Capítulo XV - Dói Sem Tanto
Assim que o sol nasce no Lugar Nenhum e ilumina as ruínas do castelo, entrando em contraste com o tom preto e morto das almas acorrentadas à Névoa Negra, Louis desperta e vê que foi o único ali a perceber a chegada da claridade. Adrian e Leni ainda adormecem como duas crianças.
Um tanto atordoado por causa do sono, ele abaixa suas defesas e se levanta, indo em direção à janela do quarto para recuperar o fôlego. Aquele cheiro podre que veio com a chuva foi embora e deu lugar a aromas perfumados, o que é estranho tendo em vista o nevoeiro amedrontador que cerca o reino.
Louis olha para baixo e vê seu pai conversando com uma pequena porção de espectros, e o mesmo percebe a sua presença. Norman acena para os fantasmas e eles se dissipam em grupos, cada um indo para uma direção diferente.
— Vai descer ou pretende ficar aí em cima? —Norman sorri e chama pelo filho.
— Se nenhuma dessas almas me atacarem, eu desço. —Louis devolve o sorriso.
— Mais fácil você atacar elas.
Louis suspira e sente uma pontada de felicidade inundar seu coração. Ele finalmente achou o seu pai e sente que está pronto para sair desse maldito lugar, mas não antes de ter as respostas que precisa.
Norman ergue a Névoa Negra e ela forma uma escada que conecta a janela do quarto ao chão do pátio, e Louis desce os degraus confiante de que chegará seguro no solo.
— Está com fome? —Norman pergunta.
— Não muito, me acostumei já. —Louis responde. — Podemos conversar?
— Já não estamos fazendo isso? —Norman sorri novamente. — Venha, quero te apresentar algumas coisas.
Mais uma vez, Norman foge da real conversa que Louis quer ter. Era para ser algo tão simples, apenas algumas perguntas, mas Norman parece esconder algo. Talvez ele tema os questionamentos que o filho faça, afinal, Louis está confuso e mesmo que tente não transparecer, isso é um tanto óbvio.
Norman guia Louis pelos salões dos castelo e se não fosse pela Névoa Negra, o ambiente seria mais limpo e agradável. O aspecto pouco convidativo zomba daqueles que não fazem parte da corrente de almas e Louis entende o recado.
— O meu lugar preferido aqui é a biblioteca. —Norman aponta para uma grande porta.
— Tenho certeza que também seria o meu. —Louis se contenta.
— O fruto não cai muito longe da árvore, certo?
Norman atravessa a porta e Louis se esquece que é um humano, e bate com o rosto na madeira velha. Ele tenta disfarçar a vergonha e abre a porta, vislumbrando enormes prateleiras enfileiradas.
Aquele é o paraíso para uma pessoa apaixonada pela escrita e Louis se sente em casa pela primeira vez. O cheiro de livro novo atiça seu nariz e ele se maravilha com a possibilidade de devorar as obras.
Diferente dos outros locais do castelo, a biblioteca estava limpa e apresentável. Ali foi o único lugar que a Névoa Negra não ousou tocar, não há nem vestígios dela, mas por quê?
— Gostou daqui? —Norman se vira para o filho.
— Eu amei! —Louis exclama. — Aqui é fantástico.
— Foi o único lugar que eu consegui preservar. Por você e pela sua mãe.
— Eu te abraçaria se pudesse. —Louis suspira.
Norman não responde e sobrevoa até o último andar de uma das fileiras. Ele parece procurar por algo em específico e Louis o observa curioso.
— Achei. —Norman diz com um sorriso. — Véu do Anoitecer: Povo Além da Floresta.
— E que livro é esse? Nunca ouvi falar. —Louis pergunta perplexo.
— Eu também não sei, nem sei quem escreveu, mas é muito boa.
— Tem mais aí?
— Ah, um monte. —Norman abre os braços. — Baby don't hurt me, Anjo em Minha Vida, Êxtase, Life is Strange, A Rainha...
— Life Is Strange parece ser bacana, é sobre o quê? —Louis sobrevoa com a áurea e vai até o pai.
— Não li tudo, mas aparentemente é sobre um tal de Abner. Ele é sequestrado pelo Samuel, um riquinho, e obrigado a se casar.
— Comédia romântica? —Louis pega o livro.
— Tá mais pra um emaranhado de gêneros.
— Interessante. E esse aqui? —Louis aponta para outro livro.
— Renegada? Foi um best-seller na ilha. Esse é o último exemplar, é praticamente uma relíquia.
Louis folheia cada página de cada livro e termina a leitura em poucos minutos. De todas as vantagens que um Guardião do Tempo tem, essa é uma das poucas que ele com certeza vai abusar.
Os dois voltam ao solo da biblioteca e Louis continua observando o enorme cômodo. São tantas prateleiras que ele acaba se perdendo no meio delas, mas aquilo não o assusta. A ideia de ter tantos livros para ler o deixa animado, porém não o suficiente.
— Pai... —Louis volta à atenção para Norman. — É sério, precisamos conversar.
— Não podemos deixar pra outro dia? Tenho certeza que quando ver o jardim, vai se apaixonar. —Norman desconversa. — Lembra de quando você era criança e brincava no quintal da mansão? Eu ficava furioso por causa das flores.
— Eu não sou mais uma criança.
— Eu sei, só achei que seria uma boa ideia... —O semblante de Norman muda.
— Um dia podemos ir lá, ok? —Louis sorri sem graça. — Temos coisas mais importantes pra discutir.
— Você está certo. Eu temia que esse momento chegaria.
Louis suspira mais uma vez e pensa em como questionar o pai sem soar grosseiro ou apressado, e não encontra outra alternativa. O melhor mesmo é ser direto e curto.
Norman observa o filho e se prepara para contar a verdade, mesmo que seja dolorosa. Sua imprudência no passado gerou consequências árduas e cabe a ele lidar com elas.
— Como fazemos pra sair daqui? —Louis finalmente verbaliza algo. — Digo, como faço pra sair daqui com você?
— Não tem como. —Norman sente seu coração palpitar. — Eu estou preso à Névoa Negra.
— Tem que haver um jeito, eu não quero te perder. De novo não... —Os olhos de Louis começam a lacrimejar. — Você não faz ideia do fardo que foi acordar todos os dias sem saber se você estava vivo.
— Eu consigo imaginar e peço perdão por isso, mas eu fiz uma escolha sem pensar e agora tô colhendo os frutos disso. —Norman tenta apoiar a mão no ombro do filho e não consegue.
— Qual escolha, pai? O que você fez de tão horrível assim?
Norman suspira e fecha os olhos na esperança de elucidar, mas em vão. Sua mente decidiu abandona-lo naquele momento e ele sabe que cedo ou tarde isso aconteceria.
— Eu tentei reviver a sua mãe. —Norman diz com pesar na voz. — Eu vi a falta que a presença dela fez na sua vida e principalmente na minha, e achei que daria certo...
— Mas não deu, né? —Louis morde o lábio inferior.
— Sim.
— Eu aprendi a conviver com a ausência dela e tudo o que eu precisei era ter você ao meu lado.
— Comigo foi diferente, Louis. Eu a conheci e ela foi uma das pessoas mais incríveis que já pisaram nessa terra. —Norman se altera. — O amor nos faz cometer loucuras e um dia você vai entender isso.
Louis hesita e não responde. Ele não quer julgar o pai, mas a ideia de trazer alguém de volta à vida o amedronta. Estamos falando de algo anormal e a morte faz parte do processo. Amar também é deixar ir.
— Eu no seu lugar teria feito o mesmo. —Louis deixa um pensamento escapar.
— Agradeça por não precisar. —Norman responde. — Adrian e Leni são ótimas pessoas, cuide bem deles.
— Prometo tentar.
Louis sabe que não consegue cuidar nem de si mesmo, mas ao menos foi sincero. Adrian e Leni se tornaram pessoas únicas em sua vida e por mais que seus últimos dias tenham sido desgraças totais, ainda dá pra extrair algo bom.
— Então você está preso à Névoa Negra. —Louis continua. — Como faço pra te ajudar?
— Deixa isso pra lá. —Norman desdenha com a mão. — Ajude a si mesmo, você é a prioridade aqui.
— Não vou embora sabendo que você está sofrendo. Não é o meu papel como filho.
— Louis...
— Pai.
— Eu guardei um rádio de comunicação no meu quarto. —Norman diz. — Ainda tá funcionando, então essa é a sua chance de sair daqui.
— Mas como? A ilha formou uma barreira, Leni disse que ninguém entra e ninguém sai.
Norman para por um momento e reflete. O surgimento da Névoa Negra foi uma resposta da ilha à imprudência dele, então o Lugar Nenhum vê o nevoeiro como uma ameaça que precisa ser contida.
A única chance do Louis escapar é destruindo essa ameaça, mas se ele fizer isso, Norman será destruído junto já que está acorrentado à Névoa Negra.
Como ele vai fazer isso? Revertendo a tentativa falha do pai. Norman reconhece o próprio erro e sabe que o filho tem uma vida pela frente, então decide não compartilhar a parte dolorosa.
— Eu tenho uma ideia, mas preciso que você confie em mim. —Norman prossegue com as palavras.
— E qual seria? —Louis pergunta desconfiado.
— Debaixo desse chão, existe algo que chamamos de Fonte das Lamúrias e foi lá que eu tentei reviver a sua mãe.
— Você quer que eu reverta o processo da ressurreição?
— Basicamente. —Norman sorri. — Com o seu poder, não será difícil.
— Parece arriscado, mas tudo bem. —Louis suspira. — Tem certeza que isso vai dar certo?
— Eu disse pra você confiar em mim.
Louis confirma com a cabeça e deposita toda a sua confiança no plano do pai. Norman, por outro lado, finalmente volta a sentir sua humanidade retornar.
Ele cometeu um erro e nunca é tarde para reparar algo, mesmo que seja através do próprio sacrifício. No final das contas, Norman nunca foi o monstro que os nativos da ilha pensavam.
Ele foi apenas um pai e um bom marido. Alguém que não superou a dor do luto. Ele foi humano, do começo ao fim.
Norman guia Louis para o centro da biblioteca, em cima de um círculo feito de metal e que contém algumas runas desenhadas. Ele bate palma e as runas se acendem, e um som descomunal ecoa pelo lugar.
Aos poucos, o chão dentro do círculo começa a ceder e rebaixa o nível, como um elevador. Louis sente a água molhar seu pés até a altura do calcanhar e seu coração acelera pelo nervosismo.
A água está numa temperatura agradável e sua cor é tão viva que emite uma luz própria, e isso deixa Louis maravilhado. Aquela água carrega uma corrente de emoções e sentimentos, como se fosse um coração ardente.
— Estarei te esperando. —Norman se despede do filho. — Se jogue na água e sinta o calor dela te envolver.
Louis confirma com a cabeça e obedece o comando do pai, sem perceber que Norman deixou uma lágrima escapar.
A água inunda o pulmão de Louis e aos poucos o faz repousar serenamente. O silêncio embaixo da fonte o faz sentir o próprio coração batendo e isso o acalma.
O tempo repentinamente para e Louis já não sente o calor da água. Uma brisa leve bate em seu rosto e ele abre os olhos, vislumbrando o céu azul e o sol.
Em seguida, ele se levanta da grama e vê uma das paisagens mais lindas que existem: um campo florido e vasto. Ali habita a vida e transparece tanta paz.
Atrás de si, tem uma casinha humilde e Louis caminha em direção à ela. Sua decoração é simples, mas tão rica ao mesmo tempo. Outra brisa bate no sino dos ventos que está na entrada e a porta da frente se abre.
Há uma mulher sentada na mesa da cozinha, como se esperasse por alguém, e então a chaleira faz barulho, indicando que a água ferveu.
— Venha, filho! —Flora diz animada. — Fiz um chá pra gente.
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