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XVI. Andança

 Era nosso primeiro dia de aula após a tempestade.

A mãe nos ajudou a acordar e fomos ao banho enquanto ela nos preparou o café da manhã.

— Sua mãe sairá, mas deve chegar para o almoço. — A mãe me disse. — Quero que tomem cuidado e, qualquer coisa, já sabem o que fazer, não!?

— Voltamos para casa. Se for perigoso, gritamos — falei.

Ela apenas assentiu com a cabeça e se serviu com o café. Comprara pão, que estava bem quentinho, mas ela não comeu, nos acompanhando apenas com uma xícara.

Terminando de comer, fomos ao banheiro.

— Pronta para voltar ao colégio? — perguntei para Aline enquanto escovávamos os dentes.

Ela apenas respirou fundo, assentindo com a cabeça.

— Prometo que estarei lá para te proteger! — sorri-lhe. — A gente pode chamar aquele menino que sempre brigou por você, aposto que ele não vai deixar ninguém chegar perto.

Ela negou com a cabeça.

— Tudo bem! — dei de ombros.

O menino sempre foi um doce com ela. Ele era, talvez, a criança mais pobre do colégio; seus pais foram mortos por dívidas com quem não devia e a avó assumiu seu cuidado.

Ele se chamava Gabriel, Biel para a maioria. Devia ter um ou dois anos a mais do que nós e não ia sempre ao colégio dada a necessidade de cuidar de casa, da avó, tentar trabalhar.

Thiago até costumava ajudá-los, mas nem sempre essa era uma ajuda que saía de graça, então Biel foi o primeiro menino da minha idade que vi andando com uma arma do seu tamanho.

Não entendia a cena com a gravidade que deveria, mas ainda me entristecia pensar que, de um dia para o outro, toda uma vida poderia ser colocada em cheque.

Caminhamos bem devagar ao colégio. Aline parecia nervosa, abraçava a mochila a sua frente e esfregava as mãos uma na outra, não olhando tanto para frente.

Até puxei assunto, falando frivolidades e ela conseguiu conversar, se perdendo algumas vezes e silenciando — algo que me preocupou, mas me pareceu inevitável.

Cumprimentei a todos por quem passei quando cheguei no colégio, andando de braços dados com Aline. Foi atípico observar o sorriso do menino cabisbaixo ao ver Aline, porém seu sorriso apagou rapidamente, talvez pela tristeza dela.

Nós nos juntamos a aula e foi bem complicado.

Era a tal da quinta série e, quando a professora começou a lecionar, ficou claro no semblante de Aline que ela não fazia ideia do que a professa tentava ensinar.

Algumas vezes me pediu para perguntar, temendo que outros a olhassem; porém, após a vigésima pergunta, silenciou. Bastaram cinco minutos de silêncio e ela começou a chorar.

Quando todos perceberam e a olharam, seus olhos arregalaram e ela levantou a cabeça, parecendo ter falta de ar.

Tentei acudi-la. Desesperado, Biel correu para ajudar, pegando-a para tirá-la da sala — deu para ouvir a comemoração dos alunos pela ausência da professora.

Uma falta de empatia bem exótica, porém habitual...

A professora guiou Biel até a diretoria, instruindo-o a sentar Aline numa cadeira. Assim que ela agradeceu, Biel apenas saiu — apesar de parecer nitidamente aflito.

Ficou nítido que a professora não sabia muito como ajudar, mas bastou estar longe de todos para Aline se acalmar.

— Posso ligar para alguém vir levá-la ao médico. — A professora disse. — Sua mãe está em casa?

— Não, saiu. — Aline falou. — Só chega para o almoço.

— Então, você espera aqui até a hora da saída, tudo bem?

— N-não! — A voz de Aline estremeceu e os olhos marejaram. — Aqui, não! — insistiu, olhando ao redor.

— Posso ficar com ela. A gente vai ao pátio e espera — falei, olhando a professora, que parecia já ter me esquecido.

— Leva ela enquanto falo com a diretora.

Aproximei-me de Aline para estendê-la a mão e ela pegou, aceitando minha ajuda para levantar e seguindo comigo.

— Melhor!? — Foi a pergunta de Biel ao nos ver.

Ele estava sentado em frente a porta e se levantou rápido.

Aline assentiu com a cabeça, olhou para o chão e as lágrimas que bailavam em seu olhar caíram.

— Obrigada... — Sua voz embargada pelo choro soou.

— Quer ajuda, Luma? — Ele me ofereceu.

— A gente vai ao pátio, se quiser vir — dei de ombros. — Não sei se posso precisar de novo.

— Eu ajudo, 'pô. — Ele disse, nos acompanhando.

— Por que chora, Aline? — perguntei.

— Não... sei...

A resposta me intrigou, mas eu não insisti.

O pátio era extenso. Tinha a parte fechada, as paredes para o lado de fora tinham aqueles tijolos com buracos e alguns bancos eram distribuídos, perto desses tijolos.

O lado de fora não tinha assento.

A velha porteira estava sentada numa cadeira, perto do portão fechado, com a cabeça recostada na parede. Parecia estar cochilando, afinal, não nos repreendeu quando saímos.

Sentamos ao chão e Biel optou por ficar um pouco distante. Abracei Aline e ela apenas escondeu o rosto em mim.

Eu estava bem aflita, mas não perguntei, só tentei me mostrar presente. Ela continuou chorando, em dado momento decidiu falar e se mostrou chateada por não saber nada.

Ficou apavorada quando todos a olharam e até pensou que eles já sabiam do ocorrido, mas o primeiro fato foi justamente não entender nada da aula, segundo um de seus murmúrios:

— Sou muito burra!

Poderia ser um conjunto de várias coisas, unidas para atacá-la — talvez a mãe já esperasse... por isso, chegaria cedo.

— Não sei o que houve — disse Biel enquanto eu servia água após o choro —, mas não se sinta burra. Também não entendo bem o que aquela mulher fala... faz parte, eu acho.

— Você tem dificuldades para vir... é normal! — Aline falou. — Eu não... estava indo para um lugar horrível.

— Você ficou esse tempo todo indo para um inferno na terra, Aline, não para um colégio. Não tinha como aprender nada. Ajudo... se precisar, ajudo também, Biel — ofereci.

— Não vou dar trabalho, não. — Ele sorriu. — Valeu!

O silêncio voltou a imperar até que, pouco antes do sinal bater, a porteira despertou, deixando o portão aberto para o horário da saída — momento que os matadores de aula fugiam ou chegavam para fingir que passaram a manhã no colégio.

A professora nos liberou e Biel nos escoltou até em casa. Caminhando às nossas costas, parecia um cão de guarda.

— Cuidado... se precisar, sabem onde me achar! — Ele falou ao se aproximar da minha casa. — Até amanhã, se der.

— Até, obrigada! — sorri-lhe.

Aline lhe sorriu de canto de boca e ele tomou uma das vielas para subir na direção de sua casa. Chegando em casa, eu a mandei direto ao banho e peguei chocolate na geladeira.

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