma bobagem?
Pablo estendeu um pano no gramado, à sombra de uma árvore, para nos sentarmos. Ficamos juntos até uma das criadas chegar trazendo um lanche que consistia basicamente em pães, queijos e sucos. Fizemos um piquenique enquanto conversávamos sobre os mais variados assuntos.
Não sei ao certo, mas as nossas conversas sempre acabam entrando em um rumo onde começamos a apresentar relatos de nossas próprias infâncias, que não poderiam ser mais diferentes. Tudo que Pablo me conta me fornece a impressão de que foi uma criança um tanto solitária. É fácil imaginar um pequeno Pablo, brincando de faz de conta dentro de um casarão enorme, sem nenhum irmão ou outra criança para interagir. Protegido pelos muros, sem poder se aventurar nas ruas onde estaria a mercê de sequestradores. Muito diferente da minha, onde a rua não era apenas livre, mas quase obrigatória uma vez que minha casa quase não suportava o seu número de habitantes. Quase sempre havia uma criança na família, mal crescia uma das irmãs e já surgia outra no lugar.
– Eu gosto de escrever – informou Pablo, no momento da conversa onde começamos a listar as coisas que gostamos de fazer.
– Sério? – Perguntei interessada. – Que tipo de coisas você gosta de escrever?
– Todo tipo de coisas – respondia entre um copo e outro de suco. – Passo muito tempo fazendo anotações sobre a máquina voadora, mas também tenho um diário particular. Gosto de escrever romances, sabe? Histórias. Às vezes, poesia também.
– Que lindo! – Exclamei. – Eu amo ler. Sou uma das maiores frequentadoras das nossas bibliotecas. Nunca tive sucesso em escrever. Já tentei várias vezes, nunca saiu nada legal. Você tem algum conselho?
– Eu tenho. A meu ver, você deve fechar os olhos para escrever bem.
– Como?
– Sério. Vou te provar isso com uma experiência.
Pablo se levantou e me estendeu a mão para que eu me levantasse também. Posicionou-me estrategicamente bem à sua frente e sorriu:
– Pronta? Agora, eu quero que você me descreva essa cena em que nos encontramos. Como se fosse escrever isso em um livro.
Tentei me lembrar de como eram escritas as cenas descritivas dos meus livros favoritos, dei uma boa olhada em volta e comecei:
– Bem... Dois jovens estão parados frente a frente em um quintal muito grande. O sol começa a apresentar os primeiros sinais de que irá fugir de nós, a grama está verde e várias migalhas de pão estão espalhadas pelo chão.
– Nada mal – Pablo disse. – Agora, feche os olhos e descreva essa mesma cena.
– Como eu vou descrever coisas novas com os olhos fechados?
– Apenas tente.
Fechei os olhos. Pensei por alguns segundos e percebi que nada de útil sairia da minha mente dessa forma. Ao invés de pensar em algo legal, apenas fui pescando as únicas coisas em que poderia pensar.
– Estou em pé em um lugar que me deixa em paz e perfeitamente ansiosa ao mesmo tempo. É impossível parar de sentir certo friozinho na barriga, como quem sobe em uma colina e, lá de cima, olha para o chão. Você sabe que está segura, mas mesmo assim, não deixa de lado essa sensação na boca do estômago, que depois de um tempo, você até se acostuma e passa a considerá-la gostosa. Estamos em um campo aberto, eu sei por que o vento bate no meu rosto de tal forma que é possível sentir que nada interrompeu o seu trajeto até mim. A brisa sopra o meu cabelo para o meu rosto e faz cócegas.
– Continue – quando Pablo pediu isso, sua voz estava muito próxima de mim. Tenho certeza de que o seu corpo estava a menos de um dedo do meu.
– Alguma coisa faz o meu frio na barriga aumentar – continuei. – Meu sangue corre muito mais veloz pelo meu corpo, inclusive estou achando que vou ser beijada...
E fui beijada.
– Viu só? – Exclamou Pablo quando os nossos lábios finalmente se desgrudaram. – Você fez uma descrição muito mais bonita, real e interessante para um livro quando fechou os olhos. Até foi um tanto quanto vidente.
–Tenho que admitir, esse foi um bom conselho. Agora me sinto na obrigação de ensinar algo novo para você.
Ele pensou por um segundo e disse:
– Pena que não é possível ensinar essa história de magia...
Pablo estava certo, magia é algo tão intimo que é impossível ensinar para outra pessoa, ela deve aprender por conta própria. Tudo gira em torno do quanto você está em sintonia com a natureza e com o poder que move o nosso universo.
– Sabe no que eu estava pensando? – Ele estendeu os dois braços paralelos ao corpo. – Você consegue fazer complexas flores subirem do nada, correto?
– Correto.
– Então acho que se usar o meu corpo como base e sustento, você consegue erguer uma simples trepadeira de no mínimo um metro.
– Não sei...
– Tenho certeza, Mel. É possível usar um pouco de lógica científica inclusive na magia.
Ele parecia excitado em testar a sua recém-criada teoria, fui contagiada pelo seu entusiasmo em saber o limite dos meus próprios poderes.
– Quando você estiver pronta – ele disse.
Olhei para os seus pés. Eu poderia fazer a planta crescer se agarrando neles, sem grande dificuldade. Ergo minhas mãos espalmadas e me concentro para entrar em união com tudo que nos cerca. Lentamente a planta passa a erguer-se do chão e se apropriar do corpo de Pablo. Subir pelas canelas não foi tão difícil enquanto eu esperava, ela fazia isso de forma tão volumosa que não era possível enxergar as roupas do rapaz por baixo da planta conjurada.
Pablo sorria ao notar o meu sucesso enquanto a trepadeira agarrava em suas coxas e continuava a subir. Eu percebia que os sons de estalos que a planta provocava enquanto crescia só se intensificavam quando minha concentração enfraquecia, então passei a me esforçar ao máximo para manter-me focada.
Foco não foi o suficiente quando a planta passou a precisar correr uma circunferência maior, que era a cintura de Pablo. Nesse momento, a planta continuava a crescer, mas vários trechos seus quebravam e caiam secos no chão, o que sobrevivia subia com menos força, mais rala, com menos vida. Até que chegou o momento onde não era mais possível continuar.
O resultado era incrível. Pablo olhou maravilhado para mim, sem poder se mover com o corpo imerso em uma trepadeira até a altura do seu peito:
– Que demais! – Ele exclamou. – E se você treinar, pode ir até além. Tenho certeza que com essa técnica você será capaz de envolver a minha casa inteira. –
– Só vamos ter trabalho em encontrar uma utilidade para isso – desdenhei.
– Absolutamente nada é inútil, Mel – Pablo respondeu convicto. Tentou se livrar da planta sem sucesso. – Uau! Você fez algo consistente aqui. Pegue um canivete em minha mesa para me ajudar a sair, por favor, amor.
Foi a primeira vez que ele me chamou de amor, e fez isso como se fosse a coisa mais comum do mundo, como se eu já soubesse que era o amor dele e como se o seu amor por mim fosse óbvio. A verdade é que nos vemos todos os dias há alguns meses, mas não paramos para conversar sobre a nossa situação. Nem sabia ao certo se já o amava. Sabia apenas que sentia sua falta quando não estava por perto, que tentava guardar qualquer fato curioso sobre o meu dia na memória, para poder contar para ele, sabia que um sorriso surgia involuntariamente no meu rosto sempre que o via, sabia que ele era o meu último pensamento antes de cair no sono e o meu primeiro pensamento ao amanhecer...
E isso é muito assustador.
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