Capítulo XVI - Amores Passados
Louis encarava o assoalho na esperança de disfarçar o próprio olhar desconfiado. Mesmo que aquela seja a sua verdadeira mãe, ele ainda se lembrava do encontro pouco agradável com Leshen e na forma como o bruxo manipulou seus medos.
A besta infernal roubou o prazer de conhecer Flora e o inevitável aconteceu: Louis sequer respondeu o convite tentador para tomar um chá. Para ele, o sentimento de estranheza permanecia. Para Flora, aquele encontro era um presente.
Nem na época em que ela era uma Guardiã do Tempo, Flora nunca sonhou que um dia veria o filho. Nem em incontáveis passados isso jamais passou por sua cabeça. Era uma oportunidade única e saber que Louis estava ali, em carne e osso, a enchia de felicidade.
Tomada pelo sentimento avassalador de uma mãe, Flora observou as feições do filho e se deixou levar pela semelhança entre os dois. Louis é tão lindo quanto ela e seus trejeitos enfatizam tamanha familiaridade.
Uma lágrima escorre pelo seu rosto e ela permanece calada. Há uma barreira invisível que separa o abraço dos dois e Flora sabe que precisa romper isso. Se a atitude não partirá do Louis, terá de partir dela, e então ela tenta.
— Posso te dar um abraço? —Sua voz soa um tanto aflita pelo medo de ser rejeitada.
Louis hesita, mas sente algo dentro de si o empurrar. Uma voz inquieta o diz para aproveitar o momento porque ambos precisam disso. Flora, por ser uma mãe cujo o sonho fora roubado por mãos sedentas, e Louis, por ser o filho roubado pelo destino.
Num movimento indelicado, ele corre em direção à Flora e envolve a mãe num abraço caloroso, recheado pela saudade por alguém que ele sequer conheceu. Ali a mágica aconteceu e os dois desabaram em meio às lágrimas teimosas.
— Você não sabe o tanto que eu sonhei com isso. —Flora segura o rosto de Louis. — Com esse encontro. Poder te sentir era o meu maior desejo.
— Você é real, mãe? —Os olhos de Louis ficam trêmulos. — É você mesmo?
— Sim, filho. —Flora sorri. — Eu sou real.
A barreira invisível entre dois é quebrada e ambos os corações começam a bater em sincronia, indicando que a harmonia se fez presente. O amor de uma mãe rompe qualquer obstáculo e a saudade de um filho dá forças para esse sentimento poderoso.
Aquela desconfiança sumiu e Louis se permitiu ser tomado pelo abraço da mãe. A brisa leve bateu novamente no sino dos ventos e a música gerada acalmou os ânimos. O tempo era curto e eles sabiam disso, mas fariam valer a pena cada segundo gasto.
— Esse chá tá com um cheiro maravilhoso! —Louis disse em meio às lágrimas. — É de camomila?
— Sim, sei que é seu favorito. —Flora ainda sorri, incrédula com o presente que lhe foi dado. — Vamos, fiz uns biscoitos também.
— De chocolate?
— Chocolate com menta.
Normalmente, é a vó que desvia o neto do caminho saudável. Já aqui, a Flora cumpre tanto o papel de vó quanto de mãe. Ela conhece cada gosto do filho como se visualizasse uma aba com tais informações.
Mesmo sem estar presente, ela nunca deixou de acompanhar os passos do Louis. Para ela, foi gratificante ver o filho crescer, não importa o quão distante estivesse.
— Tenho tantas coisas pra te perguntar. —Louis fala com a boca cheia. — Não sei nem por onde começar!
— Comece pelo começo, filho. —Flora dá um gole generoso no chá quente. — Vai ser um prazer responder suas dúvidas.
Louis repousa a mão no queixo e organiza os pensamentos no mesmo instante em que devora mais um biscoito. Seu chá está na xícara, mas ele decidiu esperar até esfriar.
— Por que você partiu quando eu nasci? —Essa pergunta soa como flechas perfurantes. — Teve alguma complicação no parto?
— Sim e não. —Flora pega um dos biscoitos. — Eu também fui uma Guardiã do Tempo e essa tarefa não foi fácil.
Louis observa atento e tenta acompanhar o ritmo sereno da mãe. Suas palavras são tão doces quanto o mel e ele fica perplexo, afinal, nunca conheceu alguém com tamanha paz dentro de si.
— Antes de você nascer, eu travei uma batalha contra o guardião amaldiçoado. —Flora continua. — Eu nem sabia que tava grávida, acredita?
— Esse guardião amaldiçoado... —Louis franze as sobrancelhas, deixando o ódio transparecer. — Quem é ele?
— Ele adota uma nova forma física sempre que um novo Guardião do Tempo é escolhido. —Flora responde. — Na minha época, seu nome era Marcus.
— Ele controla a realidade, então já era de se esperar. —Louis finalmente prova do chá. — Ele é poderoso?
— Dizem que ele está vivo desde a caça às bruxas. Não é poderoso, mas tem bastante conhecimento acumulado.
— E isso é possível? Digo, são mais de seis séculos de existência.
— Teoricamente, não. —Flora suspira. — Ainda mais se levar em conta a maldição.
— Maldição?
— A Maldição da Redenção. —Flora considera pegar outro biscoito, mas percebe que há pouco e desiste. — Vou te contar o que sei...
Quando os primeiros guardiões foram escolhidos, o Código da Promessa surgiu. O ser superior, ou Deusa Primordial, deixou um conjunto de regras para trás e quem quebrasse o juramento, seria punido com a maldição. Uma dessas regras é cumprir com êxito a responsabilidade incumbida, não importa qual aspecto você domine, seja o tempo ou a realidade.
A Maldição da Redenção mata o seu portador lentamente, sugando a sua essência e o fazendo reviver uma dor indescritível, até que a sua existência seja apagada da história. Nada e nem ninguém se lembrará que você já existiu, nem mesmo quem você mais amou.
Reza a lenda que um Guardião do Espaço estava cansado da maldade humana e um dia se deparou com um pobre garoto num beco qualquer. Era noite e um grupo de valentões espancavam a criança com socos e pontapés. Tomado pela raiva, ele desintegrou o grupo e viu que o menino estava beirando a morte, e só havia um jeito de salvar aquela alma.
Sem pensar nas consequências, o Guardião do Espaço transferiu voluntariamente o seu poder para àquele garoto, quebrando o juramento que havia feito e dando início ao primeiro relato da maldição. Foi um ato nobre, mas imprudente porque nenhum guardião pode interferir no livre arbítrio da criação divina.
— Então a Deusa Primordial decidiu punir a vítima da história? —Louis debocha. — Me parece bem sensato da parte dela.
— Nós nunca entendemos o propósito dela, nem mesmo o que a levou se repartir e dividir o próprio poder com a gente. —Flora toma o último gole do chá. — Só sei que precisamos manter o ritmo da história até o fim dos tempos.
— Bacana, fui jogado no meio disso sem nem saber que existia uma tal Deusa Primordial. Ela sabe bem o que faz.
— Os seus poderes não estavam nos planos dela, filho. —Flora segura a mão do Louis. — Ela nunca quis que você se tornasse um Guardião do Tempo. Isso só aconteceu porque o guardião amaldiçoado manipulou os eventos.
— E qual foi o objetivo dele ao fazer isso? Eu não entendo.
— Ele quer o sangue de um Guardião do Tempo para se curar da maldição e todos nós sabemos o risco disso.
— Eu não sabia. —Louis arqueia a sobrancelha.
— Aí que entra o plano dele. —Flora se ajeita na cadeira. — Eu deveria treinar outro pupilo pra receber esses poderes e esse pupilo saberia da ameaça que é o guardião amaldiçoado.
Louis para por um momento e reflete sobre o que acabou de ouvir. Aos poucos, as peças se encaixam e ele percebe a problemática nas entrelinhas.
— Sem o devido treinamento, ele manipularia o próximo guardião. —Louis suspira. — Mas por que eu?
— Porque o próximo seria um desconhecido, ele levaria décadas pra descobrir a identidade e a gente sabe que ele não tem tanto tempo assim.
— Então o guardião amaldiçoado é alguém próximo a mim?
— Eu temo que sim... —Flora sente o coração acelerar. — Talvez ele esteja tão próximo que já entrou na sua mente.
Louis arregala os olhos com a revelação e começa a teorizar sobre os suspeitos. Seu corpo hiperventila à medida em que ele analisa os perfis. Adrian e Leni não são, afinal, antes do acidente que aconteceu na base militar, a Evelynn desapareceu e havia alguém do outro lado do portal alaranjado.
Mesmo que ele descarte a possibilidade, a probabilidade de ser um dos dois é grande. Quem mais esteve ao lado dele durante os últimos dias? Sua mente está prestes a colapsar e os suspeitos são poucos.
— A Deusa Primordial não vai intervir nessa situação? Digo, isso é problema dela. —Louis debocha novamente.
— Se ela fosse, já o teria feito há bastante tempo. Eu acredito que isso seja um teste, talvez ela esteja buscando motivos pra desistir da criação. —Flora responde.
— Como se já não tivessem motivos o suficiente. —Louis sorri irônico. — E o que eu faço pra deter ele?
— É melhor nem se aproximar. Se ele tiver a quantidade necessária do seu sangue, nem eu sei o que acontecerá.
— Ele já tem um pouco, aliás.
Flora fica calada e observa Louis incrédula. Dentre todos os guardiões, ele definitivamente é o mais atrapalhado, mas não pode julga-lo por isso. Louis não recebeu o treinamento e nem um manual de instrução, ele só foi jogado às cegas e sozinho.
— Só fique longe, ok? Cedo ou tarde, a sua áurea vai atrás do conhecimento necessário e até isso acontecer, o importante é se manter seguro.
— Falando nisso, tenho uma coisinha pra te contar. —Louis sorri sem graça e com medo. — Ela meio que tem vida própria e engoliu uma quantidade significativa de magia de sangue.
— Santo pai. —Flora sente a pressão cair. — Como e por que você fez isso?!
— Eu ia morrer, mãe! —Louis se exalta.
— Magia de sangue é proibida, nem mesmo as bestas infernais ousam usá-la.
— E tem como extrair algo de bom nisso?
— Você tá fadado a sugar a essência de tudo o que é vivo, Louis. —Flora suspira. — Você é a Maldição da Redenção em pessoa, praticamente.
— E tem algum jeito de me livrar disso? Digo, não quero viver como um sanguessuga ambulante.
— Você vai precisar da ajuda do Wendigo.
— Vish.
Flora decifra a mensagem subliminar de Louis e percebe que ele de fato é o pior guardião que já existiu, mas se mantém calada por enquanto.
— Sobrou alguma besta infernal pelo menos?
— O Nexu e o Slyzard. —Louis coça a cabeça.
— O Slyzard não vai te ajudar nem se você implorar. —Flora teoriza. — Só te resta o Nexu e eu espero que dessa vez você faça a coisa certa.
— E o que eu devo fazer então?
— Você precisa levá-lo de volta para o inferno. Lá, ele vai se recuperar e talvez possa te ajudar. —Flora se levanta e enche um copo com água. — Somente um talvez.
— E como eu faço isso?
— As bestas possuem uma língua própria. —Flora repousa a mão no queixo. — Acho que a frase é "Aka libe no".
— Eu ouvi isso diversas vezes, inclusive bem antes de cair do avião.
— Era o pedido de socorro delas. As bestas são mais humanas do que aqueles que as adoram, Louis. Elas estão corrompidas pela perversidade humana, matá-las não é a solução.
Louis hesita e não responde. O sentimento de culpa inunda sua mente e ele percebe que desde o começo podia ter feito diferente. O Demogorgon tentou avisar, mas em vão... Ele foi o único que saiu do transe e conseguiu emitir um alerta, e mesmo assim acabou morrendo.
A vida na ilha é banhada em sangue e a brisa leve bate novamente no sino dos ventos, anunciando que Louis precisa voltar para o Lugar Nenhum.
— Vá, filho. —Os olhos de Flora lacrimejam. — A ilha precisa de você.
— Mas eu não quero ir, mãe.
— Mas você tem que ir. Seja o guardião que esse mundo precisa.
— Eu não pedi por nada disso. —Louis volta a chorar.
— Eu sei que não, mas a vida é assim. —Flora sorri e tenta confortar o filho.
Ela sabe que Louis foi até ali com um propósito. Desde o começo, ela sabia o que Norman havia feito e que o único jeito de consertar tudo era deixando ela partir, mas só depois de realizar seu maior sonho: conhecer o filho.
Flora também sabe que Louis não imagina o que vai acontecer com o pai e não pretende contar. Se ele souber, vai se recusar a voltar porque Louis ainda é egoísta e precisa de tempo para amadurecer.
— Ao menos um último abraço? —Flora pede e estende os braços.
— Promete que vamos nos encontrar de novo? —Louis corre para os braços da mãe.
— Prometo. —Flora beija a cabeça do filho.
Louis permanece imóvel, apenas sentindo o calor e o amor que somente a sua mãe é capaz de proporcionar. Ele fecha os olhos na intensão de partir e sente o coração de Flora ficar cada vez mais distante.
— Sobreviva, Louis. Sobreviva. —A voz dela ecoa.
A dor daquele momento o consome por completo, até que ele não sente mais o calor da mãe e nem a calmaria daquele lugar. O aconchego foi trocado pelo caos que só a Névoa Negra é capaz de proporcionar.
— Pai? —Louis desaba em lágrimas. — Ela é incrível!
— Eu sei, filho. —Norman acaricia o cabelo de Louis. — Muito obrigado.
Sem mais nenhuma palavra a dizer, o corpo físico de Norman logo se esvai junto do nevoeiro amaldiçoado, fazendo Louis ir de encontro ao chão e às cinzas. Seu pai não estava mais ali e nem a sua mãe, e isso o fez gritar tão alto que até as paredes do castelo vieram a tremer.
Adrian e Leni escutam o berro e correm em direção à biblioteca. Eles se deparam com Louis aos prantos e não entendem o motivo, mas não pensam duas vezes antes de abraça-lo. Aos poucos, as peças se encaixam e eles percebem que a Névoa Negra sumiu, largando o castelo e sua ruína.
Norman se sacrificou em prol da salvação deles e provou que nunca foi o monstro que os nativos diziam. Leni se arrepende do ódio que nutria e agora vê a burrada que o cegou por tanto tempo.
Flora foi apenas uma mãe que se recusou a ir embora sem conhecer o filho e Norman foi apenas um pai e um bom marido, mesmo enfrentando a dor do luto por vinte anos.
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