Luz da Noite -16
Pedi aos meus pais (na verdade implorei) que cortassem as minhas sessões com Vivianne. Precisava agora estudar mais do que nunca para arrasar no campeonato de matemática, não achava que (para mim) terapia era necessário... e entre nós, já não a aguentava mais.
Eles aceitaram. Não precisava convencê-los de que precisava me preparar para o campeonato; isso era óbvio. Precisei convencê-los de que terapia não era para mim e não era necessário, o que, no fundo, todos nós sabemos que é mentira. Os problemas sempre vão existir. O que os terapeutas fazem é simplesmente ajudar-nos a resolvê-los e quando podem, preveni-los. E fazem isso bem, pois estudaram e são pagos para isso. Por quê então desistir se no fundo sabia que era bom para mim? Bom, uma coisa que posso dizer... eu não acreditava que Vivianne me ajudaria a conquistar o Steven. E eu não me sentia cômoda conversando sobre o assunto com ela. A única pessoa com quem eu me sentia cômoda e me dava conselhos era Jamie... e vice-versa.
Eu, por sorte, podia contar nos dedos os meus problemas. Não tinha muitos, na verdade me considerava uma menina muito sortuda por ter sido escolhida para fazer parte da família Hampton e ter a oportunidade de começar uma nova vida em um lugar tão melhor do onde eu estava, embora, sim, eu às vezes sentia falta da mata – os sons, os cheiros, as plantas, os animais, minhas aventuras, minha liberdade... tudo, incluindo a minha interação com o meu pai, é claro.
Quais eram os meus problemas? Estar apaixonada por alguém... como o Steven. Não saber o que aconteceu com o meu pai biológico, se ainda estava vivo e procurando por mim, lembrando dele e sentindo sua falta, ainda que, com o passar dos anos, tenha se tornado uma dor suportável. Ter um amigo como o Jamie que um dia está e no outro já não. Estávamos nos distanciando cada vez mais, eu sabia disso, e ele... acho que estava ocupado demais para se dar conta. Ocupado demais se sentindo deprimido, estudando, namorando... sentia que o espaço onde a nossa amizade se encaixava estava ficando cada vez menor. O que um dia foi um buraco estava se tornando uma fenda. Mas nada... nada me fazia sofrer como a indiferença do Steven. O sentia longe, e não sabia exatamente por onde começar para poder mudar isso... até que tive a ideia de me inscrever para o campeonato. Mas sabia que se quisesse causar impacto teria que fazer muito mais que isso. Comprar roupas novas, por enquanto, não adiantaria para nada: eu só via Steven na escola e usava uniforme. O cabelo... gostava dele comprido e liso, por enquanto não via necessidade de mudá-lo e não queria. Maquiagem... precisava começar a usar maquiagem. O corpo... por sorte, não precisava me preocupar com gorduras a mais e podia dizer que me sentia satisfeita com o meu físico. Sempre fui muito magra quando criança e mesmo mudando de família e comendo mais, isso não mudou. A pele... por sorte também não precisaria fazer nada relacionado à pele. Minha pele era lisa, raramente tinha espinhas... o que acho que sim precisava era de um pouco de cor. Perguntei a Amy se poderia me emprestar algo. Algo significava um kit completo de maquiagem, já que eu não tinha... mas Amy tampouco. Na rotina, ela dispensava maquiagem; trabalhava em casa e não tinha tempo. O que sim tinha era o básico, mas era exatamente ali onde eu ia começar, no básico. Nada de cílios postiços ou delineador, truques de beleza que no momento me soavam demasiado mirabolantes. E eu ia para a escola, não a um desfile. Amy ficou feliz, comentando que demorei muito para começar a me interessar por maquiagem e realmente, demorei. Ela sabia que era por conta de Steven e me jogou aquela frase típica "Nós temos que querer ficar bonitas para nós mesmas."
Eu não discordava. Mas não ia fazê-lo. Se arrumar exigia tempo. A menos que fosse necessário, a menos que eu fosse encontrar alguém conhecido, eu preferia preencher o meu tempo fazendo outras coisas.
Antes de mais nada, eu precisava aprender a me maquiar. Liv se animou e entrou na brincadeira. De manhã, antes de ir para a escola, estávamos as duas na frente do espelho do banheiro dos nossos pais. Para ficar na altura do espelho, ela me pediu que eu lhe pegasse um banquinho.
Passei lápis, rímel, uma suave sombra rosada e coloquei um pouco de cor nas bochechas. Liv quis me imitar e optou pelo mesmo, não conseguindo colocar o rímel e eu não podia ajudá-la porque senão me atrasaria. Tinha vontade de colocar batom vermelho, mas sabia que isso seria o mesmo que escrever na minha testa "olhem para mim". O vermelho ficaria contrastado demais com a minha pele branca. E para alguém que nunca apareceu em lugar algum com os lábios vermelhos muito menos na escola, definitivamente não era uma boa ideia. Na verdade, eu achava até ridículo ir tão sexy à escola. Nem as patricinhas usavam batom vermelho.
Para poder me maquiar, precisei levantar uma hora antes. E Amy entra no banheiro e vem me dizer que eu estava ótima mas que não importava se usasse ou não maquiagem, era bonita do mesmo jeito.
"E só agora você me diz isso?!" É o que eu diria para ela se acreditasse nela.
Jamie achou esse lance de começar a usar maquiagem uma besteira. Tinha a mesma opinião que a Amy (a "frase típica") e disse algo cruel mas verdadeiro na opinião dele: talvez valesse mais a pena investir no visual depois que Steven e eu começássemos a nos encontrar fora da sala de aula.
"Não te ocorreu que se eu não investir no visual agora não vai ter um depois?", questionei. Ele não respondeu.
O assunto de maquiagem e mudança de visual me fez lembrar do aniversário de um ano de minha chegada. Eu estava no jardim, quando John veio com uma câmera filmadora apontada para mim.
– Satsuki. Hoje é um dia muito importante. Você consegue acreditar que já faz um ano desde que você chegou?
Balancei a cabeça em negativo.
– Vamos fazer algo especial hoje. Quer adivinhar o que é?
– Não sei – respondi.
John e Amy não consideravam o dia da minha chegada como o dia em que realmente passei a fazer parte da família. O dia em que eles assinaram os papéis de adoção tampouco. O dia em que passei a fazer parte da família foi quando eles viram a minha foto e Amy, que foi a primeira a se manifestar, disse "Ela é nossa." Naquele aniversário de um ano, saímos para jantar, só nós três. Amy queria que eu usasse um vestido, já que era uma ocasião especial e íamos à um lugar chique. Também queria que eu prendesse o cabelo em um rabo de cavalo, mas isso eu não quis e ela não insistiu.
Mais arrumada, tudo o que eu queria era que ele me olhasse. Durante a aula, fingi estar com uma dúvida e o chamei à minha mesa. Infelizmente, ele olhou mais para o papel do que para mim. Mas ter os nossos rostos tão próximos, a ponto de poder sentir seu hálito, já era algo que me agradava... ao mesmo tempo em que torturava. Quando ele estava tão perto, era impossível não ficar imaginando coisas. Coisas que eu faria se pudesse. Odiava a sensação da tentação, e ao mesmo tempo era divertido imaginar que estávamos frente a frente, ele me explicando coisas, não tendo a menor ideia do que se passava pela minha cabeça naquele momento.
Aconteceu algo inédito naquela sexta-feira. Hana Parks finalmente deu as caras, aparecendo na sala depois que o sinal tocou e todos os alunos começaram a arrumar suas coisas para dar o fora e ir curtir o final de semana o mais rápido possível...
Todos os alunos menos eu. Em choque diante daquela inesperada aparição, comecei a arrumar as minhas coisas devagar, olhando discretamente para os dois, quando ela se aproximou dele e lhe deu um rápido beijo nos lábios.
Foi tão breve e discreto (o mínimo que se pode esperar com ele estando em seu ambiente de trabalho e na presença dos alunos) que eu não podia afirmar com 100% de certeza se foi realmente um beijo na boca. Mas não importa. Me cortou o coração igual. Ela não podia esperar para vê-lo? Não podia pelo menos não entrar na sala de aula e fazer isso na frente dos alunos? Sim, a aula já tinha terminado e estavam todos apressados arrumando suas coisas para irem embora, totalmente focados nisso... mas mesmo assim! De qualquer forma, Hana não era o tipo de mulher que passava despercebida. A visita definitivamente chamou a atenção de alguns alunos, até porque, ela era uma estranha em um ambiente familiar. Ela não podia ter entrado na sala de aula e muito menos beijado Steven, supondo que eles realmente haviam se beijado ali. Tudo que eu sabia naquele momento era que eu queria poder tornar realidade o que o meu pai me disse uma vez: que se eu fosse um animal da África, deveria ser uma leoa. Queria ser uma leoa para poder pular encima do pescoço daquela mulher e furá-lo com os dentes. Depois, provavelmente me acertariam com um dardo tranquilizante e eu seria sacrificada... o que seria bom, assim não correria o risco de ver aqueles dois juntos nunca mais.
Surpreendentemente, não chorei, até porque eu não era de chorar. Mas quando cheguei em casa, fiquei quieta o resto do dia e agradeci ao fato de ter irmãos pequenos – ocupada com as crianças, Amy sequer teve a chance de notar a minha tristeza. E John... sempre chegava cansado do trabalho e ia mais ou menos pelo mesmo caminho.
Alguns dias após acontecimento, Jamie e eu ficamos uma semana sem nos falar. Eu mandava mensagens e ele não respondia. Quando finalmente retornou o contato, mandou um e-mail confessando estar chateado comigo e por isso o afastamento. Escreveu:
"Bom Satsuki eu quero explicar por quê não respondi. Tem algo me chateando. Você sabe que não ando bem e que estou até tomando anti-depressivos... eu sei que você também não está bem, mas ultimamente só temos falado de você e dos seus problemas. Quando eu falo algo de mim você logo começa a falar sobre os seus assuntos e quase não me dá atenção. Eu não me importaria se eu não estivesse com tantos problemas. Eu sinto muito, vou sempre estar ao seu lado e quero sempre te ajudar, mas ultimamente não ando com a cabeça boa. Tenho evitado falar de coisas ruins e negativas e isso tem me ajudado. Então eu peço a sua ajuda, sei que sou a única pessoa que você tem para falar sobre o Steven, mas preciso de um tempo. Disse o mesmo para a minha mãe e etc. Gostaria de ouvir coisas mais positivas como era antes. Sinto muito, mas prometo que vou melhorar!
De seu grande e melhor amigo,
Jamie."
Respondi indignada. Não era nada disso. Eu não estava ignorando os problemas dele e falando só sobre os meus. E também... não achava certo eu simplesmente colocar os meus problemas dentro de uma gaveta e só falar sobre coisas boas. Aqueles "problemas" eram a minha realidade no momento; eu não podia fingir que eles não existiam, nem que fosse só por um tempo. Fiquei chateada, acreditando que era egoísmo da parte de Jamie me pedir isso. E errado. Amigos são amigos nos bons e nos maus momentos. Ajudam uns aos outros. Por mais que ele estivesse passando por dificuldades, isso não era uma desculpa para ele ignorar as minhas. O simples fato de ele querer isso me agitava. Se eu realmente era importante para ele, ele deveria se sacrificar por mim e querer o melhor para mim, o que significava não me pedir para fingir que os meus problemas não existiam e parar de falar sobre eles.
Talvez, com esse modo de pensar, eu estivesse indo por um caminho um tanto fantasioso, idealizando o conceito de amizade. Mas eu achava que não e isso me magoava muito. No final do e-mail, respondi, porém, que eu poderia fazer um esforço para pegar mais leve. Não deixar de falar sobre os meus problemas com Steven, mas falar sobre eles com mais humor, de uma forma menos dramática. Não evitei, porém, terminar o e-mail de forma pesada. Escrevi:
"Bom eu tenho tanta coisa pra responder/contar que nem sei direito por onde começar... Você disse que ultimamente só temos falado de mim e dos meus problemas e que eu não te dou atenção. ISSO NÃO É VERDADE!!! Se você lesse as minhas mensagens mais antigas, veria quantas vezes eu me desculpei. Me desculpei por estar jogando os meus problemas encima de você e desabafando tanto. E além disso, eu nunca deixei de falar de você, de comentar sobre a sua situação... Até onde eu sei, é VOCÊ que não tem me dado atenção. Você não respondeu o meu último e-mail até hoje. Isso sem mencionar todos os outros assuntos que você ainda não respondeu. Eu te contei, por exemplo, que a Hana apareceu na escola e beijou o Steven na minha frente e etc... e você até agora não comentou NADA. Nada. É você quem não me dá atenção, não eu. Sei que é porque você está mal, mas isso na verdade não serve como uma justificativa pra você ignorar o que está acontecendo na minha vida. Agora, sim, é verdade, eu mandei muitas mensagens ultimamente falando principalmente sobre mim. Encima disso, quero que você entenda uma coisa: sobre a sua situação a verdade é que não tem muito o que falar! Foi por isso que eu falei um pouco de você e depois falei mais de mim. A sua situação é essa e ponto final... a minha não é uma constante, está sempre mudando! O que eu quero dizer com isso? Que se na segunda acontece algo ruim com o Steven, na quinta acontece algo pior ainda. Eu não sei bem o que dizer sobre a sua situação além de tudo que eu já falei! Eu perguntei como foi a ida ao psiquiatra, pedi detalhes, perguntei o nome do remédio, já dei a minha opinião mil vezes sobre o que você deveria fazer em relação a Jessica... o que mais você quer que eu diga? O que mais você espera que eu diga?
Ressaltando agora uma questão: lendo esse e-mail, me deu a impressão que você acha que os seus problemas são mais importantes que os problemas dos outros. Talvez por isso você pediu pra eu colocar a minha vida em "pausa" e não te contar mais nada do Steven e etc. Agora, falando sobre o final do e-mail... eu concordo que temos que falar com mais frequência sobre coisas positivas. Só tem um problema: A MINHA VIDA NESSE MOMENTO É ESSA! Eu não posso ficar contando mais coisas positivas do que negativas se elas não existem. Então, se eu parar de te contar os meus problemas, vou estar omitindo praticamente tudo o que acontece na minha vida. Infelizmente, minha vida é isso. Tem mais, se você se importa comigo, então você iria querer saber das novidades. Iria querer saber como foi o meu dia, como foi a minha aula. Então eu não vou deixar de te contar nada porque eu não vejo sentido nisso... mas acho que posso tentar contar com mais humor ou positivismo.
Mas você provavelmente não vai mais querer falar comigo depois desse e-mail. De qualquer forma, se você não tem interesse em saber da minha vida, que nesse momento é isso... então é melhor a gente parar de se falar. Na verdade já paramos. E o que me deixou realmente chateada é que você demorou muitos dias pra me mandar esse e-mail. E além disso, me pede uma coisa dessas e fala um monte de besteiras que não são verdade, dando a impressão que você valoriza mais os seus problemas do que os meus. Então na verdade sou eu quem não quero mais falar com você. De qualquer forma agradeço o e-mail e você ter dito que sente muito... mas isso não basta."
Ele não respondeu.
Não falei mais com Jamie. Quando escrevi "Acho melhorar não nos falarmos mais", não imaginei que íamos de fato fazer isso. Achei que ele iria entender e aceitar a minha proposta de continuar ouvindo os meus problemas mas de uma forma mais leve. Relendo o e-mail, percebo como fui agressiva, mas realmente não imaginei que isso iria de fato nos afastar.
O grande dia tinha chegado e o que eu mais queria era compartilhá-lo com Jamie.
Não... o que mais queria era compartilhar o meu momento com Steven. Mesmo sabendo que ele sabia muito bem a data e a hora do evento, quis por vias das dúvidas enviar um e-mail lembrando-o. Isso já há dois dias, e ele não havia respondido... o que não significava que não viria, por isso não me preocupei.
Infelizmente, aquele tipo de evento de glamour não tinha nada. Quero dizer, eu poderia colocar uma boa roupa... mas fui a obrigada a usar a mesma roupa que os integrantes da equipe: uma horrível camiseta cor vinho com o logo da escola e uma calça marrom clara. O vestuário da equipe contra a qual íamos competir, era parecido, mas a camiseta era azul escura. Porque eu estava transpirando de nervoso, cogitei prender o cabelo mas acreditava que ficava mais bonita com ele solto... então me controlei. Até porque, eu era a única garota na equipe e Amy não teria nenhum elástico para me emprestar, já que também raramente prendia o cabelo.
Chegamos uma hora e meia antes de o campeonato começar. Alguns assentos já estavam ocupados, e nenhum deles com Steven. Cheguei com a minha equipe, e cerca de uma hora depois, chegam os meus parentes. A minha família, incluindo os meus avós, vieram para me apoiar. Mas por enquanto nada do Steven. Subindo ao palco, meus pais foram os primeiros a me cumprimentar, seguidos dos meus avós.
– Não se preocupe demais, meu amor. Apenas tente se divertir – disse John, enquanto passava a mão pelo meu cabelo, notando minha tensão. Eu não estava tensa apenas por conta da competição, que devia ser a única fonte da minha tensão... não conseguia parar de pensar que a hora chegava e eu não via Steven.
– É, não se preocupe, nerd. Vai se sair bem – falou Hudson.
Em circunstâncias normais, eu o pediria que não me chamasse assim, mas estava nervosa demais para me importar. Com Melody no colo, Amy olhou para Jacop e Liv.
– Muito bem, crianças. Desejem boa sorte à sua irmã e vamos deixá-la se preparar...
Minha testa se franziu por um instante.
– Hã, não. Não, fiquem, preciso de uma distração antes de começar...
– Você precisa se preparar – apontou Amy. – Vamos, crianças.
Sorrindo, John se virou para mim e me deu um beijo no alto da cabeça.
– Boa sorte, querida.
Tentei sorrir.
– Obrigada, pai.
Por um lado era bom que eles se afastassem; precisava me concentrar em avistar Steven e estar pronta no momento em que ele se aproximasse para nos cumprimentar...
Mas ele nunca chegou.
E perdemos. Voltando para casa, no entanto, o que realmente me deixava mal não era o fato de termos perdido. Não, quem ligava para aquele campeonato idiota?
Jamie já não respondia as minhas mensagens. E agora responderia muito menos, pois, no pico de minha frustração e raiva, mandei meus últimos pensamentos dizendo coisas horríveis.
Sem Jamie, eu não tinha mais ninguém.
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