Luz da Noite - 3
Não fiquei. Não fiquei para procurar papai, que eu não sabia se ainda estava vivo e procurava por mim com o mesmo desespero com que eu procurava por ele. Sabia que se ficasse, seria morta. Disparei em direção à mata, onde corri até que minhas pernas finas já não aguentassem mais. Mas sabia que embora já estivesse completamente imersa na selva, devia correr um pouco mais. A mata para onde fugi era diferente. O espaço era mais árido, tinha plantas que eu não conhecia e era menos selvagem, talvez pelo fato de a selva onde eu e meu pai vivíamos, ser uma vegetação intocada. Havia uma espécie de trilha, como se alguém já tivesse passado por ali.
Escuto o som de tiros próximos. Ou eles estavam atrás de mim ou atrás de outros que haviam tido a mesma ideia. Corri um pouco mais, até que meus pulmões, em brasa, já não aguentavam assim como minhas pernas. Mas não podia me render. Se parasse, provavelmente me encontrariam e me matariam... não, pior. Entretanto, já não aguentando de cansaço e fraqueza, a velocidade dos meus passos diminui, até que me deixei cair e desmaiei. Quando acordei, já era de noite. Atordoada, senti algo gelado e melado rastejando pela minha perna. Dei um salto e mandei o bicho para longe. Cobras já não me assustavam. Me assustava muito mais estar perdida no meio da selva sem saber onde estava o meu pai, se estava bem e a possibilidade de ser encontrada e capturada pelos rebeldes ou por quem quer que fosse. A África era terreno das piores tragédias que se pode imaginar. A Guerra Civil na Serra Leoa foi marcada pelo uso de crianças soldado. Elas eram capturadas pelos rebeldes e submetidas à uma lavagem cerebral, aprendendo a matar e fazer todo tipo de atrocidades, além de serem expostas a todo tipo de drogas e abusos físicos e psicológicos.
Não sabia disso na época. Mas isso não me ajudou a sentir menos medo. Nos próximos dois dias, fiz tudo o que fazia no meu lar, que já parecia muito, muito distante... mas com medo e angustia ao invés de alegria.
Se não fosse a minha experiência em sobreviver na mata por conta própria, não sei o que teria sido. Mas meu medo e desespero acabaram me sugando e houve um momento em que já não vi sentido em ficar caminhando sem rumo. Me deixei levar pela fraqueza e pela falta de esperança em reencontrar papai, se é que ainda estava vivo. Me deitei ao anoitecer e acordei na manhã seguinte com o som de pessoas se aproximando. Talvez estivesse alucinando, mas parecia que falavam inglês. Eram voluntários da UNICEF e tudo o que queriam era me ajudar a encontrar a minha família... o que havia restado dela. Me enrolaram em um cobertor e me deram comida. Embora sim falassem em inglês, eu não consegui responder a nenhuma das perguntas que me fizeram exceto qual era o meu nome, que ninguém entendeu. Quantos anos eu tinha, se estava machucada, de onde eu era, de onde tinha vindo, onde estavam os meus pais... era demais, e a única pergunta que para mim importava era onde estava o meu pai... mas eu não tinha a resposta. Se estava machucada, isso não precisava responder, era visível que além de alguns arranhões e parasitas externos, estava bem, porém pele e osso. Já era. Mas mais do que nunca, parecia uma criança subnutrida e que precisava de ajuda. Me levaram para uma casa que abrigava crianças perdidas ou órfãos. Não sabia se eu era um dos dois ou os dois.
Eu era uma criança sem identidade, sem nenhuma ideia do que havia acontecido com o meu pai e como localizá-lo. Depois de um check up médico suficientemente completo, não demorou muito para eu ser transferida à um orfanato, em Gana. Nunca tinha andado de avião antes e a experiência me assustou, principalmente porque estava rodeada de estranhos e não conseguia confiar neles. Ao chegar, ganhei roupas novas, o que a princípio me animou, mas não iria abandonar as minhas roupas de sempre, que já haviam virado trapos, até porque elas eram uma lembrança do meu pai, além da presa de elefante que ele me havia dado, que eu carregava sempre no bolso como uma espécie de amuleto da sorte. Quanto aos chinelos que me deram, não os usei nenhuma vez, pois não estava acostumada a não andar descalço e por isso, não via necessidade.
Durante esses dias, não interagi com quase ninguém e disse umas poucas palavras, nenhuma que ajudou a encontrar papai. Por sorte, a língua oficinal daquele país estranho era o inglês, então eu podia conversar com quem quisesse... se quisesse. Mas permaneci fechada. Contei, entretanto, o que me pediram, respondendo mais "sim" e "não" do que de fato contando algo. Revelei que meus pais eram americanos, que não tinha mãe, que ela tinha morrido quando eu ainda era bebê enquanto passávamos alguns meses na África, e que depois disso o meu pai me levou para morar com ele na selva. Nesta parte, não ficou claro para mim se ele de fato haviam acreditado... ou se achavam que estava inventando ou imaginando. Quando me perguntaram qual era o nome do meu pai, eu respondi que não sabia.
Eu era uma criança selvagem e estranha num mar de estranhos. Havia aproximadamente sessenta crianças em nosso orfanato, algumas em condições péssimas, o que dificultava ainda mais uma interação. Muitas me encaravam, poucas se aproximavam. Eu também não fiz esforço nenhum para gerar qualquer tipo de empatia. Exceto uma vez, quando uma menina, que devia ser um pouco mais velha do que eu, se aproximou, se sentou ao meu lado e me ofereceu um pedaço de biscoito salgado. Nunca vou esquecer seu sorriso gentil e seus olhos tristes. Sem pensar duas vezes, aceitei e agradeci com um sorriso tímido. Uma vez, entretanto, não fui tão bem tratada. Havia um pequeno espaço ao ar livre, um pátio, onde eu passava a maioria das tardes, sentada simplesmente olhando as outras crianças brincarem, caminhando envolta ou entrando timidamente em uma alguma brincadeira. Um grupo de meninos mais velhos me cercaram e começaram a implicar comigo. Um dos funcionários do orfanato nos viu e se aproximou e apartou o que poderia ter sido o início de uma briga. Embora eu precisasse de força para me mover em cipós – coisa que não fazia com tanta frequência –, meus braços eram varetas e eu era uma menina, embora pudesse não parecer muito uma.
Depois de quase um mês, uma mulher chegou para mim, me levou para uma sala e me disse que haviam feito de tudo para localizar o meu pai mas que já havia passado muito tempo... e que eu seria declarada como disponível para adoção. Passaram-se quinze dias aproximadamente... e encontraram uma família interessada em me adotar. John e Amelia Hampton, uma família americana estabelecida em Winter Park, uma cidadezinha pacata e charmosa da Flórida, vizinha ao Centro de Orlando. John, nascido no Reino Unido, tinha quarenta e oito anos e era dono de uma grande rede de produtos orgânicos, vendidos nos melhores supermercados e lojas dos Estados Unidos. Amelia, nativa da Flórida, tinha trinta e cinco anos e ajudava John na empresa na parte administrativa. Tinham um filho, John Hudson, apenas um ano mais velho do que eu e, de acordo com o que me disseram, muito animado para ganhar uma irmãzinha. Quando ouvi a frase, me imaginei de fato sendo a irmã mais nova de alguém e me senti estranha; aquele alguém não era e jamais seria meu irmão de verdade. O casal não estava buscando por uma criança de um gênero ou idade específica, entretanto, descobri mais tarde, Amy sonhava com uma garotinha da minha idade ou mais nova. Eles não vieram me visitar. Bastou verem uma foto minha, para saberem que eu era a criança destinada a ser escolhida e acolhida pela família Hampton. Eu era, obviamente, a única criança do orfanato inteiro de pele branca, cabelos louros e olhos claros. Ou seja, estava bem longe do que os Hamptons haviam imaginado achar... porém, embora minha aparência física fosse totalmente diferente, por dentro, não era tão diferente de nenhuma criança presente naquele orfanato e outros. Assim como todas as crianças ali, eu tinha o desejo de encontrar – ou reencontrar – um lar e ser amada. Muitas das crianças do orfanato jamais tiveram um lugar que pudessem chamar de lar. Eu era feliz com o meu pai na selva, vivendo nas condições mais inusitadas. Levei um tempo para me dar conta de que a vida que eu havia vivido até o momento e a única que eu conhecia, havia se transformado em uma lembrança. Papai não foi encontrado. Talvez nem estivesse vivo. Eu tinha uma nova família disposta a me receber com amor... mas isso significava que teria de abrir mão de uma vez de qualquer esperança em encontrar o meu pai e recuperar a única vida que eu conhecia. Considerei que se realmente haviam feito de tudo para encontrar papai e eu tinha uma possibilidade real de ganhar uma nova família que me amasse e um novo lar... eu disse "sim."
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