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Capítulo XIV - Névoa Negra

Dentre todas as coisas medonhas que Louis teve o desprazer de conhecer, a que mais o assustou foi, sem sombra de dúvida, rever seu pai na forma de um espectro.

As milhões de almas acorrentadas àquele pálido e frágil corpo, só sustentam a ideia de que Norman não existe mais e que todos os esforços de Louis foram em vão, mas para ele isso não importa.

O sentimento de revolta por ver o pai nessa situação fala mais alto e Louis corre na direção dele, na esperança disso não ser apenas um sonho. Ele só quer voltar para casa e viver como antes, quando era uma pessoa normal.

Na tentativa de dar um abraço em Norman, Louis se sente frustrado ao perceber que o espectro não possui um corpo físico. A representação metafísica daquilo que um dia existiu deixa Louis mais revoltado.

Suas mãos tocam o vazio da Névoa Negra em pessoa e sentem unicamente o ar denso, carregado de gritos dolorosos. Essa não era a sensação que ele estava habituado, tão pouco saber que Norman vaga assim agora.

— Filho! —Norman tenta retribuir o abraço e falha, revelando um sorriso sem graça. — Certas coisas não mudam, inclusive a força do hábito.

— Eu estive te procurando por tanto tempo. —Louis deixa uma lágrima escapar. — Por que você sumiu tão de repente?

— Isso é conversa pra outra hora. —Norman suspira. — Antes, quero festejar a sua presença.

— Mas, pai... —Louis insiste. — Eu mereço uma explicação, nem que seja da mais esfarrapada.

— Eu sei disso e também sei que você só acreditará em mim quando ver com os próprios olhos. —Norman franze a boca. — Me dê a chance de compensar tudo o que você enfrentou.

— Temos tanto pra conversar, você não faz ideia.

— A começar pelos seus interesses amorosos.

— Ahn? —Louis arqueia a sobrancelha.

— Seus namoradinhos tão te esperando. —Norman revira os olhos.

No instante seguinte, suas mãos gélidas se movimentam através da Névoa Negra e ela se curva ao seus pés, trocando o solo pelo nevoeiro amaldiçoado.

Norman é envolvido pelas almas atormentadas e elas subjulgam o ar ao seu redor, o fazendo levitar num punhado de magia negra.

— Eu não tenho nenhum namorado. —Louis responde. — Nem namorada.

— Não é o que eles me disseram. —Norman sorri e se afasta, dando espaço para Louis. — Afim de uma carona ou a sua áurea é soberba demais?

— Não sei do que você tá falando. —Louis desdenha e sobe na Névoa Negra.

Seus pés são agarrados por mãos do além e isso o amedronta, mas não o suficiente para recuar. Achar Norman não foi tão difícil, o verdadeiro desafio vai ser curá-lo dessas amarras espirituais.

Mesmo com tantos problemas pessoais, Louis ainda arranja tempo para ajudar qualquer um que precise dele. Leni e Adrian aparentemente estão seguros, então só lhe resta o pai e esse será seu foco.

A Névoa Negra os leva para longe, atravessando mais da metade da ilha. No horizonte, Louis enxerga um reino em ruínas e percebe que a causa é a mesma coisa que seu pai controla.

Sem tempo para teorizar, os dois pousam no solo infértil e os outros espectros parecem desaprovar a atitude de Sahara. Trazer visitantes sustenta a falácia de que o castelo se tornou um parque de atrações e isso não é bom para a moral.

— Não ligue pra eles. —Norman diz. — São só um bando de almas amargas.

— Meio difícil quando tem um monte de fantasmas me julgando. —Louis encolhe os ombros. — Fico me perguntando como você veio parar aqui.

— Às vezes nem eu sei. —Norman tenta esconder a verdade. — Mas não se preocupe, você e seus namorados são meus convidados.

— Já disse que não tenho namorados.

Os dois adentram no castelo e Norman é recebido por uma multidão esmagadora, e acaba se perdendo de Louis. Com o filho longe do seu alcance, ele ordena que um dos espectros o acompanhe até seus aposentos.

No caminho, Louis observa as paredes sendo comidas pela Névoa Negra e fica ainda mais perplexo sobre o quão bizarra as coisas têm sido. A progressão dos fatos foi linear e concisa, mas ainda assim não o bastante para Louis se acostumar.

— Descanse, forasteiro. —A voz da alma soa como vidros sendo arranhados. — Seu pai te verá na parte da manhã.

— Mas eu nem conversei direito com ele. —Os olhos de Louis transparecem tristeza.

Sem responder, o espectro o larga num quarto grande e ele enxerga Leni e Adrian na outra ponta, sentados de costas um para o outro. Ao perceberem a presença dele, eles se viram animados e comemoram.

— Achei que não nos veríamos de novo. —Adrian sorri. — Você tá bem?

— Lógico que tá bem. —Leni também sorri. — Se não estivesse, não estaria exibindo os músculos molengos.

— Isso foi graças ao ritual da Lua de Sangue. —Louis semicerra os olhos. — Se alguém fosse mais honesto comigo, eu teria evitado os caçadores.

— Perdão. —Leni responde. — A gente tentou voltar pra te resgatar, mas não deu.

— Ao menos você está vivo e nós descobrimos algumas coisas. —Adrian pega uma cadeira para Louis.

— Eu também descobri. —Louis se senta.

— Bom, quem conta primeiro? —Leni pergunta.

— Vamos falar ao mesmo tempo. —Adrian sugere. — Vai que ele sabe o mesmo que a gente.

— Por mim, tudo bem. —Louis suspira.

Os três juntam suas cadeiras em forma de círculo e Louis se pergunta se eles já sabem sobre a magia de sangue. Afim de não preocupar os amigos, principalmente Leni, ele decide guardar essa informação para si mesmo.

— Nós três somos almas gêmeas! —Leni e Adrian respondem uníssono.

— É isso mesmo! —Louis tenta acompanhar. — Espera, o quê?

— Não foi isso o que você descobriu? —Adrian questiona.

— Sim. —Louis engasga. — Digo, não... Descobri que...

— Que o quê? —Leni desconfia.

— Que... Meu pai está vivo e nós podemos voltar pra casa. —Louis disfarça com um sorriso sem graça. — Foi isso o que eu descobri.

— A gente sabe que você tá mentindo. —Leni continua. — O que você descobriu?

— Nada tão revelador, só aprendi a mudar a cor da minha áurea.

— Sério? Que foda. —Adrian se intromete. — Pra qual cor você mudou?

— Vermelho. Acho que combina mais.

Louis é um péssimo mentiroso, mas sabe que os dois entendem tão pouco quanto ele e que isso vai amenizar as perguntas, pelo menos por um tempo.

Leni, por outro lado, está familiarizado com a mentira e desconfia da história que Louis contou. Um bom caçador sabe no que deve confiar e sua intuição sempre o livrou de muitas enrascadas.

— Enfim. —Adrian comenta. — Nós três somos almas gêmeas e estamos conectados através de um fio, não nos pergunte o motivo. Apenas aceite.

— Tá explicado meu pai achar que nós somos "namoradinhos". —Louis debocha. — Vocês não podem abrir o bocão assim pra cada um que aparecer.

— Nós só contamos porque ele era o único que poderia te achar, deveria nos agradecer. —Leni provoca.

Adrian e Leni passam a conversar como se já se conhecessem há bastante tempo e Louis apenas observa o movimento de suas bocas. Pela primeira vez, ele sente que a sua família está completa.

Esse sentimento súbito o faz ser grato por ter conhecido os dois num momento tão inoportuno. O destino realmente sabe como por as pessoas certas no devido caminho.

— Eu até diria que gostaria de ter conhecido vocês em outra circunstância, mas não acho que eu seria tão sortudo assim. —Louis diz e interrompe a conversa.

— Bom. —Adrian se envergonha. — Aprendi a gostar de vocês.

— Já eu digo o contrário. Quero que vão embora logo. —Leni esconde o olhar.

— Nós sabemos que aí no fundo você gosta da gente, mesmo que só um pouquinho. —Adrian responde sorrindo.

— Quando sairmos daqui, quero que você venha com a gente. —Louis se vira para Leni. — Posso te mostrar o que é um mercado.

— Não sei se é uma boa ideia... —Leni tenta disfarçar seu semblante.

— Vai dizer que te sobrou mais alguma coisa nesse lugar? —Adrian fala.

— O Nexu ainda tá vivo e meu lar não foi liberto. Não posso simplesmente abandonar tudo e recomeçar no mundo de fora.

— Eu prometi te ajudar com isso, não vou embora sem antes concertar as coisas. —Louis segura o ombro de Leni. — Somos quatro agora, damos conta de uma besta infernal.

— Quatro? —Adrian pergunta confuso.

— Sim. Eu, você, Leni e meu pai.

— Quem dera fosse fácil assim, Louis. —Leni completa. — Enfim, até lá eu penso sobre a proposta.

Na verdade, Leni está com medo. Medo de ser rejeitado pelo mundo de fora e não se adaptar aos padrões. Ele está acostumado com a vida selvagem e com o fato de ser um caçador, mesmo que renegado.

Seu único desejo é entender o seu real propósito nessa terra e ele acredita que seja libertar o Lugar Nenhum das bestas infernais.

Norman corrompeu a ilha ao libertar essas criaturas e Leni nutre um ódio por ele, e sabe que precisa guardar isso para si. Todos nós temos motivações que nos fazem seguir em frente e se ele quiser ajuda, terá de cooperar.

Leni não quer magoar Louis. O sentimento por ele fala mais alto desde aquela revelação e o medo de expôr toda a verdade o consome lentamente.

— Aliás, o que aconteceu com seu pai? —Adrian indaga.

— Ainda não sei, mas vou descobrir. —Louis repousa o queixo sobre a mão.

— Não acha esquisito ele ter vindo parar aqui do nada e ter escolhido logo esse castelo mal assombrado pra morar?

— Tudo aqui é esquisito. —Louis enfatiza a frase. — Menos o Leni.

— No começo, ele era.

— Já falei que aquilo foi um mal entendido. —Leni revira os olhos. — Pessoas erram, não sabiam?

— Belo jeito de conhecer sua alma gêmea. —Adrian debocha. — Inclusive, Louis, quem é o seu favorito?

— Que pergunta idiota. —Louis responde.

— Não que eu esteja interessado nisso, mas fiquei curioso agora. —Leni fomenta. — Quem é o seu favorito?

Louis hesita e vê aquela borboleta azul entrar pela janela, voando serenamente até a porta. Ao cumprir seu objetivo, ela repousa na madeira velha e parece escutar atentamente, como se fosse um humano fofoqueiro.

O bater de suas asas novamente chama Louis e o hipnotiza por um momento, mas ele decide recusar o seu chamado mais uma vez. Era uma sensação estranha, mas reconfortante ao mesmo tempo.

— Ok. —Ele suspira. — Se vierem com chororô, eu jogo vocês pela janela.

— Não vamos. —Os dois respondem uníssono.

— Meu favorito é... —Louis faz um suspense com as mãos. — O Leni.

Nesse instante, a borboleta agita as asas e volta a voar, contornando o quarto em busca da mesma janela por onde entrou, deixando para atrás apenas o rastro do seu azul cintilante.

Louis sente um calafrio percorrer sua espinha, mas releva ao perceber que foi uma corrente de ar frio. A sensação estranha desaparece e logo o céu anuncia uma forte chuva.

— Mas por que ele? —Adrian franze as sobrancelhas. — Eu que te trouxe até aqui.

— Gosto igualmente dos dois, mas verdades sejam ditas, passei mais tempo com o Leni do que com você.

— Independente. —Adrian cruza os braços.

— Para de ser chorão. —Leni ri. — Se serve de consolo, vou mais com a sua cara do que com a do Louis.

— Perfeito, assim ninguém fica sozinho. —Louis ironiza. — Agora, vamos dormir. Quero acordar cedo pra arrancar informações do meu pai.

— Certo. —Leni e Adrian respondem uníssono.

Os três se aconchegam na enorme cama centralizada no meio do quarto e tentam dividir o espaço, mesmo que não tenha necessidade.

Leni acaba ficando com a parte esquerda, Adrian com a direita e Louis no meio. Não foi a melhor solução, mas bastará por uma noite.

Algumas velas se apagam conforme o vento assola, deixando o quarto pouco iluminado e revelando aparições nada agradáveis dos espectros.

O silêncio ensurdecedor toma conta do cômodo e nem mesmo as almas ousam dar um pio sequer. A chuva logo cai, molhando o solo infértil do castelo e fazendo um cheiro podre revirar o estômago do trio.

— Não tem como dormir com esse fedor. —Adrian cobre o nariz.

— Fedor? O que tá me incomodando são esses vultos. —Louis aponta para algo no teto.

Adrian olha para cima e se depara com o rosto desfigurado de uma mulher. Sua boca totalmente aberta, como se estivesse rasgada de canto a canto, ameaça engolir ele numa única abocanhada.

Seu olhar vazio faz Adrian criar paranóias e seus dedos ressecados estão grudados no teto, dando a entender que ela pode cair a qualquer momento.

Assustado, ele sente algo do lado da cama e um estalo o faz despertar. Logo, um ranger de dentes insuportável ecoa em seus ouvidos, até que algo salta da sombra e passa por debaixo da cama.

— Porra! —Adrian grita.

— Vira homem, Adrian. —Leni reclama. — Não dá pra dormir com uma marica berrando do meu lado.

— Desgraça. —Adrian retruca. — Então espanta esses bichos daqui.

— São espectros, anta. Não te tocariam nem se quisessem.

— Socorro! —Louis cai na gargalhada. — Eu vou passar mal.

— Você tá rindo porque não foi com você. —Adrian dá uma cotovelada de leve no braço de Louis. — Se é tão engraçado assim, sai do meio e deita no meu lugar.

Louis estava ocupado demais para responder e seus risos se tornam intensos, e a áurea responde à emoção. Sem perceber, ele envolve a cama numa redoma mágica, vinda da própria áurea.

Ela oscila, ameaçando se desfazer, mas estabiliza no mesmo instante em que as risadas cessam. Aos poucos, ela vai se fechando, tornando o espaço um tanto apertado para três pessoas.

— Louis. —Leni reclama novamente. — Desfaz isso.

— Eu não sei como. —Louis responde com a voz abafada. — Vocês vão me esmagar.

— Bem feito. —Adrian debocha.

Segundos depois, a redoma relaxa, deixando o trio no conforto de antes. Protegido de qualquer susto ou algum espectro inconveniente, Adrian agradece.

— Boa noite, finalmente. —Leni comemora.

— Boa noite. —Adrian e Louis respondem uníssono.

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