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Capítulo VIII - Teoria do Caos

O sol acompanhava o veículo militar e aos poucos se escondia, dando indícios de que logo a lua tomaria o seu lugar no céu. Num total silêncio, o trio sai do camburão e se depara com a tal base militar, e com o entardecer.

Para Adrian, aquilo não era novidade, afinal, foi ali que ele ficou nos últimos dias. Para Louis, o que restava era um sentimento de estranheza. Por outro lado, Leni aparentemente estava familiarizado com os soldados e isso se confirma quando uma mulher se aproxima.

— Veio roubar mais alguma coisa? —Ela se refere a ele.

— Não sei. —Leni revira os olhos. — Chegaram equipamentos novos?

— Nada que um nativo saiba usar, então mantenha suas mãos imundas bem longe deles. —Ela percebe a presença de Louis e muda a postura. — Olha quem achamos perdido por aí.

— Tá falando comigo? —Louis aponta para si mesmo.

— Sim. —A mulher sorri. — Ah, perdão. Me chamo Evelynn, sou a comandante dessa base.

— Prazer.

— Não confie nela. —Leni interrompe. — Ela consegue ser bem ardilosa quando quer.

Evelynn o observa de canto e não responde, demonstrando frieza no olhar. Louis mede a mulher de cima a baixo e estranha o fato dela estar usando uma luva cirúrgica, mas guarda para si qualquer questionamento.

— Agora que fomos apresentados, que tal conhecer o restante da instalação? —Ela diz.

— Se aqui for um local seguro, tudo bem.

Louis não queria demonstrar seu nervosismo e muito menos contar sobre o que havia acontecido. Confiar em Evelynn era uma incógnita e mesmo que ela tenha acolhido Adrian, Louis não sabe sobre a fundação e ele não quer abusar da sorte.

Ela abre caminho entre os soldados e os guia pelo pátio central, lotado de outros veículos militares e aparatos tecnológicos. Os olhares desconfiados alcançam o trio, mostrando que eram estranhos adentrando em solo desconhecido.

Mais a frente, uma porta de vidro se abre e Evelynn leva os garotos pelo saguão principal, e logo passam pelos dormitórios vazios.

— Adrian e Leni podem ficar aqui. —Ela mostra suas camas desocupadas.

— E eu? —Louis a indaga.

— Você também, mas não agora. Preciso te apresentar o restante da base.

— Ok. —Louis concorda e percebe Leni desaprovando com a cabeça.

— Estaremos te esperando aqui. —Adrian conforta Louis. — Eles são de confiança.

Evelynn continua guiando Louis pela instalação até chegar num laboratório. Os cientistas não estão armados, dando a entender que ali é o único lugar onde as armas são proibidas.

— Esse é o restante da base? —Louis observa os cientistas trabalhando.

— Ainda tem o refeitório, mas vocês só podem acessar lá quando a refeição estiver pronta. —Evelynn sorri.

— E por que você queria me mostrar esse laboratório?

— Porque eu acredito que você é um pouco mais do que pensa.

Louis se lembra do encontro nada agradável na tumba e em como a sua outra versão foi desintegrada por algo que ele desconhece. Seu instinto o diz para manter isso em segredo, ao menos por enquanto.

— Como assim? —Ele se faz de desentendido.

— Acho melhor irmos com calma. Sua chegada inesperada chamou atenção e tem mais gente te caçando.

— Pessoas ou bestas infernais?

— Pessoas. —Evelynn hesita. — Espera, você encontrou as bestas?

— Contra a minha vontade, mas sim.

— E saiu vivo? —Evelynn ri. — Impossível, nem mesmo o meu pessoal deu conta daquelas monstruosidades.

— Bom, eles foram por vontade própria. —Louis cruza os braços. — Eu fui obrigado a sobreviver e lutar contra coisas que eu sequer sabia da existência.

— Perdão. Quero dizer, não deve ter sido fácil entrar nisso de cabeça e sem uma noção do que esperar.

— Um manual de instrução seria útil.

— Ao menos você é bem humorado, mas vamos ao que interessa.

Evelynn guia Louis até uma sala privada. Lá, ele vê uma maca metalizada no centro e as paredes completamente fechadas por uma cortina expessa. Antes que pudesse dizer algo, ele sente uma agulha penetrando a lateral do seu pescoço e um líquido desconfortável atinge o seu interior.

— Mas o quê?! —Louis vacila.

— Desculpa, mas preciso te estudar primeiro e esse é o melhor jeito. —Evelynn responde, colocando Louis na maca.

Uma forte sonolência toma conta do seu corpo, desativando todas as suas defesas e faculdades mentais, o deixando num estado onde só é possível escutar o barulho das algemas o acorrentando na maca gelada.

Indiferente ao que acontece ao seu redor, Louis luta contra os próprios olhos que insistem em repousar serenamente. Evelynn, satisfeita com a sua destreza, sai da sala e se senta em frente um computador, e sua voz ultrapassa a parede através de um alto-falante.

— Primeira tomada de testes. —Ela diz. — Iniciar protocolo "Sujeito TRM".

A maca inclina para trás e o teto acima de Louis projeta um visor, e começa a reproduzir uma série de imagens que vão desde as mais inofensivas até as mais perturbadoras. Louis, apático, assiste todas e seu cérebro é forçado a guarda-las.

— Segunda tomada de testes.

O visor apresenta outra série de imagens, mas dessa vez são da sua família. Uma porção de fotografias encharca os olhos agitados de Louis e o mesmo passa a salivar.

— Você é bem resistente. —Evelynn paira a mão sob o queixo. — Vamos para a terceira tomada de testes.

Ela se levanta e pega uma pequena caixa, e vai até a sala onde Louis está. A caixa se abre e revela o seu interior preenchido com ferramentas de tortura, e Evelynn retira um bisturi de lá.

— Sabe? Meus superiores acreditam que você é um ser feito de magia. —Ela realiza um corte comprido no braço direito de Louis. — Mas se você realmente é isso, por que você sangra?

Louis treme ao sentir o bisturi rasgando sua pele, mas o líquido ainda faz efeito e ele não consegue reagir, sequer responder.

— O mais triste nisso tudo é que nós nem iríamos atrás de você, mas você caiu aqui e acabou calhando. —Evelynn realiza outro corte, mas no braço esquerdo de Louis. — Não quero prolongar nossa sessão, então te dou duas opções.

Ela pega uma pequena furadeira e encosta na coxa de Louis, pronta para liga-la e fazer uma lambança com o sangue que jorrará.

— Ou você apresenta os resultados que eu quero, ou você agoniza aí até a morte e me decepciona. —Ela liga a furadeira e cumpre com o prometido, e só para quando sente a ferramenta atravessar a sua coxa.

Mentalmente, Louis grita com a dor e se indaga se ele realmente merecia passar por aquilo. Seja lá quem são as pessoas que vieram antes dele, ele não é feito de magia. Pelo contrário, é feito de carne e osso assim como qualquer humano.

— Não me odeie por isso, ok? —Evelynn continua seu monólogo e faz o mesmo com a outra coxa de Louis. — Vou te deixar sozinho e quando eu voltar, quero essas feridas curadas.

Louis é largado na sala escura e todos do laboratório se retiram, inclusive a sua torturadora. Nesse momento, ele passa a se odiar por ser tão frágil, tal como um pedaço de papel molhado. Sem escapatória, Louis apenas aceita que morrerá dentro de alguns minutos.

Uma sirene toca e anuncia que o jantar estava pronto, fazendo Adrian e Leni acompanharem os soldados famintos em direção ao refeitório. No caminho, a dupla esbarra com Evelynn e ela tenta esconder o nervosismo.

— E o Louis? —Adrian pergunta preocupado.

— Ah, esqueci de avisar vocês. —Evelynn sorri. — Eu deixei ele de quarentena por enquanto.

— Por que de quarentena? Ele tá passando mal? —Leni desconfia.

— Não, é só por precaução. Ele me disse que se encontrou com as bestas infernais e a gente conhece tão pouco delas, não sabemos se elas emitem algum tipo de... Radioatividade.

— Então eu deveria ficar de quarentena também. —Adrian responde.

— A diferença é que você só teve contato com uma e nem foi lá grandes coisas. Agora se me permitem, estou morta de fome.

— À vontade. —Leni abre passagem.

Os dois adentram no refeitório e se assustam com a quantidade esmagadora de soldados, e o ranger dos garfos causa gastura em ambos. Sem cerimônia, eles se servem e sentam numa das mesas vazias.

— Ainda acha que o Louis tá de quarentena? —Leni inicia a conversa.

— Bom, não tenho motivos pra desacreditar. —Adrian abocanha o pedaço de carne.

— Então deveria. —Leni faz o mesmo.

— Ok, você acha que ele tá correndo perigo? Muito me admira essa preocupação vir logo de você.

— Eu errei em jogar ele naquela gruta, mas eu tive os meus motivos.

— Faço ideia.

— Olha, eu conheço essa ilha melhor do que ninguém e sei que não dá pra confiar nesses militares.

— E por que você acha isso? —Adrian permanece irredutível.

— Se você acha normal montarem uma base militar numa ilha que o restante do mundo desconhece, o problema é seu. —Leni provoca. — Vai me dizer que eles tão aqui pra extrair madeira?

— Você tem um ponto, mas não vou cair no seu papo de conspiração.

— Tanta gente decente no mundo e o Louis foi escolher logo um covarde.

Adrian hesita e não responde, apenas aproveita o jantar, mas algo dentro de si o faz ceder um pouco.

— Eu não sou um covarde.

— Se dependesse só de mim, eu já teria armado a maior confusão aqui e ido procurar o Louis.

— Vai em frente.

— Se você soubesse o tanto que ele falou de ti, não diria isso.

— O quê? —Adrian engasga.

— Isso mesmo. —Leni continua a provocar. — Pena que você não pensa o mesmo dele.

As bochechas de Adrian coram e ele sente uma vergonha súbita arder em seu rosto, o deixando sem reação.

— O que ele disse?

— Vamos procurá-lo e quem sabe ele te conta.

Leni sabia que era apenas um blefe para ter ajuda, afinal, mesmo sendo um caçador habilidoso e disposto a matar meio mundo, ele sozinho não daria conta de tantos soldados treinados.

— Se a Evelynn nos pegar, eu te mato. —Adrian fecha a cara.

— Sabia que você não deixaria seu amado pra trás.

— Ele não é meu amado. —As bochechas de Adrian tornam a corar.

Evelynn volta à sala de contenção e percebe Louis intrêmulo, apenas salivando como antes. Indisposta a continuar com a sessão de tortura, ela pensa numa outra forma de despertar o suposto lado mágico dele.

— Acho que você precisa de um empurrãozinho diferente. —Ela se aproxima da maca. — Que tal eu matar um dos seus amigos?

Louis já não apresentava batimentos cardíacos e ela nem havia notado isso. O jantar recuperou a sua energia e seu monólogo era mais importante.

— Por via das dúvidas, antes de prosseguir, vou guardar seu sangue nesse frasco. —Ela pega uma seringa. — Tem gente lá fora que quer estudar você também.

Ao se aproximar do corpo sem vida de Louis, ela enfia a agulha em uma das suas veias e retira um bocado de sangue, armazenando o frasco numa maleta própria para o transporte.

— Acho que matar o Leni vai te fazer despertar. —Ela encara o olhar vazio de Louis. — E se eu matar o Adrian primeiro?

Na esperança de enfatizar que ela é capaz de tudo, Evelynn agarra Louis pelo rosto e sente sua pele gélida.

— Porra, você morreu? —Ela se decepciona.

Louis, por outro lado, mesmo desencarnado acaba sentindo aquela sensação avassaladora de quando o Carrasco o torturava. Sua pele, quase pálida, torna a ter cor e encharca seu corpo com o fôlego da vida. Suas feridas se cicatrizam num piscar de olhos e seu coração volta a bater, irradiando uma áurea esverdeada.

Num movimento brusco, Louis se desprende das algemas que o prendiam na maca e agarra Evelynn na mesma intensidade, e a joga contra a porta. Seu olhar emana a mesma cor verde da áurea que rodeia seu corpo.

Suas mãos formigam enquanto aquela magia percorre seus braços com inquietude, o revigorando. Então, ela se concentra em suas mãos e Louis dispara uma rajada de energia contra Evelynn, fazendo a porta de antes se estilhaçar como vidro.

Evelynn sente seu corpo arder por causa do impacto e segura a maleta com firmeza.

— Eu queria muito ficar, mas eu preciso entregar isso pra alguém. —Ela tenta disfarçar a dor. — Adeus, Louis.

Um portal alaranjado se abre atrás dela, revelando a silhueta de um homem familiar, mas Louis estava cegado pelo poder que havia liberado e não notou as semelhanças. Num pulo calculado, Evelynn atravessa o portal que logo se fecha, deixando apenas um punhado de faíscas para trás.

Sem entender a dimensão do que estava acontecendo, Louis levita e se deixa guiar pela áurea esverdeada. Nesse instante, sirenes disparam desesperadas e seus gritos ecoam por toda a instalação militar, chamando a atenção dos soldados.

Uma saraivada de tiros tenta atingir Louis, mas uma barreira impenetrável o protege de todas as balas e os soldados recuam com medo. Percebendo o momento de fraqueza deles, Louis libera uma onda de energia pura que empurra tudo, fazendo até mesmo a base se deslocar do solo.

Uma sequência de explosões faz a base estremecer, dando o vislumbre de algo que seria facilmente confundido com o inferno. Vendo que todos os soldados foram abatidos, Louis vê dois homens se erguerem dos corpos inanimados: eram Adrian e Leni.

— Louis! —Adrian grita.

Ao recobrar a consciência, Louis plana até alcançar o solo e a áurea esverdeada abraça os dois feridos, curando seus ferimentos e desaparecendo em seguida.

— Me perdoem por isso! —Louis diz em meio as lágrimas ao perceber o estrago.

— Tente não pensar muito nisso... —Leni conforta o garoto. — Ao menos estamos vivos, por pouco.

— Eu não sei o que era aquela coisa verde, eu só lembro da Evelynn me torturando. —Louis treme.

— Calma, tá tudo bem. —Adrian o abraça.

— Eu disse que ele estava em perigo. —Leni não perde a chance de provocar.

— Cala a boca, idiota. —Adrian repreende Leni. — O que faremos agora?

— Eu não sei... —Louis seca as próprias lágrimas.

— Eu conheço alguém que pode nos ajudar. —Leni diz com certo receio. — Só não vai ser fácil chegar até ele.

— O quão difícil é? —Louis pergunta.

— Vamos ter que atravessar o deserto, lar do Nexu. —Leni responde. — Mas acho que isso não vai ser um problema tão grande, temos uma bomba ambulante com a gente.

— Leni. —Adrian o repreende novamente. — Não é hora de palhaçada.

— Tudo bem, ele pelo menos tem humor. —Louis sorri desanimado.

Adrian sente uma pontada de ciúmes o atingir em cheio, mas acaba relevando. O trio então parte rumo ao deserto, com medo não somente do que podem encontrar pelo caminho, mas também de Louis.

Além do portal, Evelynn se encontra com o homem que a salvou do poder descontrolado de Louis. Esguio e pálido, o homem a encara com um olhar mortal.

— O que você fez?! —Ele diz com raiva.

— Eu achei que despertar os poderes dele daquela forma seria mais eficiente. —Evelynn encolhe a cabeça. — Você pediu rapidez e eu tentei.

— Por sua culpa, tenho um problema ainda maior para resolver. —Seus dentes rangem.

— Perdão, ao menos trouxe o sangue dele. —Evelynn entrega a maleta para o homem.

— Você acha que isso é o suficiente, sua tola?!

— Eu achei que fosse. —Ela torna a encolher a cabeça.

O homem suspira com dificuldade e guarda a maleta.

— Você não é a contraparte dele? —Evelynn continua.

— E o que isso tem a ver?

— Digo, se ele controla o tempo e você controla a realidade, vocês precisam um do outro pra coexistir. Não é só pedir a ajuda dele? A fundação não pode saber que estou envolvida nisso.

— Quem dera fosse fácil assim. —O homem sorri. — Não se preocupe, não preciso mais dos seus serviços.

Uma áurea da mesma cor do portal envolve o homem e ele atinge Evelynn com maestria, a fazendo se desintegrar até o último átomo do seu corpo. Seus gritos cessam e ele se felicita em saber que ainda não foi consumido pela Maldição da Redenção.

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