010
Era certo que os gritos ensandecidos não eram de regozijo. O alvoroço, que veio a seguir, apenas comprovou o óbvio: uma tragédia acontecera. A mulher banhada de horror em sua face, já melancólica por natureza, carregava nas mãos a marca da morte, e, nos olhos, o reflexo do pesadelo que presenciara segundos antes de transpassar a porta da frente, aos berros.
— O que houve, Birgitta? — perguntou Freja, que estava pronto para dispensar os seus ajudantes e ir embora quando a cozinheira apareceu em desespero.
Os soluços impediam que qualquer palavra fosse compreendida pelos demais, estava claramente fora de si. Os gestos apavorados indicavam o interior do local, e, movidos pelas indicações ansiosas de Birgitta, os homens de confiança de Kristofer e Freja adentraram o lugar.
— Acalme-se! — Freja segurou com força os dois braços da senhora e olhou no fundo dos seus olhos, penetrando as pupilas da forma mais íntima que podia, a fim de que ela se acalmasse e dissesse algo que lhe fosse realmente proveitoso diante de toda a balbúrdia.
— Ele... ele... ele...
— O que houve com ele?
A mulher contraiu a face e voltou o rosto para baixo, deixando que as lágrimas desabassem de suas bochechas carnudas e bamboleassem até o chão.
— DIGA! — ordenou Freja, já sem nenhum resquício de paciência.
— Ele está morto! — ela exprimiu com a voz entrecortada.
O rapaz a abandonou como um pedaço de pano que não serve mais para uso, deu dois passos para trás com as mãos na cabeça e, em seguida, uma meia volta. Foram necessários alguns segundos até que Freja recuperasse completamente os sentidos. Quando aconteceu, percebeu seus companheiros saírem da casa do Guia. Todos os quatro carregavam a mesma expressão de assombro, os olhos esbugalhados estampavam as faces emolduradas por gotas frias de suor que escorregavam lentas pelas peles avermelhadas. A saliva engolida de tempos em tempos mostrava o quão perturbadora havia sido a cena presenciada por cada um dos indivíduos.
Alguns dos moradores daquela parte da aldeia se aproximavam curiosos. Os sussurros lançados entre eles preenchiam a cabeça de Freja de uma forma ensurdecedora. Ele tapou os dois ouvidos e correu para dentro, desviando-se dos demais com brutalidade. Não sabia o que procurar, nem onde, mas tinha consciência de que não poderia mais esperar que tudo se solucionasse em um passe de mágica.
Assim que pôs o pé sobre o primeiro cômodo, Freja sentiu uma corrente de ar embater em seu corpo fatigado. Junto dela, o odor azedo invadiu suas narinas e o rapaz teve de tapar os lábios às pressas, a fim de conter a ânsia que tomava forma em seu estômago. Sentia o ácido subir por sua garganta e aquilo sufocava os seus pensamentos. Guiado pelo aroma putrefato, o jovem tomou direção dos fundos, onde ficava localizado o quarto do líder da ilha.
Freja precisou conter o urro de pavor que conseguiu saltar de suas cordas vocais em direção ao exterior de seu corpo. A figura de Solveig lançado ao chão era pior que qualquer crueldade já presenciada por Freja. O Guia não mais se assemelhava a qualquer ser humano, em suas cavidades oculares existia apenas um vazio mórbido. O rapaz indagou-se o que teria causado tudo aquilo, já que parecia irreal que uma queda ocasionasse todas aquelas fraturas. As extremidades dos ossos mais extensos estavam expostas, como adagas afiadas que rasgavam a pele de dentro para fora.
Os lábios pálidos eram o canal que levava o que restara de sangue para o lado externo do corpo, expulsando-o em um pulsar frenético.
Os passos de Freja se arrastavam pelas tábuas do solo, seu interior resistia à aproximação, mas sua mente corajosa insistia que ele deveria chegar mais perto e desbravar cada pedaço humano abandonado como cadáveres lançados aos urubus.
Colocando-se de joelhos, Freja conseguiu observar melhor cada traço que compunha o corpo desfigurado de Solveig. Não obstante, algo, ainda mais anormal que todos os outros detalhes, destoava em meio aos cabelos grisalhos daquele homem. Existia, do lado esquerdo de sua cabeça, uma sequência de rabiscos paralelos, eram cinco. A única diferença entre eles era o pequeno traço que partia o primeiro ao meio. Era como a contagem dos dias feitas na ilha, cada traço repartido representava um dia a menos, mas, naquele caso em específico, significava algo pior. No instante em que estendia o braço para tocar o corpo de Solveig, Freja teve um flash de memória que o carregava diretamente à cena que acontecera minutos antes da morte do Guia da aldeia. Podia ouvir sua voz, sentir o cheiro do suor e a sensação de estar agarrado ao livro que Kristofer encontrara na floresta. O rapaz afastou os músculos lentamente, engolindo a saliva em meio à acidez que, àquela altura, já estava a queimar os seus órgãos internos. Freja sentiu a energia pesada que aquela lembrança trouxera e não pôde imaginar outra coisa: o livro fora o causador daquela situação assombrosa.
O jovem levantou-se às pressas, temia que, permanecendo ao lado do homem morto, sofresse as mesmas consequências. A epifania que tivera fê-lo estremecer, seus nervos sucumbiam ao estado de temeroso e os olhos úmidos brilhavam. Freja tateou a parede atrás de si e caminhou até o fim do corredor, na direção da saída, com uma das mãos sobre a boca. Não costumava rezar, sempre creu que oração não lhe traria nenhum resultado visível, mas, naquele instante, murmurava preces afoitas e desesperadas.
Quando ultrapassou o limite da varanda, Freja sentiu como se houvessem arrancado-lhe toneladas de angústia do peito. Movido pela pressa de afastar-se daquele local, o rapaz correu, desviando-se da pequena multidão que se formara do lado de fora, e desapareceu em meio às casas que circundavam a residência do Guia, como muros. Nem mesmo os gritos dos seus jovens companheiros foram o bastante para que ele voltasse. Eles necessitavam de um rumo, alguém que lhes dissesse o que fazer na ausência de Kristofer. Estavam acostumados a serem guiados, todavia, Freja tinha apenas uma certeza: não pisaria nunca mais naquela casa, ou tocaria aquele livro.
Os cabelos escuros e compridos recebiam um carinho especial. Os dedos macios e finos escorriam pelas mechas aromáticas como água em cascata. Mesmo que fossem a sua maldição, Aleyna gostava de cuidar deles. A moça estava compenetrada na tarefa que designara a si mesma, quando ouviu o som familiar dos sapatos do pai, os passos estavam mais rápidos que o normal.
— O que foi, papai? — questionou, observando a figura do homem atravessar a sala, apressado.
— Não sei muito bem, mas aconteceu alguma coisa com Solveig — explicou enquanto abria um de seus baús, no canto do cômodo.
— Precisa de minha ajuda? — ofereceu ela, solícita.
— Não! — ele respondeu em tom grosseiro.
— Acalme-se, pai. Eu só pensei que...
— Você pensa demais, Aleyna. — Maat levantou-se, carregava dois frascos em suas mãos, que foram postos dentro de uma sacola de pano sustentada por seu pescoço, que pendia sobre seu ventre.
— Como soube? O senhor viu? — ela indagou, a curiosidade corroia-lhe as entranhas.
— Não. Estava voltando para casa e aquele rapaz, o que anda com Kristofer — Balançou as mãos —, estava desesperado, me disse meia dúzia de coisas sem muito sentido e pediu para que eu mantivesse vocês a salvo.
— E por que o senhor vai até lá? Pelo que acaba de dizer, é demasiado perigoso.
— Não me faça perguntas, agora. — Maat deu meia volta e começou afastar os recipientes que residiam na prateleira à sua frente. Depois de pegar três deles e os direcionar ao mesmo local que os anteriores, o curandeiro volveu o olhar à filha e prosseguiu: — Fique com Elissa, cuide da sua irmã e não saiam daqui até que eu retorne. Ouviu?
A moçoila sacudiu a cabeça para cima e para baixo, em obediência. Por mais que o ensejo de correr porta afora e descobrir o que se passava fosse cortante, não poderia deixar a pequena sozinha ou desapontar o pai. Então, o que fez foi apenas mirar o olhar do pai, repleto de segredos, e dizer:
— Tome cuidado, eu te amo.
— Eu também — Maat respondeu, sentindo a boca seca.
O curandeiro saiu afoito, e, em questão de segundos, apenas o seu cheiro permaneceu, era como se sua presença ainda estivesse ali.
— Aleyna, onde o papai foi? — Elissa surgiu da cozinha, carregando uma maçã mordida na mão esquerda.
— Ele foi — A moça olhou para porta e recordou o desespero do progenitor antes de deixar a casa — ajudar os rapazes de Kristofer com um machucado. — Sorriu.
— Isso é porque o moço estava chorando? — a pequena perguntou com a boca cheia, os dentes diminutos esmagavam cada partícula do fruto adocicado.
Aleyna sentiu um nó se formar em sua garganta e descer dolorosamente até o estômago, onde um frio incomum se instalou de imediato.
— É. — A jovem pálida sentou-se sobre o baú do pai e puxou a irmã para que se acomodasse em seu colo. — Ele estava triste porque o amigo dele se machucou — disse a moça, com o tom de voz brando, como se banhasse as palavras em mel. — O papai foi ajudá-lo para que ele fique bem e o moço não chore mais. — Os dedos suaves de Aleyna juntaram os cabelos de Elissa e os acomodaram de um lado só do pescoço da criança. — Como foi o passeio, Eli?
— Legal. A Prudence disse que vai fazer um vestido bem bonito pra mim. Pedi que fosse igualzinho o seu. — A mais nova mostrou os dentes alvos, limpos pela maçã que comera, deixando a face corada ainda mais adorável pelo sorriso estampado.
As duas se encararam cúmplices.
— O que acha de me ajudar com a sopa para o jantar? — perguntou a mais velha.
— Eu escolho os legumes! — disse Elissa, esquecendo-se completamente do assunto anterior, para o alívio de Aleyna.
A irmã mais velha segurou a mão de sua pupila e a guiou até a cozinha, precisava dissipar o clima que se instaurou e tornar a casa um lugar aconchegante novamente. Uma boa sopa costumava resolver esse tipo de questão, ela esperava que fosse o bastante.
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