Capítulo X - Ordem e Progresso
Assim que o amanhecer chega e o sol ilumina a natureza vasta do Lugar Nenhum, resplandecendo toda a sua beleza incomum, os pequenos animais que habitam a região da cabana despertam e logo vão atrás do sustento diário.
Louis repousa do lado de fora e acompanha a inquietude deles, e tenta aproveitar o momento de intimidade com a criação supostamente divina. Seus olhos agitados se perdem entre as árvores e esbarram com os de Leni, que acabara de sentar ao seu lado.
— Acordou cedo. —Leni diz.
— Não muito, eu perdi o sono de madrugada. —Louis responde com calma.
— Teve algum motivo pra isso?
— Eu diria que foi a preocupação, mas tô pleno.
Leni concorda com a cabeça e teoriza, mas guarda suas paranóias para si mesmo. Ele nunca conheceu um Guardião do Tempo e achava que era apenas uma lenda, então ele não sabe o peso da responsabilidade que Louis foi incumbido.
Aliás, nem mesmo Louis sabe o peso dessa responsabilidade. Num dia, ele era um garoto comum, cheio de problemas e um pai desaparecido. Era o tipo de pessoa que fazia de tudo para passar despercebida. No outro dia, ele descobre ter o poder de manipular o tempo.
Como se não bastasse, além das perguntas sem respostas, Louis não recebeu um manual de instrução e muito menos um mentor ou alguém capaz de ajudá-lo com clareza. Sua vida simplesmente mudou repentinamente e cabe a ele aceitar isso.
— Quem nós vamos encontrar no deserto? —Louis questiona.
— Um vidente. —Leni hesita. — Na verdade, eu não sei se ele é vidente, mas é velho o bastante pra ter conhecimento de sobra.
— Bom, melhor do que nada. —Louis sorri sem graça.
— Acredite em mim, ele é o único aqui que pode te ajudar.
Adrian escuta a conversa do lado de dentro e se incomoda com a proximidade que os dois ganharam nos últimos dias, mas trata isso como um pensamento intrusivo. Seu desejo de proteger Louis é genuíno e talvez exista alguém mais capaz de fazer isso.
Acordar sem Louis ao seu lado foi um baque que o fez lembrar de quando se relacionou com uma mulher, anos atrás. Foi um romance relativamente longo e bonito, mas que terminou sem motivo assim como vários outros.
Adrian exercia o papel de protetor, algo que ele aprendeu com o pai. Sem perceber, ele se viu preso num ciclo interminável de relações nas quais ele buscava reproduzir o comportamento paterno.
No fundo, ele é só mais alguém com um vazio existencial para suprir e depois de ser salvo por Louis, a sua motivação passou a ser a de retribuir o favor.
— Bom dia. —Ele diz num tom desconfiado. — Pelo visto já tão fofocando.
— Leni tava me contando sobre a pessoa que vamos encontrar. —Louis responde.
— E quem é essa pessoa?
— Um tal vidente.
— Não é exatamente um vidente. —Leni coça a cabeça. — Vamos? É melhor irmos antes que anoiteça.
Numa concordância mútua, o trio abandona a cabana e segue rumo ao deserto, lar do Nexu. Durante o caminho, Louis admira a natureza e parece uma criança bobona descobrindo o mundo pela primeira vez.
Diferente do cenário claustrofóbico que ele viu na caverna do Demogorgon e do incêndio perturbador na vila, agora é o contrário. A paisagem transmite calmaria e serenidade, duas coisas que ele não via na cidade grande.
Após caminharem uma distância considerável, o trio se depara com um rio movimentado e uma queda de água no final. A única passagem é um avião destroçado e que serve de ponte, separando os dois lados.
— Mais alguém de fora caiu aqui? —Louis olha assustado.
— Sim, muitos aviões caem aqui sem querer. —Leni responde. — Depois do que aconteceu no castelo, a ilha formou uma barreira natural.
— Como assim? —Adrian fica confuso.
— Não sei explicar, só sei que ninguém entra e ninguém sai.
— O que me preocupa é quando as autoridades vierem nos resgatar. —Louis suspira. — Aliás, que castelo é esse?
— Se você não tivesse dormido aquele dia, você saberia.
— Mas tem algo que eu precise saber?
— No momento, não. —Leni desvia o olhar.
Suas suspeitas ainda não foram confirmadas e ele não quer encher a cabeça de Louis com suas teorias, afinal, ele já tem problemas o suficiente.
Se o governante não for o pai de Louis, o encontro dos dois só vai gerar mais confusão. Se for, Leni teme que Louis enlouqueça.
— Adrian. —Leni fala. — Vai primeiro.
Mesmo relutante, Adrian concorda e atravessa a carcaça do avião. Sua passagem é comemorada e Leni atravessa em seguida, após ver que era seguro.
Louis, por outro lado, sente um calafrio percorrer sua espinha, mas toma coragem e pisa na borda da asa. Seu pé vacila e ele retoma o equilíbrio, e continua em passos cuidadosos.
A corrente de água fica mais forte e o avião ameaça se desprender das rochas, e Louis trava no meio do caminho. Sua imaginação o leva a pensar coisas ruins, mas Adrian e Leni o trazem de volta à realidade.
Sem ter como recuar, Louis respira fundo e pula para o centro, e sente a estrutura do avião ceder com o seu peso, fazendo o teto se romper como consequência. Depois de cair na parte interior e ralar os joelhos, ele se recompõe e vê que não tem como voltar para cima.
— Louis! —Adrian grita. — Você está bem?
— Só me machuquei um pouco, mas tô bem. —Louis responde e sua voz ecoa.
— Então suba, a corrente de água tá ficando mais forte. —Leni completa.
— Não tem como! É muito alto.
— Veja se tem alguma saída de emergência na parte da frente. —Adrian volta a gritar. — Esses aviões costumam ter uma escotilha inferior.
— E espera que eu saia como?!
— Você vai ter que se pendurar e subir até a parte de cima. —Adrian suspira.
— Sem chance. —Louis fica com medo.
Não tão distante dali, uma sequência de explosões acontecem e a montanha rui, formando uma avalanche de terra e pedregulhos que avançam com velocidade na direção do rio.
Percebendo que o perigo era iminente, Louis se desespera e sente a pancada bruta na parte de trás do avião, e o mesmo se desprende das rochas. Ao deslizar sobre a água, o avião agarra suas asas na lateral da queda e Louis é arremessado até a parte da frente, atingindo a película de vidro.
Com medo de que a janela se quebre, Louis permanece imóvel até ver um paraquedas pendurado e sua mente maquina uma ideia perigosa. Antes que pudesse se levantar, o vidro começa a rachar e então Louis agarra o equipamento, agilizando o processo de rompimento do vidro.
Já em queda livre, ele abre o paraquedas e plana numa velocidade alta, sendo atingido por galhos desavisados e perfurando a lateral do abdômen. Louis atinge o chão em segurança e sua visão fica turva por causa da perda de sangue.
Disposto a seguir em frente, mesmo sozinho e exausto, Louis caminha se segurando nos troncos das árvores e avista um grupo indo em sua direção. Sua visão lhe prega peças e ele pensa em fugir, mas cede ao desejo do seu corpo já fraco.
— Merda de áurea, cadê você? —Ele diz num tom baixo.
O grupo se aproxima segundos depois e Louis percebe ser um bando de caçadores, a tribo do Leni, mas o que mais o assusta é a figura imponente e mortal de uma criatura infernal.
Wendigo, a besta da perdição, o agarra pelo pescoço e sente o cheiro do medo que exala de Louis. Num urro fedorento e carniceiro, a besta o joga no ombro e o grupo se afasta do local da queda, seguindo a criatura.
— E agora, o que faremos? —Adrian demonstra sua impaciência.
— Me deixe pensar. —Leni responde num tom grosseiro.
Após fugirem da avalanche, a dupla se refugiou num pequeno templo de cultos ao Nexu, indicando que já estavam na entrada do deserto. Distantes do Louis, os dois só tiveram uma alternativa: continuar.
— Aquela explosão foi obra dos caçadores. —Leni suspira.
— E por que eles fizeram aquilo? —Adrian observa as velas acessas.
— Porque eles tão me caçando e antes que você pergunte, eu desertei a minha tribo.
— Você é uma caixinha de surpresas.
— Eu tive os meus motivos.
Adrian para de observar as velas e procura por um lugar vazio para sentar.
— Não tem como voltar. —Leni completa. — Vamos ter que achar o vidente se quisermos ajuda.
— E largar o Louis sozinho com seus antigos companheiros? Nunca.
— Sozinho ele não tá. —Leni sorri nervoso.
— O que mais você tá escondendo?
Leni hesita e suspira, caçando também um lugar para sentar. A caminhada não foi longa, mas foi exaustiva e ele está com sede.
— De tempos em tempos, os caçadores oferecem alguém para o Wendigo. Em troca, ele compartilha suas técnicas de caça e guerrilha.
— E a oferenda vai ser o Louis? —Adrian estremece.
— Eu acredito que sim. —Leni olha para o céu noturno.
A lua está vermelha e mancha o preto da atmosfera com seu tom desagradável, indicando que aquele é o início de um novo ciclo no Lugar Nenhum.
— Hoje começa a Lua de Sangue.
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