Capítulo XIII - Lua de Sangue
O sol nasce e ao contrário do que Louis esperava, o céu permanece escuro, mantendo a lua avermelhada lá no topo. É um fenômeno inexplicável e sua raridade jamais foi vista pelo lado de fora da ilha.
Todas as bestas infernais possuem uma ligação com a magia de sangue, mas a do Wendigo é especial. Ele é o único capaz de manipular ela com tamanha maestria e seu ciclo demonstra isso.
Após ser corrompido pela mesma magia e matar o feiticeiro Cedric, Louis se viu diante de uma tribo enfurecida, mas não o bastante para retribuir na mesma moeda.
Os caçadores o prenderam numa cela imunda, ao lado dos porcos, e ali ele ficou. As palavras de Cedric ecoam em sua mente e ele é o único que sabe que não pode ser oferecido para o Wendigo.
A magia de sangue que corre em suas veias pode ser fatal para meros novatos e se ele sobreviveu, isso significa que a sua áurea é mais forte do que ele imaginava.
A Lua de Sangue se aproxima e faltam poucas horas para o ritual ser iniciado, e sua inteligência o guia para um bom plano: propôr uma luta de igual para igual. Se a besta infernal busca vingança pela morte dos irmãos, ela não vai recusar.
— Ei! —Louis berra atrás das grades, chamando a atenção do caçador que o vigiava.
O homem finge não escutar, mas os berros se tornam mais altos e ele, inevitavelmente, avança com brutalidade até a cela, transparecendo ódio em seu olhar.
— Continue gritando assim e eu te mato aqui mesmo. —Ele responde.
— Traga seu líder até mim. —Louis diz confiante. — Eu tenho uma proposta.
— Você matou ele. —O caçador dá de ombros.
— Não tem um substituto?
— Ter até tem, mas você não tem direitos aqui. —O homem cospe no chão.
— Eu quero propôr um desafio pela minha liberdade. —Louis se agarra às grades. — Achei que os caçadores lutassem com honra.
— E nós lutamos, mas você não é um de nós. Não passa de um miserável portando um poder que mal sabe usar.
Os boatos sobre Louis ser um Guardião do Tempo correram rápido o suficiente. Embora isso seja perigoso, ele acredita na língua dos fofoqueiros e talvez alguém o ajude, afinal, ele é a chave para a salvação do Lugar Nenhum.
Antes que continuasse com as súplicas, uma mulher surge das sombras, acompanhada de outros dois caçadores. Sua roupa é diferente e tem um tom tão escuro quanto o preto que pintava a capa do Cedric, dando a entender que ela é uma pessoa de prestígio.
Sua pele negra e repleta de cicatrizes esbanja um passado notório, e suas tatuagens contam alguma história através dos seus respectivos significados.
— Vejo que tem bom ânimo. —Ela diz. — Não pude evitar ao escutar a conversa.
— Então me poupará dos detalhes. —Louis responde.
— Diga-me, qual o seu desafio?
— Quero enfrentar o Wendigo. —Louis suspira. — Em troca, vocês me libertam e me deixam partir em segurança.
— Tenho uma contraproposta. —A mulher sorri. — Aceito seu desafio, mas sob os meus termos.
Os três caçadores presentes ali arregalam os olhos. Eles têm medo de Louis vencer por causa da sua vantagem, mas confiam na inteligência da líder substituta, então guardam qualquer comentário.
— E quais são os termos? —Louis se desprende das grades.
— Você não poderá usar seus poderes, nem qualquer magia que tenha aprendido.
— Isso não é justo.
— Quer justiça? Faça por merecer, ou será entregue de bandeja. —Ela sorri novamente, dando de ombros.
— Espere. —Louis a encara. — Eu aceito a sua contraproposta.
— Perfeito. —A mulher se vira para os caçadores. — Preparem ele, o desafio acontecerá na parte da tarde.
Ela se retira, deixando apenas o cheiro do seu perfume para trás. Louis se desespera internamente, mas confia em si mesmo. Se ele já matou duas bestas, ele consegue repetir o feito memorável.
Os três caçadores o retiram da cela e o arrastam algemado até uma pequena tenda. Louis vê um punhado de armas rústicas, uma bacia de água e roupas de caça. Seja lá qual for a preparação, ele se mantém calmo e confiante.
Um outro caçador adentra na tenda e esse é diferente dos demais. Ele não possui tatuagens, nem cicatrizes e sua aparência é jovem. Talvez tenha a mesma idade de Louis, ou um pouquinho mais.
Seus braços finos e desprovidos de qualquer músculo tremem com medo, e suas mãos não param quietas. O garoto hiperventila ao ver Louis e isso explica o receio súbito. Os outros três caçadores se retiram, deixando os dois sozinhos.
— E quem é você? —Louis o indaga.
— Não tenho permissão pra falar contigo. —Ele encolhe os ombros.
— Você acabou de falar. —Louis sorri. — Não sou um monstro, não precisa ter medo.
O caçador hesita e pega uma bucha seca, e a molha na bacia com água. Num movimento trêmulo, ele aproxima o objeto no rosto de Louis e o limpa, retirando toda a terra que estava grudada.
— Eu posso fazer isso sozinho. —Louis insiste.
— Não. —O garoto responde. — Faz parte do ritual e se eu não o fizer, eles me matam.
— Só não demore. —Louis lembra dos cuidados de Leni. — Qual o seu nome?
O caçador hesita novamente e continua limpando o rosto de Louis. Seu olhar apresenta um misto de submissão e medo, e é nítido o quão desconfortável ele está.
— Me chamo Ezekiel. —Ele responde. — Preciso que tire a camisa.
— Prazer, o meu nome você já deve saber qual é. —Louis sorri e obedece.
Ezekiel molha a bucha na bacia, retirando a terra que se acumulou e torna a limpar as costas de Louis, com movimentos suaves. Ele repete o processo no peitoral e na barriga, e em seguida pega um pincel e uma tinta preta.
— O que vai fazer agora? —Louis pergunta desconfiado.
— Vou desenhar as runas do ritual. —Ezekiel responde, encostando a ponta do pincel no braço de Louis.
— Mas eu não vou participar do ritual.
— Você é bem confiante, quem te garante que não vai falhar?
— Eu garanto isso.
Um tempo se passa e Ezekiel termina de desenhar as runas que cobrem os braços de Louis, e também um pouco de sua espinha na coluna. Vendo que seu serviço estava quase pronto, ele se levanta e pega alguns fitilhos de couro.
Ezekiel amarra o fitilho no peitoral de Louis, em forma de X, e dá um nó nas suas costas. Com o restante, ele dá voltas no braço esquerdo, como um bracelete.
— E pra que isso serve? —Louis fica confuso.
— O bracelete é pra mostrar que você é o desafiante. —Ezekiel se senta.
— E o que tá no meu peitoral?
— Pra caso você decida usar uma aljava. É só prender a alça no nó que eu dei.
— Achei que fosse pela estética.
— Não é. —Ezekiel aponta para uma mesa. — Pegue a arma que quiser.
Louis se aproxima e vê uma adaga, uma espada, um arco, a aljava com algumas flechas e uma faca maleável. Nenhuma pistola ou algo que ele saiba usar da maneira correta, mas como não quer lutar com as mãos, ele pega a faca.
— Acha mesmo que uma faca vai matar o Wendigo? —Ezekiel debocha.
— E o que você sugere?
— O arco, pra você manter distância. —Ezekiel entrega a arma para Louis. — Guarde a faca pra um momento oportuno.
Louis prende a alça da aljava nas costas e passa o arco em seguida, assim como Leni usa, e guarda a faca em sua bainha na cintura. Vendo que Ezekiel sentou, ele se senta também, mas distante.
— Como é viver aqui? —Louis inicia a conversa.
— Tirando o perigo, é normal. —Ezekiel fala. — Não sei o que você quer que eu responda.
— Não tem uma resposta certa, só quero ouvir um nativo contando sua experiência.
Ezekiel suspira e se vira para Louis, o encarando sem transparecer a mesma submissão e medo de antes.
— A ilha já foi um lugar seguro, mas um homem de fora corrompeu nossas terras e trouxe as bestas infernais pra cá.
— Um homem de fora? —Louis se interessa. — Como ele é?
— Ninguém sabe como ele era, só sabemos que agora é um espectro.
— Hum. —Louis se decepciona. — E você não tem uma família?
— A tribo é a minha família.
— Você entendeu o que eu quis dizer. —Louis revira os olhos.
— Eu tinha um irmão.
— Ele morreu?
— Não, só me abandonou aqui. —Ezekiel desvia o olhar. — Ele se chama Leni.
Antes que Louis pudesse responder, os três caçadores retornam e o arrancam da tenda com brutalidade, o arrastando até uma passagem estreita e lamacenta.
A lua, aos poucos, se aproxima do sol, dando a entender que ela se posicionará em sua frente e indicando que falta pouco para a Lua de Sangue acontecer. Consequentemente, Louis percebe que seu tempo é curto.
Sozinho, ele se vê obrigado a atravessar a passagem e as árvores acima dele formam uma cobertura natural. Macacos pulam de galho em galho, acompanhando o caminhar cauteloso do Guardião do Tempo.
Ao chegar no final, Louis se depara com um círculo humano. Todos os caçadores da tribo se juntaram para ver o desafio, inclusive Ezekiel. A líder substituta está sentada na outra ponta, não tão distante deles, numa cadeira feita de ossos.
Ela se levanta e põe a mão fechada no peito, e logo se curva. O restante a imita, realizando uma abertura no círculo e deixando a besta infernal passar.
Louis estremece ao ver o Wendigo urrar e pensa em recuar, mas sua vida depende dessa luta. No livro deixado por Norman, é dito que a criatura é a mais brutal de todas e definitivamente o maior obstáculo de Louis.
— Que o desafio comece! —A mulher grita.
Wendigo surra o peitoral e avança com velocidade na direção de Louis, o jogando contra o círculo. Os caçadores se decepcionam e o empurram de volta à arena, com pontapés e palavrões.
Percebendo que não pode competir com força bruta, Louis deixa a sua inteligência o guiar e procura por um ponto fraco na criatura. Sua pele não é impenetrável e ele precisa manter distância se quiser sobreviver.
Num movimento calculado, Louis mira na barriga do monstro e dispara uma flecha na direção dele, acertando o antebraço da criatura.
— Merda! —Ele pragueja.
— Belo tiro. —A líder debocha.
— Eu tava mirando na barriga!
Sem tempo para brincadeiras, Wendigo se enfurece com a audácia do mortal e prepara outro avanço, mas antes de prosseguir, ele recua e pega impulso. Seus chifres apontam para Louis e a besta infernal corre ainda mais veloz.
Desesperado, Louis se joga para o lado e desvia do golpe letal com maestria. Vendo que estava tão próximo do Wendigo, Louis decide atacar com a faca e causar o máximo de dano possível.
O objeto perfura as costas da criatura, a fazendo urrar de dor e dar uma braçada em Louis, que se agarra nela. Seus movimentos são bruscos e Louis volta a esfaquear o Wendigo.
A besta infernal se enfurece ainda mais e pega Louis pelo pescoço, o arremessando com brutalidade no chão. Louis sente seus pulmões arderem por causa da queda e se encolhe por um momento.
Wendigo percebe a vulnerabilidade do seu oponente e desfere uma sequência de golpes potentes, quebrando algumas costelas de Louis.
A dor se torna insuportável e ele grita a cada soco. Sua visão fica turva e aos poucos escurece, o largando com a própria consciência.
Nesse instante, a áurea insiste em sair e Louis é tomado por um desejo avassalador de deixar seu lado celestial falar mais alto, mas reprime essa vontade.
Quase sem forças, ele se levanta com dificuldade e usa os próprios punhos para acertar a besta infernal, que não reage por dó. Seus socos soam como os de uma criança e isso faz o Wendigo bufar.
— Eu não vou morrer aqui. —Louis se engasga com o próprio sangue.
Num movimento indelicado, Wendigo agarra Louis pelo cabelo e arrasta seu rosto contra a terra, o humilhando diante da platéia. A líder admira a resistência de Louis e permanece imóvel, apenas esperando a sua desistência.
O monstro larga Louis no chão e se vira para os caçadores, esticando os braços ao escutar os aplausos e assobios. Mesmo sendo um ser infernal, nem ele escapa da vaidade e prova não ser tão diferente dos humanos que o vangloriam.
Louis pode não ter força física, mas ele tem algo que a besta com certeza não tem: inteligência. Nunca se vira as costas para um oponente até que ele esteja derrotado ou desista da luta, e o Wendigo desconhece essa regra.
Com o arco e as flechas quebradas, só lhe resta a mísera faca e Louis se aproveita da oportunidade, escalando as costas da besta e se apoiando em seus chifres.
Com a outra mão desocupada, ele finca o objeto o mais fundo possível no pescoço da criatura, acertando uma de suas veias interligadas ao coração.
Wendigo arremessa Louis novamente contra o chão e ele se arrasta para longe do monstro. Agora, é questão de tempo até que a besta cometa um dos maiores erros da sua infame vida: retirar a faca do pescoço.
Sem demora, ela vacila e cumpre com o que Louis planejava. Seu sangue jorra como se fosse um jafariz e o Wendigo sente sua cabeça latejar, lhe oferecendo uma forte enxaqueca.
— Sua forma física deveria ser a de um burro. —Louis debocha.
As forças de ambos os oponentes vão se esvaindo e Louis luta para permanecer acordado, até que a criatura caia derrotada e ele se consagre vitorioso.
Os caçadores ficam agitados ao ver o Wendigo caminhando lentamente e deixando suas pernas bambas vacilarem, e por fim o entregarem para o chão.
Desesperada sem seu deus, a tribo se enfurece e ameaça partir para cima de Louis, mas é impedida pela líder substituta.
— Já chega! —A mulher ordena. — Ele ganhou.
Louis sorri em meio à dor e olha para o céu, suspirando de alívio. A lua se posiciona em frente o sol, indicando que ele finalizou a besta infernal antes que a Lua de Sangue começasse.
As runas em seu corpo se acendem, o fazendo levantar contra a sua vontade e, num ato impulsivo, Louis suga a essência do Wendigo, deixando apenas o seu cadáver para trás.
— Você pratica a magia proibida. —A mulher olha incrédula. — Você nunca será um guardião digno.
— Me poupe dos seus sermões. —Louis se recupera dos ferimentos, graças à áurea.
Os caçadores ficam perplexos e formam uma barreira humana, na tentativa de impedir que Louis saia dali. Até mesmo Ezekiel participa da loucura, mostrando para Louis que ele não pode confiar em ninguém além do Leni e do Adrian.
Indisposto a brigar, Louis projeta a áurea e ela se enfia no meio da multidão. O movimento das suas mãos faz menção de separação e a áurea obedece, dividindo a barreira.
— Por favor, não me atrapalhem. —Ele suspira. — Nós não precisamos lutar.
Depois de escapar da tribo e sobreviver à Lua de Sangue, Louis continua caminhando rumo ao deserto, mas um estranho e sombrio nevoeiro o envolve.
Cegado pela escuridão e ensurdecido pelos gritos de desespero, Louis fica em posição de defesa e pronto para contra-atacar o que partir para cima dele.
Sua áurea queima a névoa, dissipando todas as almas atormentadas e revelando o rosto de Sahara, o homem por trás dos horrores da Névoa Negra.
Sua face espectral logo se desfaz e as milhões de almas que habitam aquele corpo dão espaço para uma em específico, transformando suas feições nas do homem que Louis procurava há bastante tempo.
— Pai?
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