ASSOBIOS SOB A REDE
Ela escolheu alguns maracujás e algumas maçãs. Depois, no box ao lado, comprou alguns quilos de carne moída e pedaços de toucinho defumado. Pagou tudo e me passou algumas das sacolas de compra que carregava...
"Que é que tu já tá brabo?" — Madá já se enlaçava em meio a sorrisos, enquanto eu continuava tentando ficar sério, para mostrar minha indignação por não saber o desenrolar de sua fuga pela mata.
"Nada não Vó."
"Ninguém sabe o que calado sente, pequeno. Tu sabe disso, né?" — disse ela.
Eu a olhei por um instante, e percebi quão sábia ela era.
Sua vida foi regada a experiências boas e ruins, e disso ela retirou cada ensinamento para sobreviver. Era um oceano de conhecimento, mesmo que nunca tivesse frequentado uma faculdade.
"Sim vó. Tá certa... então, me diz o que aconteceu com a senhora depois que correu mata adentro!"
"Não, ainda não — disse ela, enquanto dava uma rápida olhada em seu relógio de pulso — Olha aí, já vai dar meio dia... péssima hora pra tá falando de Currupira. Não acha?"
"Acho não. Por mim tinha sido dito desde a madrugada. Mas como a senhora tava cansada da caminhada, resolvi deixar de mão — respondi, mudando as sacolas de uma mão para outra — E tinha também a tia e os primos lá... gosto mais quando tá só nós dois, consigo me concentrar mais."
"Bom, posso te contar outra no caminho pra casa de mana Marta. Quer?"
"Se quero?! Claro Vó! Já devia ter começado!" — disse tais palavras com os olhos brilhando como estrelas. Mais lendas antigas, mais folclore, mais sobre o passado de Madá.
"Então tá bom. Vou contar uma que aconteceu com teu pai..."
"Sério?!" — Minha surpresa foi enorme, pois meu pai não gosta muito desses acontecimentos sobrenaturais que cercavam nossa família e por isso evitava contar as histórias e os detalhes para minha coleção de lendas.
Mas, em outra ocasião, Madalena compartilhou uma quando ele ainda era só um bebê em seu ventre e entendi o porquê de sua aversão. Caminhávamos sob um céu nublado, o que de forma alguma dissipava o calor da capital piauiense. Nossos passos ditavam o decorrer da pequena história dos assobios sob a rede...
"Morávamos apenas eu e teu pai numa casinha de barro e telhado de palha com algumas peças de brasilit.
Estava grávida de seu tio César e as coisas estavam um pouco melhores que quando eu era criança.
Bem pouco, mas tinha melhorado sim.
O bairro, onde hoje em dia chamamos de Fumacê, era apenas uma mata fechada, com inúmeros córregos e tucunzeiros para todo lado.
Com o passar do tempo inúmeras famílias passaram a se apossar de pequenos pedaços de terra e foram construindo seus humildes barracões. Mas a mata permanecia, em sua grande maioria, virgem.
Havia todo tipo de Encantados e Visagens por lá e ao passo em que desmatávamos, eles mudavam de lugar... em verdadeiras procissões... numa destas noites, eu e seu pai estávamos recolhidos, nos embalando cada um em sua rede. Aquele som 'tchéeec tchéeeec' indo e vindo a cada balançar ecoava na noite profunda sobre nós.
Do lado de fora, os clarões alaranjados brilhavam, como resultado das queimadas feitas pelos novos moradores. A fumaça incomodava tanto e era tão rotineira, que acabamos adotando o nome Fumacê para o bairro.
Tossíamos até quase ficar sem ar, mas após algumas horas conseguíamos enfim cair no sono.
Mas naquela noite foi diferente...
O som de mato queimando foi rapidamente abafado por um longo e estridente assobio, seguido de outro como resposta.
Eu já sabia do que se tratava, mas seu pai não.
Até que outro assobio fino foi dado e ele sentiu a presença deles sob a rede.
Eu parei de me embalar na rede e me sentei nela.
Estávamos na sala, separados apenas por uma das escoras que sustentavam o telhado. Avistei os donos dos assobios, passando sob a rede de teu pai.
Eram quatro, provavelmente uma família, o maior deles foi quem tocou a rede. Ele ergueu parte dela para que os outros passassem livremente por baixo de Weliton, que naquele momento tremia bem mais que vara verde.
Eu gargalhei alto e eles olharam para mim, sorrindo de volta com pequenos dentes tortos.
A carne deles era avermelhada, alguns tinham pelos grossos por todo o corpo e o maior tinha a pele lisa.
Na hora tive dúvidas se eram Caiporas ou Currupiras, mas aqueles pequenos pezinhos errados me fizeram ter certeza..."
"Mas, Vó — disse, interrompendo bruscamente Madalena — A Senhora não disse que não era hora pra tá falando de Currupira?"
"Sim... E que horas eram aquela?"
"Ia dar Meio dia." — respondi já arrependido por ter interrompido a narrativa.
"E que horas são agora, Sr. Wanderson de Jesus Santos Moura?" — Madá estava séria, nada característico daquela negra risonha.
"Uma hora e dez?!" — disse depois de consultar o relógio de minha vó.
Caminhamos por mais de uma hora, carregando sacolas das compras feitas em uma das pequenas feiras de Teresina, sem perceber.
"Pois como eu dizia antes, tive certeza quando vi os pés trocados deles. Eram Currupiras que assobiaram sob a rede de teu pai.
Estavam a fugir das queimadas, dos tucunzeiros sendo destruídos, do lar deles sendo roubado. E enquanto fugiam, batiam em cães e em quem se atravessasse no caminho deles.
Flechavam os olhos dos curiosos e davam com cipós nas crianças que se perdiam no mato. Por isso a importância de ser batizado antes de entrar no matagal, Sr. Wanderson..."
"Vó... desculpa naquela hora eu ter..."
"Têm nada não, Wan" — interrompeu Madá — "Ah! Olha onde estamos!"
Tirei os olhos de minha vó e olhei para o caminho que seguíamos, imediatamente vi uma enorme placa da TAM, induzindo os clientes a acreditarem que ela era a melhor escolha para se viajar de avião.
Aquela placa — na verdade um enorme outdoor — era o que nos indicava que não havíamos nos perdido. Viramos a esquina e em pouco tempo chegamos à casa de Tia Marta.
Dalí a alguns dias, voltaríamos para São Luís e nada ainda de Madá me contar o que aconteceu ao fugir do Currupira e da cena de seu padrasto com o porco esfolado.
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