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Capítulo XII - Caos e Regresso

Distantes de onde Louis está, Leni e Adrian adentram numa pequena cidade. Fundada sobre a areia e erguida através do trabalho árduo de centenas de escravos, a dupla admira a beleza das construções e se aquece com agasalhos roubados de um mercador.

Atento sobre qualquer eventualidade, Leni espreita pelas esquinas e vielas, e Adrian acompanha os passos sigilosos do caçador. Ao contrário da calmaria que a cidade apresenta de noite, durante o dia as coisas são diferentes.

Infantarias encharcam as dunas do deserto, em busca de fugitivos, presos políticos e viajantes desavisados, prontas para massacrar qualquer um que seja dito como ameaça ao regime opressor que emergiu junto às construções.

Com a dupla não seria diferente, afinal, Leni é um desertor e Adrian é um forasteiro em terras desconhecidas, ambos aliados do Louis, e os rumores correm tão rápido quanto os lagartos. A falácia de um Guardião do Tempo visitando a ilha gerou esperança em uns e ódio em outros.

O Lugar Nenhum ficou à mercê do espectro que se confunde como governante e nenhum guardião ousou para-lo, dando a entender que os habitantes foram largados à própria sorte.

Adrian aos poucos se desvencilha da descrença que o guiava, abandonando o ceticismo que cega milhares. Disposto a entrar de cabeça nessa história, ele mudou seu comportamento e passou a crer que logo será resgatado, mas antes precisa salvar Louis.

— Venha. —Leni esgueira até o outro lado da rua. — O vidente tá escondido ali.

— Escondido? —Adrian arqueia a sobrancelha.

— Ele é um preso político, longa história. —Leni abre a porta da taberna. — Fique calado, eu assumo agora.

Os dois entram no estabelecimento e Leni procura pelo tal vidente, analisando todos os rostos e vendo se acha um que seja familiar. Para não levantar suspeita, ele se senta numa das mesas vazias e Adrian o acompanha.

— Boa noite, garanhões. —A atende vem até eles. — Vão querer alguma coisa?

— Traga uma garrafa de vinho tarkat. —Leni responde. — E um copo de leite pro meu amigo.

— Claro. —Ela sorri. — Um vinho tarkat e um pouco de leite.

— Copo de leite? É sério? —Adrian espera a atendente sair.

— Crianças não bebem. —Leni diz com um sorriso sarcástico no rosto.

— E o que diabos é vinho tarkat?

— Vinho normal, mas fermentado na barriga de uma enorme barata.

— Ah, que nojo!

Num movimento delicado, a atendente retorna com a garrafa numa mão e o leite na outra, e dispõe os pedidos na mesa. Ao ver que seu serviço não é mais requerido, ela se retira e vai atender as mesas alheias.

— E esse leite saiu da teta de alguma vaca mutante? —Adrian olha com nojo para o copo.

— Acredito que não. —Leni abre a garrafa e toma um gole generoso.

A bebida aquece sua garganta e repousa em seu estômago, queimando suas entranhas. Aquele é o melhor vinho da região e também o mais barato, o que agrada a maioria da população.

Sem tempo para degustação, Leni volta a observar os bêbados, em busca do vidente. Até onde ele sabe, o homem gosta de frequentar as tabernas da região e se esconde nos sobrados dos estabelecimentos.

Após uma procura detalhada, um rosto em específico chama a atenção de Leni e ele calcula como vai se aproximar do homem. Seu gesto pouco delicado ordena que a atendente recolha os pedidos e ela vai até a mesa, indisposta por causa da grosseria.

— Aquele não é quem vocês procuram, rapazes. —Ela diz.

— E quem disse que estamos procurando alguém? —Leni retruca.

— Ficou nítido no momento em que aquela porta abriu. —A atendente sorri.

— Hum. —Leni desdenha. — Então, onde está a pessoa que procuramos?

— Na parte de trás da taberna, escondido como sempre. Vão pela porta do fundo.

Leni se levanta da mesa e Adrian repete a ação, o seguindo até a parte de trás do estabelecimento. A porta dá acesso a um pequeno quarto, de um único cômodo, e o vidente está deitado na cama que não o pertence.

Intrêmulo, ele encara a dupla e percebe se tratar de uma confusão, afinal, só o procuram para limpar a bagunça alheia. Fraco pela bebedeira, ele bebe a água de um copo e põe seus óculos velhos.

— O que querem? —Sua garganta pigarreia.

— Precisamos da sua ajuda. —Leni responde.

— E quem não precisa? —O vidente se senta na cama. — Não me envolvo mais com política, minha cabeça tá valendo mais do que o vinho tarkat que você bebeu e não pagou.

— Como ele sabe que você bebeu aquela coisa? —Adrian pergunta perplexo.

— Ele é um bebum nato, me assustaria se não reconhecesse o cheiro.

— Não precisa ofender. —O vidente revira os olhos. — Querem minha ajuda em quê?

— Um amigo em comum busca respostas. —Leni escora na parede.

— Oh, finalmente um trabalho digno da minha experiência como feiticeiro.

— Você não disse que ele era um vidente? —Adrian fica ainda mais confuso.

— Eu disse que ele era velho o suficiente, não que era um vidente.

— Aliás, me chamo Shao. —O homem responde.

— Me chamo Adrian.

Shao se levanta da cama, cambaleando, e se posiciona em frente a um pequeno caldeirão. Como é um preso político, quanto menor for o seu equipamento, melhor.

Ele enfia as mãos no bolso, procurando pelo elixir que havia guardado dias atrás e suspira de alívio ao acha-lo. Pronto para prosseguir, Shao prepara uma poção e despeja o líquido em seu caldeirão.

O caldeirão reage à mistura e sua coloração pálida toma a cor magenta, indicando que o processo mágico foi estabilizado.

— Quem é esse amigo? —Shao pergunta.

— Louis. —Leni responde.

— E o que ele é? Uma besta infernal, um monstro, um dragão, uma pessoa?

— Uma pessoa. —Leni hesita.

— Existem essas outras coisas que ele citou? —Adrian permanece no mesmo estado de antes.

— Sim. —Shao responde e se vira para Leni. — Preciso de informações concretas se quiser que isso funcione.

— O que mais quer saber?

— Se ele tem poderes, se nasceu na ilha... Coisas assim.

— Ele tem poderes, não nasceu na ilha, matou duas das cinco bestas infernais, tá com o pai desaparecido, provavelmente é gay e só. —Leni perde o fôlego.

— A última informação não era necessária, mas ok. —Shao volta a atenção para o caldeirão.

Num movimento calmo, o feiticeiro agita o líquido magenta e pronuncia palavras de uma língua desconhecida. Um tempo se passa e Shao ingere da mistura, sentindo o efeito daquilo surgir.

Seus olhos ficam opacos e ele se vira para a dupla, que o encara com certo receio. Sua boca resseca, o fazendo mudar de postura como se alguém trocasse de lugar com ele.

— Louis, o último Guardião do Tempo, certo? —Shao pergunta.

— Sim. —A dupla responde uníssono.

— Quais respostas querem levar para ele?

— Todas, de preferência. —Leni diz.

— Vou dar o que estiver ao meu alcance.

Shao movimenta as mãos e o ar do quarto responde ao chamado, e ele usa o elemento para projetar um pequeno fio.

— Essa é a Linha do Destino.

O fio se estende quase que infinitamente, atravessando a janela e alcançando o horizonte. Leni percebe que o fio está conectado a ele e ao Adrian, mas Adrian não repara e Leni chama a sua atenção.

— Vocês estão conectados ao Louis. —Shao volta a falar.

— Como assim? —Adrian pergunta.

— Dentre todos os pilotos de São Paulo, por que ele escolheu justamente você? —Shao responde. — Tanta gente mais competente, mas algo puxou ele até você.

O fio se fortalece em Adrian e seu brilho fica mais potente, ao contrário do que acontece com Leni. O fio nele começa a enfraquecer e seu brilho se ofusca, quase se apagando completamente.

— Em relação à você, Leni, a sua conexão com Louis não era prevista.

— Isso é meio óbvio, eu me juntei a ele tão de repente. —Leni disfarça o nervosismo.

— Você. —Shao aponta para o peitoral de Leni. — Você é uma falha temporal.

— Como assim?!

— Isso foge da minha compreensão, mas algo me diz que sua existência não foi planejada. —O feiticeiro diz sem remorso. — Alguém te criou com um propósito.

— E qual seria esse propósito?

— Só o tempo dirá...

O fio em Leni desaparece por completo, sobrando apenas o de Adrian e sua cor se torna avermelhada. Isso espanta a dupla, mas ela permanece quieta.

— Agora eu entendo. —Shao teoriza. — Vocês três são almas gêmeas.

— Mas nós não somos um casal. —Leni diz.

— Trisal, no caso. —Adrian sorri sem graça.

— Almas gêmeas nem sempre se encontram no amor. —Shao suspira. — Elas podem se encontrar na amizade.

— E como isso explica o fio em mim ter sumido? —Leni pergunta apreensivo.

— Eu não sei. —Shao põe a mão no ombro de Leni. — Minhas limitações não me permitem enxergar além disso.

Repentinamente, Shao sai do estado de transe e se livra da histeria que aos poucos consumia suas forças vitais. Sem se lembrar do que havia acontecido, ele expulsa a dupla com medo de que eles fossem enviados do governo.

Leni se apressa em sair da taberna e vai até um dos becos para esconder a aflição. Adrian percebe que o amigo está em conflito com as informações que lhe foram dadas e o segue, mesmo sem saber se era o ideal a se fazer.

A lua mancha o céu noturno com a sua presença, ficando ainda mais vermelha e alertando Leni de que o ritual não demoraria para acontecer.

— Precisamos ir. —Ele diz escondendo as lágrimas. — A Lua de Sangue se aproxima.

— Ei, calma! —Adrian o repreende. — Não vamos salvar ninguém com você assim.

— Assim como?

— Escondendo seus sentimentos. Eu sei que foi difícil escutar que você é uma falha temporal, mas você tem um propósito aqui.

— Hum.

— Talvez não seja tão ruim assim, o feiticeiro pode ter escolhido as palavras erradas. Vai ver você é um viajante do tempo.

— Eu me lembraria se eu fosse um.

— Bom, então pode significar outra coisa, só não se prenda a isso e nem deixe que isso mude quem você é.

— Acabou o papo motivacional? —Leni sorri em meio às lágrimas.

— Me agradeça mais tarde por ele. —Adrian estende a mão. — Agora vamos socorrer a nossa alma gêmea.

— Esse é o espírito. —Leni segura a mão de Adrian com firmeza.

Ao saírem escondidos da cidade e caminharem rumo à tribo dos caçadores, a dupla percebe o ar ficar rarefeito e uma estranha névoa tomar conta dos arredores.

Gritos de dor e desespero ecoam através dela, dando o vislumbre de almas acorrentadas tentando vagar pela grande nuvem negra, mas sendo impedidas por um tirano.

Leni já tinha presenciado os horrores da Névoa Negra e sabe que aquilo não era um bom sinal, então recua e ordena que Adrian faça o mesmo.

Antes que pudessem escapar, uma figura imponente sai do nevoeiro e os faz paralisar. Era o governante e supostamente o pai de Louis. O mesmo homem que tentou reviver a esposa e acabou condenando o Lugar Nenhum à desgraça.

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