Fogovivo: Parte II - Aumentando a chama
O ônibus parou em uma lanchonete de beira de estrada, era a hora do almoço. Faltavam cerca de duas horas para chegar à fronteira com o Paraguai, então pegaria outro ônibus até Assunção, seriam mais quatro ou cinco horas. O paraíso custava a chegar. Um rodízio de ótimo custo me chamou atenção e me fartei. O sacolejo do ônibus junto com a comida quase me mataram. Não dormir um só minuto.
Quando pisei no solo de Assunção me senti embriagado de pavor. O que fazer? Lembrei-me do telefonema que me levou a realizar a viagem.
"Alô, Marielle?"
"Sí, hola. Bernardo, cómo estás?"
"Agora melhor."
"Yo también. Me falta tu."
"Queria você aqui, queria estar na praia novamente."
"No puedo soportar hablar por telefono. Te quiero."
"É horrível essa distância. Você irá para praia novamente ano que vem?"
"Infelizmente no. Tengo que trabajar."
"Não acredito!"
"Si usted podría venir aquí, sería maravilloso."
"Mas como?"
"Al final del año. Poco después de Navidad. Ven."
"Depois do Natal? Sou menor de idade, minha mãe não deixaria cruzar o país para te ver. Sua família também acharia estranho."
"Mi familia va a gustar. Estoy segura. Por favor venga. No podemos perder esta nuestro sentimiento."
Por incrível que pareça minha mãe deixou. Ansiava a hora de ter Marielle em meus braços novamente. Vaguei pela rodoviária procurando por ela ou algum familiar. Havia entendido que alguém me buscaria. O lugar tinha as lixeiras vazias e o chão imundo. Tentei ligar na casa, ninguém atendeu, acho que a forma que disquei estava errada. Troquei alguns dólares por notas em guarani, o que foi bem trabalhoso e fui até um táxi. Retirei o papel amassado onde tinha o endereço e pedi que o motorista me levasse. A cidade era grande, avenidas largas e um trânsito agressivo. Paramos em uma rua tranquila, em frente a uma singela casa com um amarelo claro nas paredes e um portão metálico. Parecia vazia, as janelas estavam fechadas. Naquele sol escaldante imaginei a casa toda abafada. Desci, era o endereço correto. Eu e minha pequena mala caminhamos até o portão e minhas palmas soaram aflitas. Demorou uma eternidade, mas um garoto de cabelos escuros, lisos como de um asiático e rosto delicado atendeu, era cerca de uns três anos mais novo que eu. Ele ficou na porta esperando eu dizer alguma coisa.
"Olá, tudo bien. Yo soy Bernardo, amigo de Marielle. Ela está?
"Papá, tiene um hombre extraño em la puerta."
Respirei fundo, cogitei ter errado o endereço. Um homem atarracado veio até o portão, tinha pernas grossas e rosto carrancudo, reconheci de imediato: o pai de Marielle. Foi difícil explicar, ele demorou a lembrar-se de mim. Falava rápido uma mistura de guarani com espanhol. Não entendi nada. Por fim ele sorriu e tudo pareceu um mal entendido, me chamou para dentro. Indicou que eu esperasse no sofá da sala de estar. O garoto ficou me encarando sentado logo à frente. O pai de Marielle parecia bravo ao telefone.
"Holá me llamo Lucio." Disse o garoto.
"Oi, eu sou o Bernardo. Usted é irmão de Marielle?" Perguntei com meu melhor portunhol.
"Sí, soy."
Ela nunca tinha me falado sobre o irmão, ele não estava na praia, pois Marielle e o pai ficaram hospedados na casa de um parente, os pais de Gláucia. Então o pai dela pediu desculpas e me levou até um quarto, indicou um local para que eu me acomodasse. Logo surgiu a mãe, que estranhei, pois não me olhou nos olhos e fez gestos para que eu dormisse um pouco. Ela se retirou do quarto e fechou a porta. Fiquei ali deitado olhando um ventilador girar, fazia um ruído irritante e quase nenhum vento. O calor era tanto que o suor de minhas costas molharam o lençol. Mil perguntas me rondavam. Dormi.
Mão delicadas empurraram meu ombro e acordei. O rosto angelical e cheio de espinhas de Lucio me encarava.
"Marielle llegó."
Levantei ainda suado. Conduzido por Lucio fui até a sala de estar. Marielle estava lá, deslumbrante, conversava com a mãe. Me olhou com os olhos apagados e um sorriso aberto. Eu me desmanchei e fui a seu encontro. Ela me beijou as bochechas e apertou firme minhas mãos.
"Estoy cansada, mi trabajo fue duro. Voy a dormir um poco. Sinetáse como em su casa." Falou com a voz mole.
"Tá bom. Sem problemas, descanse."
Ela se fechou em seu quarto e fiquei com os olhares esquisitos do pai, da mãe e do irmão. Sorri e pedi licença para ir ao banheiro. Toda aquela comida do rodízio me pesava, acho que era isso que estava gerando aquele calor em mim.
O banheiro me pareceu o melhor cômodo da casa, era amplo com azulejos brancos impecavelmente limpos e tinha um perfume de flores. Enxaguei meu rosto e olhei minha feição com olheiras e tensão, fora isso não achei nada de errado, era meu bom e velho rosto, continuava dentro dos padrões de beleza usuais. Ri da situação. Lembrei-me de uma frase de Gustavo: "Mulheres são estranhas, mudam de humor mais que de roupas." Sentei no vaso sanitário, precisava descarregar toda aquela carne, me sentiria melhor e resolveria aquela situação. Ambos estávamos exaustos, depois do descanso nossa paixão voltaria, alegre como o sol em uma praia. Não pude acreditar na quantidade de dejetos que meu corpo soltou. Me preparei para sair mais simpático do que nunca. Apertei a descarga e um suor frio se formou. Não funcionava. Não, isso não podia acontecer. Um vaso sanitário não poderia me vencer.
Desmontei o vaso como se fosse uma bomba, tirei a tampa superior do tanque e observei toda a maquinaria, peça por peça. Não havia água no tanque, pensei em três hipóteses: algo estava vazando não permitindo o enchimento, algo estava travando a água, ou algum registro estava fechado. Observei uma válvula que tinha tudo para ser a de enchimento, parecia travada. Só podia ser isso. Talvez forçando um pouco ela liberasse a água e o tanque se encheria. Precisava de um objeto pontiagudo. Abri o armarinho debaixo da pia e investiguei os utensílios. Descartei as escovas de dente. Achei uma pinça que poderia fazer o encaixe perfeito. Estava demorando, a qualquer momento alguém bateria na porta. Precisava agir. O cheiro intensificava-se, a descarga tinha de funcionar. Enfiei a pinça no vão estreito da válvula e apliquei pressão, a água surgiu jorrando esperança. Senti-me um engenheiro sanitarista. Esperei o cheiro se dispersar e sai discreto, indo para meu aposento caliente.
Foi o tempo de trocar de roupa e me chamaram para o jantar. Todos estavam na mesa, Marielle entre seus pais, sobrou-me o lugar ao lado de Lucio.
Um choque cultural, pensei.
A mãe se voluntariou a me servir e indiquei que comeria de tudo. Ela sorriu e preencheu meu prato com uma quantidade de arroz agressiva, uma enorme mandioca cozida e praticamente um frango assado inteiro. Lucio avisou.
"En nuestra casa no se pierde alimentos. Comemos todos."
Concordei. Mais um choque cultural, pensei.
Marielle comeu o prato mais cheio de todos.
Após o jantar fomos assistir televisão, todos juntos. Pude passar alguns momentos de mãos dadas com ela. Algo a atormentava, talvez algum tipo de vergonha devido à presença dos pais. Desejava o momento que ficaríamos a sós. Porém, não aconteceu, ela levantou-se e disse que teria de ir dormir, voltaria amanhã cedo ao trabalho cansativo.
Mais um choque cultural, pensei.
Era dia 28 de dezembro, iria embora no dia 03 de janeiro, passaria o fim de ano com aquela família. Tinha cinco dias para conseguir algum momento especial com Marielle, voltar a sentir a paixão praiana.
No dia seguinte acordei e tomei café com a família, Marielle estava atribulada, seu começo de dia era corrido, seus horários eram apertados. O pai, jogador de futebol aposentado, a mãe dona de casa e o irmão Lucio de férias ficaram me fazendo companhia. A descarga voltou a emperrar, mas não me preocupei de imediato, nada tinha a descarregar. O almoço foi arroz, a mandioca gigante e o frango quase inteiro, um padrão alimentar. Fui convidado a jogar baralho na calçada da rua, onde era mais fresco. Lucio e o pai colocaram cadeiras de praia beirando o meio fio e acompanhados de um tereré geladíssimo, iniciaram uma tarde de jogos. Apesar de não entender direito o que diziam foi de certo modo divertido e refrescante, dentro da casa o calor continuava a imperar. Pensei em minha família que naquele momento se dirigia a nossa casa de praia, para mais um verão. Marielle chegou na hora do jantar, onde o cardápio não teve grandes surpresas. Em um breve instante que ficamos solitários na sala consegui um amedrontado selinho. Foi bom tocar aqueles lábios novamente. Amentou o desejo por um dia em que ficaríamos distantes de tantos olhares de família.
Acordei na madrugada sentindo um pesar no estômago e o pesadelo da descarga emperrada voltou. Fiz todo o meu processo de desmontagem, não funcionou. Como era de madrugada deixei o resíduo de frango e mandioca exposto, ninguém poderia descobrir o criminoso.
Mais um dia e toda rotina se repetiu, mas consegui beijar com mais fogo a menina dos meus sonhos. Ela mostrou-se exasperada com minha atitude.
Acordei no dia 31 e jurei que descobriria o que ocorria naquele maldito banheiro. Tanto frango, mandioca e uma sopinha de óleo que agora acrescentavam eram perigosos. No café da manhã Marielle avisou que iríamos sair para jantar, apenas os jovens e depois passaríamos a virada do ano em algum bar ou boate. Um amigo dela nos levaria, já estava certo. Meus olhos brilharam, teria minhas recompensas.
Durante a tarde observei quando o pai dela pegou um jornal, se deslocou para os fundos, onde havia uma edícula e depois foi ao banheiro. Investiguei a edícula e achei, um registro se encontrava lá. Provavelmente havia algum defeito hidráulico na casa e só ligavam a água nas horas de necessidade. As rachaduras em algumas paredes e a falta de manutenção como um todo indicavam isso. Um mistério resolvido. Voltando da edícula Lucio me assustou saltando escondido atrás da porta, sorrindo me deu cutucões e tentou me fazer cócegas.
Choque cultural!
Mais tarde Lucio me chamou para nos arrumarmos. Marielle havia telefonado e passaria já pronta para sairmos. O amigo lhe daria carona e nos levaria junto. Lucio estava animado, mostrou-me diversas roupas e pediu que eu opinasse. Acho que não saia muito.
"Lucio, quem é este amigo de Marielle? Ele trabalha com ela?"
Lucio perdeu o entusiasmo e respondeu.
"No sé bien. Creo que si."
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro