Peidanfa - Parte VI
Os três companheiros traçaram seu plano. O objetivo seria achar todos os nomes atuais, investigar aquelas pessoas, ver que tipo de proteção precisavam, mas principalmente tirar Ademar de seu estado. O problema maior era uma questão monetária, mas Otalfo mostrou algo que surpreendeu ainda mais os dois jovens. Em um canto do jardim o velho abriu uma portinhola, escondida em meio à grama, desceram em um porão e lá estava um magnífico baú, que quando aberto revelou joias, moedas de ouros, diamantes, relíquias sagradas entre outros objetos valiosos.
"Este é o tesouro dos Doípes, que foi confiado a mim. Séculos e séculos de história estão armazenados aqui. Algumas dessas moedas de ouro darão o suporte financeiro que precisamos. Eu jurei cumprir a missão de minha família. Treinei por um longo tempo para isso. Finalmente sei o caminho e poderei utilizar isso."
"Inacreditável!" Falou Júlio.
"Júlio, quero que saiba que se soubesse que seu pai existia, que existia outro membro dos Doípes vivo, teria ido atrás. Mas não havia um documento sobre ele. Creio que ele tenha sido um filho bastardo. É a única explicação."
"Foi por isso que você ficou tão nervoso com minha presença?"
"Sim, nunca imaginei outro Doípe, ainda mais ter um sobrinho bastardo. Falhei até nisso. O que mais prezo é honrar a história dessa família e farei. Espero que você siga o mesmo."
Júlio abraçou o tio-avô. Gleissiane emocionou-se com a cena.
Nos dois meses seguintes Otalfo e Júlio meditaram o dobro, consumiram apenas vegetais, fizeram várias ações em hospitais, leram bons livros, divertiram-se, ou seja, fizeram de tudo para acumular apenas bons sentimentos e um corpo saudável. Tinham que agir rápido, pois Ademar podia falecer, a família podia decidir desligar os aparelhos que o mantinham vivo. Gleissiane ficou monitorando a casa dos Vieiras, fez algumas visitas ao Ademar. O quadro dele piorava a cada semana, seus sinais vitais diminuíam.
"Vocês têm de vir rápido. A mãe dele não suporta mais o sofrimento de assistir a morte lenta do filho. Júlio, você precisa saber que a médica dele é nossa colega, aquela que foi namoradinha dele, Luíza Mendes, lembra?" Avisou Gleissiane em um dos vários telefonemas.
Júlio lembrava-se com exatidão, nunca esqueceria o rosto de seu primeiro amor platônico. Era justamente Luíza que havia acendido o pavio da "bomba" que havia deixado Ademar naquele estado. Aquela notícia o deixou transtornado. Ao desligar o telefone ficou trêmulo.
"Ei, Júlio! Controle-se! Você tem de saber filtrar, raciocine, não se deixe levar pelos sentimentos, nossa racionalidade que deve conduzir eles e não o contrário. O que aconteceu?" Falou Otalfo vendo o estado do garoto.
"A médica dele é a Luíza, aquela menina que te falei."
"Isso faz tanto tempo. Esqueça. Foi um acidente. Você não controlava aquilo. Agora controla, agora você sente, racionaliza e solta apenas o que é bom. É isso, certo?"
Júlio levantou-se da poltrona que ficava ao lado do telefone, ficou perambulando pela sala. Otalfo sentou-se na poltrona abandonada e ficou a observar o pupilo.
"Conte mais, não pode ser somente isso. Explique exatamente o que te aflige."
Júlio virou os olhos densos para o velho.
"Tá bom, vou dizer."
"Isso, não guarde, solte o que não presta. Eu aguento. Solte pela boca que é melhor."
Júlio sentiu a ironia e soltou um sorriso sem graça.
"A verdade é que apesar de sentir arrependimento, de saber que aquilo foi mais do que o Ademar merecia, ainda sinto repugnância por ele. Não gosto de pensar que ele voltará à vida e receberá toda a compreensão do mundo. É isso, ainda tenho rancor."
O velho levantou-se e foi até Júlio, apoiou as duas mãos no ombro do garoto e olhou em seus olhos.
"Júlio, pense um pouco. Veja quanta bobagem, quanto esse rancor é ignorante. Qual a diferença entre você e Ademar? Diga."
O garoto mordeu os lábios, desviou do olhar duro de seu tutor.
"Ele era um escroto porque queria e eu fui sem querer."
O velho tirou as mãos do menino, aconchegou-se novamente na poltrona, coçou a longa barba como sempre fazia em momentos como aquele.
"Você tem muito para aprender. Ainda é um adolescente. Você ainda está preso naquele momento. Ademar cativava os outros, tinha um comportamento extravagante, ele expandia seus sentimentos em demasia. Ele soltava sem pensar, era impulsivo e tolo. Será que você odiava isso ou invejava? — o velho dobrou as pernas — Você ao contrário repreendia-se, fechava tudo no seu casulo, mas remoía julgamentos o tempo inteiro, sem reflexão, um remoer superficial, de visão estreita, ou seja, você também nunca teve controle algum sobre o que sentia e como deveria se expor. Você nunca soube como deveria soltar o seu bem e o seu mal. Você era, ainda é um tolo, exatamente igual ao seu rival. Entendeu ou quer que eu desenhe?"
Júlio concordou, mas no íntimo restavam dúvidas.
Passaram-se mais algumas semanas. O velho sabia que o garoto não estava totalmente pronto, mas a vida de Ademar poderia não aguentar. Decidiram seguir para encontrá-lo. O velho no final pressentia que somente o caminhar, o seguir no caminho, mostraria a Júlio todo o sacrifício permanente que se deve ter para conhecer o outro, ser empático.
Foi Gleissiane que levou os Doípes para o encontro. Estacionou seu jeep em frente à casa dos Vieiras, olhou atenta para seus amigos, com certa piedade para seu amante. O bairro era nobre, árvores frondosas adornavam a rua, casas exuberantes, modernas em sua arquitetura se expunham lado a lado, quase uma competição de estilos. Os três atravessaram a rua em direção à casa de tijolinhos à vista. Gleissiane deu a mão para Júlio enquanto apertava a campainha. Foi a mãe de Ademar que atendeu. O semblante dela era corroído pela dor e pelo tempo. Viúva morava agora somente com o filho e ajudantes.
"Olá dona Vitória, tudo bem?"
"Olá Gelissiane, você vieram então."
"Sim, esses são Júlio e Otalfo. Como te falei Júlio foi colega de Ademar e há muito quer vir visitá-lo."
"Sim, claro, entrem."
A casa tinha móveis luxuosos, mesmo com os gastos em saúde a família continuava abonada, por sorte, pois estava nítido que se não houvesse dinheiro Ademar não seria um vegetal e sim adubo.
"Venham, ele fica no quarto dos fundos com vista para a piscina. Vocês vieram no dia certo, pois a médica dele está aqui. A colega de vocês, Luíza."
Júlio surpreendeu-se com a notícia, mas seu semblante não se alterou, apenas o piscar dos olhos acelerou-se. Gleissiane apertou forte a mão do garoto. Otalfo observou com atenção todas as fotos da família pela casa e principalmente ao longo do corredor. Ademar sorria em todas elas, sempre abraçando e beijando as pessoas.
"Pelo jeito seu filho era muito alegre, dona Vitória." Falou o velho.
"Sim, era, não parava quieto, tinham uma ansiedade, uma energia sem fim — disse a velha parando e observando uma foto em que Ademar saltava em uma piscina acompanhado de amigos — Ele desabafava tudo, odiava e amava ao mesmo tempo, um furacão."
Quando entraram no quarto Luíza resplandeceu, era como se toda luz do quarto se concentrasse nela. Estava ali dedicada ao namoradinho da adolescência, linda como antes. A água da piscina reluzia no teto do quarto, tornando o ambiente celestial.
"Meu Deus! Não acredito! Júlio Doípe, é você?"
Júlio sorriu e abraçou a antiga colega. Um abraço deslocado, delicado em toques.
"Olá Luíza, sim sou eu. Bom te rever."
Gleissiane também cumprimentou a amiga e apresentou o tio-avô de Júlio.
"Que bom que vieram." Disse a médica.
Júlio manteve-se distante da cama. O corpo continuava branco como da última vez que o vira, a boca torta com saliva, o rosto sem vida parecia guardar uma expressão de dor. Otalfo e Gleissiane ficaram ao lado do paciente. Dona Vitória pediu licença, pois estava preparando um café.
"Doutora, ele sente dores? Ainda tem chances de voltar?"
Luíza suspirou.
"Pode me chamar de Luíza. Tudo indica que ele não sente dores, seu cérebro tem praticamente atividade nula. Se por um milagre ele voltasse veríamos sequelas, com certeza problemas motores e cerebrais graves."
O semblante de Otalfo ficou enrijecido. A médica continuou:
"Ele era um cara e tanto. Nós fomos namoradinhos. Na verdade sempre achei ele infantil, um bobão. Mas de repente, todo dia, ele começou a deixar flores e bilhetes na porta da minha casa, depois cestas de café da manhã. Depois ainda começou a aparecer para dar banhos nos animais da ONG que eu ajudava. Tinha um sorriso lindo. Acabou me conquistando. Agora estou muito bem casada e com filhos, mas fiz questão de cuidar dele depois que me formei, saber de seu estado. Uma tragédia tudo isso. — olhou para Júlio que estava cabisbaixo — Não foi, Júlio?"
Júlio levantou o rosto com dificuldade, seus olhos avermelhados ficaram nítidos.
"Luíza, eu vou ver se a dona Vitória quer alguma ajuda." Disse Gleissiane.
"Sim, claro. Eu vou junto. Fiquem à vontade."
As duas mulheres se retiraram e o pulsar de Júlio parecia fazer queimar suas veias, contrastando com o bipe lento que vinha do aparelho que monitorava os batimentos de Ademar. Otalfo esperou uns segundos, trancou a porta do quarto e fechou a cortina tirando a visão da piscina.
"Garoto, chegou o momento. Venha."
Júlio se aproximou da cama do lado oposto de Otalfo. Ficou frente a frente com o velho e estendeu as mãos. O velho pegou firme nas mãos do pupilo.
"Garoto, segure o remorso, solte compaixão, perdão, amor, use toda sua empatia. Solte seu desejo de vida."
Júlio meneou a cabeça e franziu a testa. Estrondos compassados, que pareciam tambores africanos soaram pelo quarto, constantes. Os corpos dos dois iniciaram um levitar sobre o doente.
"Não pare garoto, solte tudo que preste." Gritou o velho flutuante com o semblante avermelhado.
Os corpos começaram a girar metros acima da cama, pareciam sentados em um gira-gira invisível. Cheiros diversos preenchiam o ambiente e escapavam pelos vãos. Cheiro de mato, chocolate, café, frutas, mar e de pele de bebê pareciam prevalecer. O bipe dos batimentos cardíacos de Ademar foram acelerando, querendo acompanhar o ritmo daqueles sons de tambores.
"Eu não aguento, mais, não consigo." Gritou Júlio.
Batidas na porta surgiram.
"O que está acontecendo? Abram a porta!" Gritou dona Vitória.
Júlio despencou, caindo enfraquecido sobre o corpo de Ademar. Otalfo continuou, mas seu rosto parecia envelhecer, sua pele se contorcia e os olhos esbugalhavam-se querendo saltar da face. Continuou por cerca de cinco minutos e despencou do alto. Júlio foi até o corpo desfalecido, segurou a cabeça de seu mestre.
"Não, não faça isso. Tio, não me deixe. A redenção é minha e não sua."
Otalfo ainda pode olhar para o sobrinho.
"Garoto, siga a missão de nossa família. Tudo ficará certo. Controle-se, deixe o bem fluir em você."
Otalfo Doípe se foi e quase no mesmo instante Ademar abriu os olhos e pode ver uma nova vida se desenhar, novos aprendizados, novas amizades. O ressurgido tinha plena consciência de tudo, sentia-se forte, vibrante, com a força da juventude outra vez. Os olhares de Júlio e Ademar se encontraram e ambos sentiram que eram como cúmplices, parceiros de longa data, não havia mais ódio nem rancor. O caminho para a missão dos Doípes estava feito, um sacrifício dolorido, mas necessários. Talvez Otalfo agora pudesse encontrar alguma resposta concreta sobre a vida e seus mistérios.
FIM
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