Capítulo 10 - Bacuri
Na sexta-feira de manhã.
A governanta está arrumando flores num vaso de vidro. O empresário desce as escadas abotoando a camisa branca e pergunta:
— Marta, viu a Lya?
— Bom dia, diretor Lacerda! Está tudo bem?
— Bom dia, Marta! Estou bem e vou ficar melhor ainda quando souber onde está a minha filha — responde, afobado. — Você viu a Lya?
— Sim, eu a vi — fala calmamente, enquanto corta o longo cabo das flores.
— E você planeja em algum futuro próximo me dizer onde ela está? — pergunta de forma sarcástica.
— Assim que o senhor se acalmar eu vou contar.
— Eu estou calmo, Marta. Apenas fiquei preocupado. Ela estava dormindo na rede, eu fui tomar banho e quando terminei ela não estava mais no quarto.
— O senhor não pode prendê-la no quarto para sempre.
— Eu sei disso, Marta. Mas ela precisa de repouso, pois o tornozelo dela...
— O tornozelo dela já está sarado, ela ficou enfurnada naquele quarto a semana toda. Ela é jovem precisa de ar fresco.
— Eu só estou tentando proteger a minha filha. Você não faz ideia de como eu me sinto culpado por não estar presente durante todos esses anos, então não me venha com sermões.
— Não se culpe tanto pelo passado, diretor, ou vai acabar cometendo os mesmos erros no futuro. — Ele engole em seco as palavras da governanta, como se um filme repleto de cenas dos seus piores erros passasse em sua cabeça. Marta entrega uma orquídea branca para ele e conclui: — Proteja, ame e cuide, mas não se esqueça de deixá-la livre. A Lya está no jardim.
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No jardim da mansão.
Lyara está sentada na grama, sob a sombra de uma árvore. O macaco a entrega uma fruta.
— Que fruta cheirosa — comenta, encostando a fruta no nariz. — Sabe que dia é hoje, Kanauã? — pergunta, encarando o macaco. — Hoje é sexta-feira. Já faz uma semana que a nossa vida mudou completamente. Na sexta passada a nossa casinha pegou fogo e hoje a gente mora nessa casa maceta. Você está gostando de morar aqui? — O macaco guincha e se balança dando uma resposta. — Eu também estou gostando. Eu adoro esse jardim — disse suspirando. O macaco guincha mais uma vez e ela continua: — O que eu acho do Cael? Ah, não sei. Eu gosto dele, mas de um jeito diferente, não é da mesma forma que eu gostava do papai pajé. Quando ele está perto de mim eu sinto um calor, não sei explicar direito... Falando nele, lá vem ele — fala ao observar Lacerda se aproximando. — Ele é bonito, com essa barba e esses braços fortes... Eu o beijei uma vez, depois eu te conto, ele tá chegando perto, disfarça — Ela e o macaco olham para cima como se procurassem algo no céu.
— Oi, Lya! — exclama, se inclinando e oferecendo a orquídea a ela.
— Pra mim? — questiona, recebendo um sorriso como resposta. — É linda. Obrigada! — Ela pega a flor e cheira, com os olhos fechados.
— O que está fazendo aqui? — indaga, ficando de cócoras na frente dela.
— O Kanauã queria me mostrar essa fruta — responde segurando a fruta amarela.
— Sabe que fruta é essa? — pergunta tomando a fruta da mão dela.
— Sei, é bacuri¹⁶.
— Isso mesmo. Sabia que eu plantei esse bacurizeiro logo que você nasceu? — pergunta retoricamente. Ele encara a fruta e constata: — Acho que é a primeira vez que o vejo frutificar. É um sinal que a minha Maria Julia voltou pra casa.
— Prefiro que me chame de Lya.
— Mas você é a minha filha, Jujubinha — disse Lacerda, acariciando o cabelo dela.
— Não é isso que eu queria ser pra você — insinua, olhando fixamente nos olhos dele.
Neste momento, o macaco dá um grito e sai correndo para pular no colo de Lucas que vem se aproximando.
— Oi, Kanauã! Sentiu minha falta, Peludinho? — pergunta, acariciando o animal. — Bom dia, tio! E aí Lya, tá melhor seu pé?
— Bem melhor. Tô pronta pra outra — disse, mexendo os pés.
— Nem pensar. Você está proibida de subir em telhados, pular de varandas e de correr na frente dos carros — retruca o diretor, levantando-se.
— Bem vinda à família Lacerda, Lya - ironiza. — A France mandou essa apostila pra você — fala, entregando um livro.
— Obrigada! — exclama, levantando e folheando o livro. — Saudade da France. Queria tanto conversar com a minha amiga.
— Eu tô indo para o cursinho. Se quiser vir junto.
— Eu quero.
— Espera, Lya — pede o diretor, segurando o braço dela. — Você não pode sair. Está se recuperando de uma torção.
— Eu já estou bem e quero ir.
— Você não vai sair desta casa.
— Vou sim. Você não manda em mim.
— Eu sou o seu pai.
— Não. Você é só um homem mandão que pensa que é o meu pai. Além disso, pelo que eu entendi, assistindo a desenhos animados, depois dos 18 anos sou adulta e não preciso de permissão pra sair.
— Ledo engano, minha prima. Eu já tenho dezenove anos e tenho que dar satisfação até dos meus movimentos peristálticos.
— Você dá trabalho até na hora de cagar, Luquinhas — alfineta Lacerda. — Então tá, pode ir ao cursinho, mas o meu motorista vai acompanhar você. Tudo bem, Lya?
— Está bem.
— Mas não pode ir com essa roupa - disse o diretor, pois ela estava usando o pijama dele.
— Eu não ia sair assim, já estava indo me trocar — disse chateada e se retirou batendo os pés.
— O senhor não acha que está pegando muito no pé da Lya, tio?
— Já não bastasse a Marta, agora você também vai querer me dar conselhos de como eu devo criar a minha filha?
— Quem sou eu pra dar conselhos ao senhor? — disse Lucas, erguendo as mãos em rendição. — Mas, não sei se o senhor percebeu, a sua filha já é uma mulher adulta e independente.
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No hall de entrada da mansão.
Lyara entra irritada joga a orquídea branca no chão e pisa na flor repetidas vezes. De repente, um homem de terno preto se aproxima dela e fala:
— Maria! — assusta-se. — Eu sabia que um dia você apareceria para perturbar os meus sonhos — fala, deixando Lyara confusa.
— Tudo bom, Robson? Como foram as férias? — pergunta Lacerda, adentrando a mansão.
— Diretor... Está vendo a... Ma... — gagueja, apontando para a índia.
— Ah! Essa é a Lyara, a minha filha — apresenta, colocando o braço sobre os ombros dela. — Suba logo para se vestir, Lya, o Luquinhas está com pressa — ordena, fazendo a jovem sair correndo. — Não precisa correr. Cuidado para não cair, Lya — grita.
— Desculpe, senhor, sua filha?
— Sim. É a minha filha Maria Julia, mas ela não gosta de ser chamada assim. Aconteceu tanta coisa nessa última semana, você nem imagina — conta, respirando fundo. Ele nota a expressão atordoada do funcionário e confidencia: — Eu sei, ela é muito parecida com a Maria Madalena, mas com o tempo você se acostuma, eu também me assustei quando a vi pela primeira vez... — Pigarreia e continua: — Robson, eu preciso que fique de olho na Lya, pois ela foi criada na selva por um índio e não entende muito bem os nossos costumes — comenta, enquanto olha para o chão e observa a flor pisoteada. — Você vai ficar à disposição dela, leve-a ao curso junto com o Lucas e não a perca de vista por nem sequer um segundo.
— Sim, senhor.
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No closet da suíte máster.
— Lya, já está pronta? — pergunta Lacerda, batendo na porta.
— Ajuda aqui — grita a moça.
— Algum problema? — questiona, entrando no closet.
— O fecho prendeu Cael, me ajuda — implora, com o vestido aberto, deixando a lateral do seu corpo exposto.
— Ah, claro!
Lacerda se aproxima para ajudá-la a se vestir, pois o zíper, posicionado na lateral do justo vestido de couro, emperrou. Com as mãos tremendo e suando frio o diretor encara a difícil missão de fechar o vestido da índia.
— Pronto, consegui — comemora, ao fechar o zíper. — Não acha que esse vestido está muito curto?
— Não. Eu não acho — responde, admirando-se no espelho. — Da próxima vez eu vou escolher um vestido mais curto do que esse — diverte-se o contrariando.
— Ok! — concorda, respirando fundo e contando mentalmente até três para não surtar. — Eu tenho uma reunião e não vou poder vir almoçar em casa. Mas eu já falei com o meu advogado para dar entrada nos seus documentos — conta, enquanto escolhe uma gravata.
— Ah, que bom! Perdi todos os meus documentos no incêndio e vou precisar de uma via nova para apresentar no vestibular.
— Eu não vou solicitar a segunda via dos seus antigos documentos. Eu vou entrar com uma ação judicial para cancelar sua certidão de óbito e emitir sua documentação original, Maria Julia. Será necessária uma prova de vida, iremos fazer o exame de DNA — fala o diretor, vestindo a gravata listrada.
— O quê? Eu não quero esse nome e não vou fazer exame nenhum — fala irritada, sentando no puff para calçar as sandálias. — O dia do vestibular está chegando, eu vou precisar do documento que usei na inscrição, não posso aparecer com outro nome.
— Eu vou pedir para o advogado entrar com recurso para alterar os seus dados no vestibular.
— Não, Cael. Eu não posso aparecer com documento de gente branca, eu fiz a inscrição concorrendo à vaga como indígena.
— Você não é índia, você é branca. Você é mais branca que uma folha de papel.
— Dá pra parar com esse estereótipo? Não precisa ter pele morena e cabelo escorrido pra ser indígena — discorre enfurecida, terminando de calçar as sandálias e se levantando.
— Não estou estereotipando nada. Estou apenas afirmando que você não é uma índia, você é uma jovem branca e filha de um espanhol — disse calmamente, vestindo o paletó cinza.
— Essa é a sua opinião. Eu sou índia e vou prestar vestibular como indígena. Eu prometi ao meu pai pajé que traria orgulho à tribo, e é isso que eu vou fazer — fala, cruzando os braços e o encarando.
— O seu pai sou eu — disse duramente, apontando o dedo no rosto dela. — Você pode fazer a faculdade que quiser, onde você quiser. Quer estudar na Europa? Eu pago. Mas o nome escrito no diploma será Maria Julia Lacerda — determina o diretor, com a voz alterada.
— Eu não vou mudar a minha identidade e nem a minha essência só porque você não pode perder alguns dias procurando a sua filha na selva — queixa-se com as mãos na cintura.
— Isso foi cruel, Lya — balbucia, com os olhos marejados.
— Desculpa! — exclama cabisbaixa.
— Se eu tivesse uma mínima pista de que você estava viva eu nunca teria parado às buscas, eu entraria naquela selva pessoalmente e só sairia de lá com você no meu colo. Mas, infelizmente, não existe máquina do tempo para eu poder voltar ao passado e consertar os meus erros — exprime em prantos.
— Você está chorando? —surpreende-se. — Eu nunca vi um homem chorar... — Ela o abraça e ele retribui envolvendo-se em seus braços.
— Você me perdoa? — implora com sinceridade.
— Não tem nada o que perdoar. Não foi culpa sua. — Ela encerra o abraço e enxuga as lágrimas dele usando a ponta da gravata. — Eu acho que nada acontece por acaso, tudo é obra do destino e, mesmo que a gente não entenda, ele tem um plano pra gente.
— Um plano bem louco — comenta, soltando uma risada.
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Lucas está sentado no capô do carro conversando com o motorista quando observa Lyara se aproximar e comenta:
— Uau! Que gata, se não fosse a minha prima, eu pegava — insinua, cutucando o motorista.
A índia se aproxima e o homem se apresenta:
— Olá! Eu sou Robson, seu motorista — disse de modo estranho, como se estivesse separando as sílabas.
— Por que você fala desse jeito esquisito? É retardado? — pergunta Lyara, fazendo Lucas gargalhar.
— Desculpe o equívoco. Foi-me informado que a senhorita foi criada por índios, então não sabia se compreenderia o nosso idioma.
— Pelo seu sotaque acho que quem não fala direito o "nosso" idioma é você.
— Sim, senhorita, mais uma vez peço desculpas.
— O Robson é venezuelano, Lya. Por isso ele tem esse sotaque — explica. — Você é da família da tia Maria, não é mesmo, Robson? — pergunta Lucas. indeciso.
— Sim, senhor. Primo de segundo grau da, que Deus a tenha, Maria Madalena. É uma grande felicidade vê-la bem, senhorita — fala, curvando-se.
— Então você é parente da mulher da foto? Que legal! Eu tenho curiosidade de saber como ela era, mas o Lacerda não gosta de falar sobre isso. Posso perguntar pra você?
— Sim, senhorita.
— Não precisa dessa formalidade, pode me chamar de Lya — fala, estendendo a mão.
— Como desejar, Lya — confirma Robson, apertando a mão dela.
— Agora vamos que eu já estou atrasado para a aula — disse, descendo do capô.
— Desculpe a demora, Luquinhas. O fecho do meu vestido emperrou.
— Sem problemas. Você está muito bonita, Lya. Os meus amigos vão babar em você — comenta, abrindo a porta do carro para a prima entrar. Lyara se senta no banco de trás do veículo e Lucas encontra algo no chão. — Olha um colar! De quem será?
— É meu — grita o motorista.
— Seu? Parece um colar feminino, tem até a imagem de uma mulher.
— É a minha medalha de Santa Maria Madalena — explica, tomando a joia das mãos de Lucas. Robson rapidamente guarda o objeto no bolso da calça e disfarça: — É apenas uma lembrança de família, não é nada demais. Precisamos ir. Por favor, entre no carro, senhor.
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16_Bacuri é uma fruta popular na região norte, de polpa branca, aroma agradável e sabor intenso.
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