Peidanfa - Parte V
Depois da noite de amor o casal acordou abraçado na cama de solteiro do quarto que Júlio ficava. Cafuza beijou Júlio e enrolando-se no lençol foi para o banheiro que ficava no meio do corredor. O garoto assistiu a cena com perplexidade, não conseguia acreditar que aquilo tinha acontecido. A garota demorou a voltar e Júlio levantou-se para ver se algo havia ocorrido. Encontrou Otalfo e Gleissiane tomando um farto café da manhã no jardim, ela ainda toda enrolada no lençol. Eles conversavam descontraídos como se fossem velhos conhecidos. Júlio juntou-se a eles sentando-se e enchendo uma xícara.
"Gleissiane está me contando que você mudou muito, Júlio." Falou o velho.
O garoto meneou a cabeça concordando.
"Ele está mais leve, sorridente, falante. Toda a timidez parece ter ido embora." Confirmou a menina ajeitando o cabelo e mordendo uma torrada com queijo.
Júlio ficou cabisbaixo, uma lembrança amarga passou torturante por sua mente. O passado sempre lhe rondava, a maldita imagem do corpo de Ademar desfalecido, branco como mármore. Não conseguiu disfarçar. Otalfo e Gleissiane ignoraram.
"Que noite maluca! O que aconteceu naquele restaurante? Que música era aquela? Até mesmo o cheiro no ar pareceu mudar. Uma coisa maluca!" Disse a garota sorridente.
Os Doípes se entreolharam, cúmplices.
"Um músico fantástico aquele Lucas." Continuou Gleissiane.
"Incrível!" Exclamou Júlio.
Um silêncio surgiu no tempo de algumas mastigadas.
"Vocês então são parentes, é isso?"
"Sim, somos. Otalfo é meu tio-avô."
"Nossa! Desculpe-me, Júlio. Agora que me dei conta. Quando seu pai faleceu estava fora do país, e quando retornei você já não estava morando com sua mãe. Meus pêsames!"
Otalfo olhou atento para a reação do garoto, sentia uma tensão no ar.
"Obrigado, já fazem anos. Tudo bem." Disse Júlio bebericando seu café.
Gleissiane olhou os olhos atordoados do garoto.
"Júlio, eu aprendi na minha profissão que temos que ser diretos. Preciso de algumas respostas. Você desapareceu da minha vida, da de todos que te amavam. Por quê? Agora nos reencontramos nesse fervor, mas não posso ficar à deriva."
Otalfo contorceu os lábios e meneou a cabeça, tinha o olhar abismado, sentia-se assistindo um reality show. Júlio soltou um sorriso e tentou se explicar.
"Glei, é complexo. Tive uma depressão profunda, problemas psicológicos. Vim para cá, pois é um ambiente alegre, meu médico disse que me faria bem."
A menina olhou desconfiada e usou o tempo do mastigar para refletir. Cada "crack" na torrada em sua boca lhe pedia ousadia.
"Foi tudo por causa do Ademar?"
Júlio não esperava aquela pergunta, sentiu-se atingido por um soco. A fermentação em seu intestino grosso pareceu acelerar, gases percorreram frenéticos por seu tubo digestivo, toda ansiedade e tristeza de seu passado se comprimiram em sua ampola retal. Um suor frio percorreu sua têmpora, seus olhos ficaram vermelhos. Otalfo percebeu o descontrole, estava óbvio que o garoto não sabia lidar com surpresas. Gleissiane ficou sem jeito com sua indelicadeza, mas não entendeu quando o velho agarrou-a e correu para o fim do jardim. Balançando sobre os ombros de Otalfo ela pode ouvir um estampido e presenciar o corpo de Júlio subir vários metros e cair desengonçado quebrando a mesa do café. Júlio parecia sem vida, caído, coberto de leite, café, frutas e torradas.
"Prenda a respiração, menina." Disse Otalfo colocando as mãos sobre as narinas de Gleissiane.
Horas depois Júlio acordou sentindo um pano úmido percorrer sua testa. Gleissiane passava delicadamente.
"Otalfo, ele acordou." Gritou Gleissiane.
Júlio olhava preocupado para a menina.
"Você está bem, Júlio?"
"Sim, estou."
Otalfo adentrou o quarto e Júlio sentou-se na cama.
"O que aconteceu?" Perguntou o garoto.
"Aconteceu que você ainda não está preparado. Você é um maldito impulsivo." Disse o velho com o olhar duro.
"Como assim?"
"Ela já sabe, Júlio. Contei toda nossa história. Não precisar fazer nenhum teatro." Desabafou o velho.
Júlio arregalou os olhos e Gleissiane sorriu.
"Está tudo bem, Júlio." Disse a menina passando as mãos nas costas de Júlio.
"O que você sabe? O que ele te contou?"
"Uma história absurda, algo que ninguém acreditaria, mas eu já sabia."
"Como? Sabia o quê?"
"Eu achei sua carta, aquela que você deixou no sítio. Otalfo me contou o restante, as peças se encaixam."
Júlio esfregou as mãos no rosto, levantou-se esbaforido e caminhou até a sala. O velho e a garota seguiram atrás. Na sala Júlio avistou o enorme caça palavras aberto sobre a mesa de jantar. Aproximou-se e reparou que muitos novos nomes estavam marcados.
"Você mostrou até isso para ela? Como acharam tantos nomes?"
"Meu garoto, essa menina foi enviada pelo destino, é uma especialista no assunto. Veja ela achou nomes em latim, em aramaico, e vários novos em português. Veja, com as letras dos cantos do pentágono temos um estranho nome, mas que talvez seja uma pista. Olhe, veja se te soa familiar: MENDIÉ?"
Júlio olhou atordoado para seus interlocutores. Gleissiane se aproximou, abraçou Júlio, beijou levemente sua boca e olhou firme em seus olhos.
"Júlio, eu sei é uma loucura. Parece uma piada, mas faz todo sentido. Vocês são muito importantes, têm uma missão, que não sabemos ao certo o objetivo, mas sem dúvida é importante. Olhe o tamanho do poder que vocês têm."
"Faz todo sentido? Você tá maluca? Eu peido sentimentos, eu posso matar pessoas com meus gases. Isso é insano!"
Otalfo e a menina riram alto.
"Veja bem, ao longo da história a bunda sempre exerceu fascínio e poder sobre a humanidade. Aqui no Brasil então, a bunda é rainha. A sua bunda além de ser bem bonitinha tem um algo a mais. Podia ser menos esquisito? Podia. Mas é um poder extraordinário. Vocês são a evolução do poder da bunda." Disse a menina sobriamente.
Foi à vez de Júlio gargalhar.
"Não posso acreditar! Que discurso maluco foi esse? A evolução do poder da bunda."
O garoto sentou esbaforido.
O velho se aproximou e sentou na cadeira ao lado.
"Garoto, respire fundo. Temos mais novidades. Gleissiane descobriu coisas fantásticas. Além desse nome estranho ser a provável denominação do tal comandante, ela achou nomes de pessoas da atualidade, provavelmente aquelas que teríamos que estar protegendo. Não sei exatamente como e nem o motivo de necessitarem de proteção, mas agora temos nomes. Não se assuste, leia os nomes."
Júlio apoiou-se na mesa e procurou nomes familiares, ficou estupefato, lá estava o nome de Glessiane Silva Tavares, sua amiga, sua amante. Mas a lista continuava, Lucas Hidam era outro nome, o músico cego que haviam acabado de ouvir no restaurante. Ainda mais inacreditável era o nome bem no centro. Júlio teve que esfregar os olhos, não acreditava. Como não tinha percebido antes? Lá estava, agora grifado, o nome Ademar Vieira. O garoto visivelmente afetado abaixou a cabeça, cobrindo o rosto com os braços.
"Júlio, eu sei que é muita coisa. Gleissiane consegue ler, ela consegue enxergar esse caça palavras como ninguém, isso não deve ser por acaso."
"O interessante é que documento é do século I, quando letras como J e U não existiam no alfabeto romano, mas mesmo assim essas letras constam nele. Trata-se de um documento que transcende sua época, inacreditável. Júlio, outro detalhe é que sei quem são aqueles nomes estranhos que vocês acharam: João Pedro Ferris e Bernardo Antunes." Disse a garota com empolgação.
Júlio levantou o rosto e olhou para a garota. Ela continuou:
"Eu entrevistei eles, fiz duas matérias sobre eles. João Pedro Ferris foi um membro da Agência de Inteligência Brasileira (ABIN), ele escreveu um livro polêmico revelando histórias sobre a participação do Brasil na luta contra o terrorismo. Fez denúncias graves, hoje vive escondido, perseguido por agentes e terroristas. Bernardo Antunes é um garoto que é fenômeno literário, virou febre no wattpad conseguiu mais de um milhão de seguidores e mais de 50 milhões de leituras. Seu livro mais famoso é Banalmente Feliz, uma história filosófica e existencialista. Seus livros são todos best-sellers. Não sei como você não conhece."
"Verdade! Realmente já ouvi falar, não liguei o nome à pessoa. Meu Deus! Eu sou muito burro."
O velho apertou o ombro do garoto e com o semblante sério falou:
"Júlio, sobre o Ademar, fique calmo. Foi um acidente, mas creio que ainda exista esperança."
"Como, você é louco? Meu Deus! Isso é um sonho, um pesadelo?"
"Júlio, o Ademar não está morto. Existe diferença entre estar morto e em estado vegetativo. A família dele gastou uma fortuna e até hoje mantêm sua pulsação, ele vive ligado a aparelhos, um vegetal, mas ainda vivo." Disse Gleissiane.
"Mas não posso fazer nada. Além disso, sou mais um perigo do que proteção para ele."
Todos ficaram em silêncio trocando olhares.
"Garoto, eu te disse que não podemos ressuscitar alguém, mas já que ele está vivo, nós dois juntos, dosando muito bem nossos poderes, acredito que possamos tirar ele dessa situação. Já fiz algo parecido, apesar de ter quase falecido na tentativa."
Júlio abaixou a cabeça novamente.
Continua...
Curiosidades:
Alguns nomes descobertos no caça palavras são de personagens de contos desse livro: Lucas Hidam (Luz e Escuridão), Bernardo Antunes (Fogovivo), Jõao Pedro Ferris (Reencontro no Kaffebar) e Mendié (Agroglifos).
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