Capítulo 3
— Não podemos ir voando? — A pequena Millie, com sua penugem já crescida, demonstrava sinais de cansaço.
— Esta é a trilha dos Deuses — informou Eda. — Precisamos fazê-lo a pé. É um sacrifício oferecido. De outra forma, a porta não se abrirá.
As irmãs avançavam em silêncio. O corredor de neve macia trazia impresso, em alguns pontos, o mesmo símbolo presente no antiquário do avô. Lembrava-as de uma suástica, exceto por alguns traços que o sobrepunham.
Uma voz sussurrada fez Millie olhar para trás. O manto branco estava vazio, mas ela continuava a escutar a voz. Ela olhou para Hilde e Eda, que se mostravam impávidas, concentradas no caminho. A sensação era estranha. A garota poderia jurar que alguém a tentava avisar de algo, mas era como se parte dela lutasse para que as palavras não fossem compreendidas.
Assustada, ela puxou a caneta vermelha do bolso, e segurou-a como um amuleto da sorte. Havia-a encontrado, há alguns anos, entre os pertences do avô. Um pequeno desleixe do mais velho e a criança pôde saciar sua vontade irresistível de a ter só para si. Vogel tinha inúmeras relíquias que mostrava às descendentes, jurando-lhes um dia que tudo aquilo seria delas. Mas esse dia nunca chegava e a pequena não resistiu. O avô não chegou a saber do pequeno furto. Um verdadeiro milagre que a fazia acreditar que a caneta a protegia.
De súbito, pequenos seres brancos, como o marfim, cruzaram na frente das três numa correria dispersa. A pressa de chegarem ao outro lado, onde o bosque era mais denso, era notória.
— O que se está passando? — perguntou Hilde, sem conseguir identificar os animais estranhos.
— É a hora prateada — Eda anunciou com o olhar vazio.
A combustão dos três sois luminosos cessou num mísero segundo, entregando aquele mundo à escuridão completa. As duas irmãs abraçaram-se, temerosas. Mas logo uma chuva de prata descaiu sobre elas e as seis luas tornaram-se visíveis no céu, completamente preenchidas. Hilde afastou-se da mais nova, sem lhe largar o braço, e olhou para a pequena aresta arredondada que separava as luas em dois grupos de três. Ali, naquele espaço do céu escuro, já se fazia antever a sombra de uma nova forma: a sétima lua.
Nesse momento, a responsabilidade pesou nos pequenos ombros das crianças.
— Temos de nos apressar — decidiu Hilde.
— O monte Mènni é já ali. — Eda esticou o braço para o aglomerado cristalino na frente do caminho. Incrivelmente, faltavam apenas alguns metros. Sob a luminosidade do dia, ele não se deixara antever. — A chuva prateada é o manto que o torna visível.
Millie sentiu o corpo ficar leve ao encarar Mènni. Ela caminhava lado-a-lado com a irmã, mas parte dela se ausentara. Quando se viu diante da porta, a garota limitou-se a pousar a palma da mão sobre a superfície que espelhava os pontos prateados do céu. Um movimento mecânico, instintivo. Hilde hesitou, mas acabou por imitar seus movimentos.
As mãos das crianças afundaram no material duro que se fundia. Sem darem por isso, os corpos das duas haviam sido sugados para o interior do monte.
Com a barreira destruída, Eda seguiu-lhes os passos.
— Que droga! Precisamos de uma chave.
A mais nova pareceu despertar de um transe profundo com a voz da irmã. As memórias enubladas deixaram-na atordoada. Ela entregava-se a uma luta interna.
A grande raiz no centro do grande monte captou a atenção de Millie. Aquilo lhe soava familiar. A madeira rugosa era preenchida por símbolos, os mesmos que ela havia visto no topo das árvores. Ao aproximar as mãos, com vontade de tocar nas runas, sentiu a pele da mão esquerda tremelicar. Ela ainda segurava a caneta vermelha. A estranha suástica, na extremidade do objeto, irradiava uma ténue luz.
— Hilde!
A mais velha mal pôde acreditar no que via. Ali estava a chave de toda a criação. Elas poderiam salvar o mundo, afinal. Mas algo ainda a perturbava.
— Você tem certeza? O nosso avô... Quando voltarmos...
A pequena acariciou as penas do braço da irmã.
— Não se trata apenas dele, ou de nós. Há outras pessoas, Hilde. Seria egoísmo destruir tantos sonhos só porque nossa vida é infeliz.
Hilde abraçou Millie, e suas penas fizeram cócegas na face dela.
— Obrigada por me lembrar.
Lembrar... Millie teve a súbita sensação de que precisava recordar-se de algo importante.
— Vamos logo! A lua está quase completa! — bradou Eda, nervosa. Ela mantinha-se afastada da força da raiz.
Millie espreitou a luz prateada da meia-lua no céu atrás de si.
— Não! — A mão tremeu-lhe com as recordações em avalanche. — Não podemos!
Eda, irritada, jogou-se sobre ela. A figura humanoide tocou na chave entre as mãos da garota e seu corpo todo explodiu em milhões de fractais.
— Eda nos enganou. — Millie apontou para o vazio, chocada. — Estava a serviço de Walvater. Queria que a vida recomeçasse. Que todos morressem para apagar os erros dos humanos.
A expressão confusa de Hilde encarava a lua crescente com algum receio. Mas ela acreditava na irmã acima de qualquer coisa.
— A sétima é a lua do equilíbrio. — Millie reproduzia as palavras que lhe haviam sido confiadas, em segredo, no caminho. — Se colocarmos a chave na raiz da árvore colossal, a lua não irá erguer-se e o eixo da terra será alterado, trazendo caos e destruição.
— Huginn e Muninn, prazer em vê-las — soou a voz melodiosa que Millie já conhecia. A mulher tinha um olhar benevolente. E, por debaixo de um longo manto negro, irradiava uma beleza única. — Eu sou Vör, deusa da sabedoria e da verdade. Estou feliz que tenha feito diferente, Muninn. Vocês não precisam mais seguir ordens de tiranos.
A caneta caiu no chão. Millie não precisava mais dela. A mais velha, com as costas a arderem-lhe das penas que brotavam incessantes, manteve-se imóvel, resistente à tentação. Fazia-o pela irmã.
— Conquistaram a vossa liberdade — declarou a Deusa com um sorriso radioso. — Hildegard, a protetora. Millicent, aquela que é forte.
As setes luas estavam no centro do céu, e o luar incidia diretamente sobre a enorme raiz. As meninas poderiam ficar ali para sempre, se não fosse o pequeno pormenor da metamorfose.
Um trovão ecoou no céu e estremeceu o monte gelado.
— Precisam de ir ou ficarão aqui para sempre! Millie se agarre à sua força.
A deusa soprou e um grande remoinho apoderou-se das irmãs Vogel. O monte ficou vazio em segundos, com a caneta vermelha a reluzir, inútil, no chão.
O portal desenhou-se à frente das duas irmãs. Estavam de volta ao ponto de origem. Do outro lado, esperava-as o guarda-roupa.
— Vamos, Hilde. Vamos pra casa!
Millie tentou palpar a mão da irmã, mas recebeu o vazio. Ela olhou assustada para o lado, e viu o corpo diminuto de Hildegard a contorcer-se no chão. Duas pequenas asas substituíam os seus membros superiores.
— Vá — Hilde pediu, num grunhido quase incompreensível. — Por favor, destrua o po...
Um corvo surgiu no local da menina deitada. Ele respirava, estava vivo, ainda que atordoado. Cristais de água romperam dos olhos de Millie. Ela não queria perder a única pessoa que amava.
As asas de Huginn agitaram-se e o pássaro levantou voo, finalmente livre.
A garota anuiu. Suas entranhas se contorciam em transformação. Ela faria aquele sacrifício pela irmã.
1195 palavras
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