Capítulo V - Pele de Cordeiro
O sol anuncia a sua chegada e ilumina o quarto arejado de uma das casas mais antigas da vizinhança, despertando Louis de um sono profundo. Atordoado pelo cansaço, ele olha para os lados e encara o papel de parede desgastado, cheio de ursos e nuvens desenhadas no fundo turquesa.
O cheiro do almoço percorre o corredor do segundo andar e passa por debaixo da porta, fazendo Louis inalar o perfume de uma culinária desconhecida. Sem perceber, ele se sente atraído pelo aroma picante e sai do quarto, indo até a cozinha e se deparando com sua família.
— Boa tarde, querido. —Flora, sua mãe, o recebe com um beijo na testa. — Acordou tarde.
— Já podemos comer? Tô com fome. —Adrian lambe os beiços, pronto para abocanhar o bobó de camarão.
— Claro, sinta-se à vontade. —Norman responde e se vira para o filho. — Vem, senta aqui, estávamos te esperando.
— Hum. —Louis diz com a boca seca. — Obrigado.
Para ele, é estranho estar ali. É como se ele não pertencesse aquela família, mas como sua barriga ronca, Louis apenas se senta e serve o seu prato com a iguaria afro-brasileira. Seu paladar pouco refinado se agrada ao provar da consistência cremosa, garantindo explosões de sabores na ponta da língua.
— Isso tá uma delícia. —Ele fala com a boca cheia. — Nunca comi algo tão bom.
— Bobeira, não sou ótima na cozinha. —Flora responde animada.
— Não seja modesta, amor. —Norman concorda com o filho. — Você é a melhor cozinheira do mundo.
— Devo admitir, senhora Reedus, isso tá divino. —Tales pronuncia após dar uma garfada no bobó.
— Por favor, me chame apenas de Flora. —Ela repreende Tales. — Não sou tão velha assim e você já é de casa.
O barulho dos garfos e das colheres batendo nos pratos se torna alto, demonstrando a felicidade deles. Flora se sente grata, afinal, ela ama ver as pessoas provando da sua comida. Seu sonho nunca foi ser mãe ou doméstica, mas era recompensador saber que ela estava desempenhando com tamanha graça e virtude.
Norman, mesmo ocupado com o serviço, sempre arranjava um tempo para curtir com a sua família, principalmente com Flora. Ele a ama sem precedentes e não se vê sem a esposa, nem mesmo na morte.
Tales, o melhor amigo de Louis, é como um irmão para ele. Na faculdade, Tales o defende com unhas e dentes, e sempre está ao lado do amigo, até nos momentos ruins. Ele sabe como é se sentir sozinho e deslocado, e talvez seja isso o que despertou a amizade entre os dois.
Adrian é um desconhecido ainda. Louis o conheceu num dos heliportos privados de São Paulo e ninguém sabe definir o que os dois têm. Não são amigos e nem inimigos, apenas colegas por conveniência. Mesmo distante emocionalmente, ele é uma boa pessoa e precisa de ajuda.
— Licença. —Louis se levanta com a mão na cabeça. — Não tô me sentindo bem.
— O que houve? —Flora demonstra preocupação.
— Nada, só fiquei esquisito de repente.
— É a ilha, né? —Flora insiste. — Todas as pessoas que você matou até agora.
— O que você disse? —Louis a encara com os olhos semicerrados.
— Que a louça é minha. —Ela sorri. — Eu que fiz essa bagunça, é justo que eu arrume.
— Eu te ajudo. —Adrian se oferece e Flora concorda com a cabeça.
Perplexo com o que acabara de ouvir, Louis vai até o banheiro e molha o rosto com a água da torneira. Ele encara o próprio reflexo no espelho e vê seu rosto quase desfigurado por causa do inchaço. Seu nariz começa a escorrer sangue e ele torna a molhar o rosto na água, mas com brutalidade.
Ele se encara novamente e vê um borrão atrás de si. Sem enxergar direito por causa da água que cobre seus olhos, ele pega uma toalha e seca o rosto, tendo o vislumbre de uma criatura horrenda repousando suas garras afiadas no seu ombro tensionado. Era Leshen, o bruxo do pântano.
O banheiro começa a descascar, mostrando suas paredes, chão e teto enferrujados. O aspecto metálico toma conta do restante do casarão e Louis se desprende da besta infernal, correndo até a cozinha para verificar se sua família está bem.
Ele encontra apenas a sua mãe lavando a louça e não dando a mínima para o cenário ao seu redor. Incrédulo, Louis se aproxima e vê a pia lotada de carne podre. O cheiro da putrefação impregna o local e Louis sente seu estômago revirar.
— Filho, mamãe tá ocupada agora. —Flora tenta cobrir a pia.
— Você não é minha mãe. —Louis responde com desgosto.
— E como você sabe? —Ela sorri. — Você nunca me conheceu.
— Meu pai sempre me contou sobre o quão amorosa você era.
— E quem disse que eu mudei? —Ela se vira para Louis. — Não há nada que um beijinho seu não resolva.
Sua roupa encharcada de sangue revela a selvageria humana e seus braços pintados no mesmo tom avermelhado tentam abraçar Louis, mas ele desvia e recua.
— Não quer abraçar a mamãe? —Sua voz se torna obscura.
— Você não é minha mãe. —Louis enfatiza.
— Mas eu posso ser, querido. —Ela pega uma faca pontiaguda e aponta para Louis.
— Larga isso!
— Pra você fazer comigo o mesmo que fez com seu pai? E com Tales? E com Adrian?
— Eu não fiz nada com eles. —Louis se estremece.
Flora tenta esfaquear Louis, mas ele desvia e a empurra contra a mesa. Os dois iniciam uma perseguição na casa que parece diminuir a cada passo, encolhendo ao ponto de sobrar apenas um cômodo: o quarto de Louis. Curiosamente, foi o único lugar que não descascou como o restante.
— Seu papai desapareceu e você não conseguiu encontrá-lo. —Flora encurrala Louis no canto.
— Por favor! —Ele implora e sente um corte no antebraço.
— Tales é o seu melhor amigo, você nunca o abandonou antes. Como acha que ele está se sentindo sem você? —Flora esfaqueia o outro antebraço de Louis.
— Pare!
— Já o Adrian... —Ela hesita. — Você o enfiou nessa confusão e agora ele provavelmente está morto.
— Isso não é verdade! —Louis berra.
Seu berro estremece a casa e faz Flora recuar, e Louis cai na real de que aquilo é uma ilusão. Leshen está manipulando os seus medos e se alimentando do desespero. Mesmo que a experiência seja vívida, não passa de um mero truque psicológico, vindo de um demônio que se aproveita das emoções humanas.
Num ato de impulsividade, Louis derruba Flora e pega a faca de sua mão. Ciente do que deve ser feito, ele precisa encarar o seu maior pesadelo: o fato de ter crescido sem o amor materno e sem alguém para chamar de mãe. Todas as outras crianças tinham isso, menos ele.
— Espera! —Flora implora e sua voz volta ao normal. — Nós podemos ser uma família feliz.
Sem remorso e disposto a escapar dessa ilusão, Louis finca a faca na caixa torácica daquilo que ele achava ser a sua mãe. Num grito de desespero e ódio, Flora começa a engasgar no próprio sangue e então seu olhar se torna vazio.
Lentamente, o corpo dela dá lugar ao de Leshen. Suas cascas de madeira apodrecem na medida em que o cenário ao seu redor volta a ter as características daquele pântano tomado pela escuridão.
Num último suspiro de vida, Leshen pronuncia as mesmas palavras que o Demogorgon e então sua alma repousa no calor das chamas do inferno, o lugar onde ele e o restante não deveriam ter saído.
Naquele momento, Louis percebe que travou uma guerra com o sobrenatural. Além dos habitantes da ilha, as bestas infernais que sobraram virão atrás dele em busca de vingança pelo nome dos seus irmãos. Pela primeira vez, Louis não sente medo. Ele está preparado para enfrentar o que cruzar o seu caminho, afinal, ele precisa achar Adrian e seu pai.
Desvencilhando de qualquer moral, Louis segue em frente e sai do pântano amaldiçoado, pronto para caçar alguns lobos em pele de cordeiro.
— Você é de outro mundo. —Aquele caçador se aproxima.
— Achei que não queria esbarrar comigo novamente. —Louis responde.
— Percebi que temos bem mais em comum do que eu imaginava.
— E o que você quer?
— Me ajude a derrotar essas bestas infernais e libertar o meu lar. —O caçador demonstra entusiasmo. — Em troca, te ajudo a achar o seu pai e o seu parceiro.
— Se você ousar me trair e me entregar de bandeja pra alguma seita maluca, eu juro que te mato. —Louis range os dentes.
— Temos um acordo então?
— Sim. —Louis estende a mão. — Qual o seu nome, caçador?
— Leni. —Ele pega na mão de Louis e sela o acordo com um aperto firme. — Venha, meu abrigo não tá longe daqui. Vamos cuidar desses ferimentos.
Tendo em vista que está perdido e sem rumo, até que não foi uma má ideia fazer um acordo com o diabo. Às vezes precisamos dar um passo para trás e pegar impulso para seguir em frente.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro