Capítulo III - Homem versus Natureza
Caminhando sem rumo, Louis diz para si mesmo que ele precisa seguir em frente, não importa o quão difícil seja. Embora o medo estivesse o consumindo aos poucos, ele tinha fé de que seriam resgatados.
Adrian, mesmo que escondesse, também estava com medo, mas não tinha coragem o suficiente para admitir. Não traçou um plano, muito menos uma forma de se manter vivo.
A noite assolava os dois e a fome apertava na medida que caminhavam, ao ponto de suas barrigas doerem. O frio não colaborava também e a única coisa que eles tinham era um livro velho.
— Ei. —Louis fala. — Tô vendo uma cabana ali na frente.
— Será que não tem alguém lá? —Adrian demonstra preocupação.
— Acho que não. As lamparinas estão apagadas.
— Talvez porque tá na hora de dormir.
— Vamos nos aproximar em silêncio...
Adrian confirma com a cabeça e eles se aproximam em passos cuidadosos, e Louis olha através de uma das janelas. A cabana está abandonada e seus móveis estão cobertos por panos brancos, quase cinzas pelo acúmulo de poeira.
Ainda com um pé atrás, Adrian abre a porta da frente e observa atentamente o local, procurando por vestígios recentes e não os encontra, logo se sente aliviado. Ao menos terão uma noite segura.
— Veja. —Louis retira o pano de um dos móveis. — É uma poltrona velha, dá pro gasto.
— Precisamos iluminar essa cabana. —Adrian responde enquanto fuça numa das gavetas de um pequeno armário.
— Desde que não chame atenção indesejada, eu concordo.
— Acho que não é mais segredo pra ninguém que tem dois forasteiros perambulando por aí.
— Ainda assim, não sabemos quem é quem. Prefiro continuar vivo do que pagar pra ver.
— Uhum.
Louis ajuda Adrian a procurar por fósforos ou algo que sirva para acender as lamparinas e acaba encontrando uma mochila surrada. Ele a abre e acha uma lanterna junto com alguns suprimentos e uma camisa, a vestindo em seguida.
— Não é do meu tamanho, mas serve. —Ele diz tentando ligar a lanterna.
— Tô começando a ficar com fome. —Adrian responde.
— Tem uns enlatados aqui. —Louis bate na lanterna e ela acende, iluminando o local.
— Estão vencidos. —Adrian se decepciona após inspecionar a comida.
— Talvez tenha alguma arma por aqui, podemos caçar...
— Se eu ao menos soubesse usar uma arma.
— Não deve ser difícil.
— Por que você não aprende então?
— Não curto usar armas.
Na verdade, Louis nunca matou alguém, nem um animal. Ele preza pela vida e não se imagina com as mãos sujas de sangue. Aquilo que aconteceu na arena não foi sua culpa, o monstro apenas se descontrolou.
— Vou ver se acho algo útil. —Adrian começa a procurar nos outros cômodos.
Entediado, Louis se senta no chão e pega o livro deixado por seu pai. Ele não leu nem metade e agora pode ser útil.
Folheando página por página, o livro conta mais sobre a ilha e tudo o que há nela, desde os habitantes até as criaturas místicas. Cinco delas em específico chamam sua atenção.
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"Demogorgon, a criatura de duas cabeças, é uma besta infernal com capacidade de pirocinese extraordinária, sendo capaz de incendiar vilas inteiras e reduzir pelotões a cinzas. Suas fraquezas são desconhecidas."
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"Nexu, o demônio do deserto, é uma das bestas infernais mais selvagens e perigosas. Seus espinhos são sua principal forma de defesa e ataque, podendo lança-las a distâncias enormes e perfurar até mesmo o metal mais rígido."
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"Wendigo, a besta da perdição, é uma criatura infernal com força física acima das demais. Sua brutalidade e velocidade são suas maiores características. É um ser completamente indomável e com uma sede de sangue insaciável."
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"Leshen, o bruxo do pântano, é uma besta infernal que manipula as emoções e os sentimentos de quem o encontra, tomando a forma daquilo que mais amedronta seu oponente. Sua força física é pouco notável, mas não subestime essa criatura... Ela se alimenta dos pesadelos e seu campo de batalha é a mente do homem."
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"Slyzard, a grande serpente-dragão, é uma besta infernal diferente das demais. Sua capacidade de vôo ultrapassa o céu e sua cauda funciona como um chicote potente, podendo derrubar construções com apenas um golpe. Sua pele é impenetrável e sua capacidade psiônica é um dos seus pontos mais fortes."
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Maravilhado e assustado, Louis se indaga como seu pai coletou tantas informações antes de desaparecer. A ilha, embora bela, esconde segredos nos quais ele não pretende descobrir. Ele só quer achar Norman e ir embora desse lugar.
— Tá gostando da leitura? —Adrian se reaproxima com um arco e algumas flechas.
— Não muito. —Louis suspira. — Acho que vamos enfrentar bem mais do que eu imaginava.
— E o que você descobriu?
— Além desses monstros? —Louis mostra as fotos para Adrian. — Descobri que vamos morrer rapidinho.
— Credo. —Adrian repreende as imagens. — Não seja pessimista, sobrevivemos antes e vamos sobreviver novamente.
— Eu espero...
— Venha, vamos caçar algum animal inocente. Minha barriga tá doendo já.
O humor de Adrian era duvidoso, mas caloroso e reconfortante. Louis tem medo do que a ilha pode lhe oferecer e estar junto do Adrian é sua melhor opção.
— Queria ter te conhecido em outra circunstância. —Louis diz após ir para fora da cabana.
— Obrigado, eu acho. —Adrian responde testando o arco. — Quando sairmos daqui, te levo pra beber um pouco.
— Eu não bebo.
— Ah. —Adrian ri. — Confie em mim, você vai querer beber.
— Se você diz.
Os dois caminham para longe da cabana, sem perceber que estavam se afastando mais do que o necessário, e avistam um pequeno cervo desavisado. Adrian se esconde atrás de uma árvore e Louis fica parado.
— É pra eu me esconder também? —Ele cochicha.
— Só se não quiser espantar o cervo. —Adrian responde no mesmo tom.
Louis vai para trás de uma moita e observa Adrian posicionando o arco, pronto para disparar uma das flechas. Sua concentração é do tamanho da sua fome e ele suspira, e então dispara contra o animal, acertando sua cabeça em cheio.
Louis desvia o olhar no intuito de fingir que não viu a cena e sua consciência pesa. Embora também estivesse com fome, ver a morte de um animal ao vivo não era seu sonho. Contra sua vontade, ele se aproxima do cervo e vê o animal sofrendo.
— Não, isso é de mais pra mim. —Ele se vira.
— Não entendi. —Adrian retira a flecha da cabeça do cervo.
— Ele ainda tá vivo, não vou comer isso.
— Desculpa, eu devia ter atirado com mais força.
— Vamos procurar uma árvore ou sei lá, deve ter alguma cheia de fruta.
— E deixar ele aqui agonizando? Sem chance. A merda já foi feita. —Adrian entrega a flecha para Louis.
— É pra eu fazer o que com isso?
— Uai, finalizar ele.
— Nananinanão, finaliza você.
— Louis. —Adrian segura firme suas mãos. — Vai continuar sendo esse chorão até quando?
— Se fode, otário. —Louis pega a flecha no impulso e se ajoelha perto do cervo.
O animal ainda agonizava e olhava para os lados na esperança de se recompor e fugir, mas as mãos de Louis foram mais ágeis. Numa tentativa de acabar com o sofrimento do cervo, Louis finca a flecha na barriga do animal e sente a ponta metálica rasgar sua pele, perfurando algum órgão vital.
Incrédulo com o que acabara de fazer, Louis se levanta rapidamente e encara Adrian como se despejasse toda a culpa nele.
Antes que pudesse dizer algo, os dois escutam um uivo alto e logo uma matilha aparece. Os lobos sentiram o cheiro do abate recente e perceberam que havia mais comida do que o esperado.
— Corre! —Adrian grita.
Louis se desespera e corre na direção oposta de Adrian, se desencontrando do parceiro alguns passos a frente. Com medo de ser alcançado por algum lobo faminto, Louis continua correndo e cai numa ribanceira, se machucando durante a queda e dando de cara com a água corrente.
Assustado, Louis se recompõe e rasteja até o outro lado, tomado pela lama. Os lobos rosnam e acabam recuando, e Louis suspira de alívio. Ao se levantar, ele vê um pequeno pátio com algumas estátuas e velas acessas, e um grande muro com um portão fechado.
Louis se aproxima e percebe que aquilo é uma espécie de culto, parece que alguém estava adorando algo. Há escritas feitas de tinta no portão e alguns desenhos borrados.
— Quando o sol se põe, nosso guardião nos protege. —Ele lê as escritas. — O tempo é o seu limite.
Curioso, Louis decide analisar as estátuas e percebe um nome entalhado nas pedras.
— Leshen? —Ele se lembra do bruxo do pântano. — Ah, não.
O portão se abre e Louis se assusta ao ver um pequeno grupo armado surgir do outro lado. São seis pessoas no total, todas portando um tipo de arma diferente.
— Eu não quero confusão. —Louis levanta as mãos.
— Então por que invadiu nosso território? —Um dos homens indaga.
— Eu estava fugindo de uma matilha e cai aqui sem querer.
— Mentiroso! —Outro homem grita. — Peguem ele!
Dois dos homens mais altos correm em sua direção e o jogam no chão, amarrando suas mãos em seguida. O homem que havia gritado se aproxima e chuta seu rosto, fazendo sangue espirrar de seu nariz.
Louis sente seu rosto formigar e sua visão escurecer, mas resiste e permanece acordado apenas para ser arrastado pelos pés até o lado de dentro do portão.
Após algum tempo, ele é largado junto de outros prisioneiros e um homem com vestes diferentes surge, indo até onde eles se encontram.
— De bandidos a forasteiros. —O homem desdenha e aponta uma pistola para um dos prisioneiros. — O que você roubou mesmo?
— Não é da sua conta. —O prisioneiro cospe.
Sem pesar, o homem atira contra o prisioneiro e o barulho ecoa, fazendo Louis se assustar e arregalar os olhos.
— Ah, perdão, nem me apresentei. —O homem sorri. — Me chamam de Carrasco.
Sem prestar uma atenção sequer, Louis permanece com os olhos vidrados na cena aterrorizante do prisioneiro morto e segura o choro.
— E quanto à você, forasteiro? —O Carrasco se direciona a Louis.
— Eu... Eu... —Louis gagueja.
— Sim, você. —Ele segura o rosto de Louis com brutalidade, o encarando.
— Por favor...
— Existem duas coisas que eu odeio nesse mundo: gente medrosa e covarde. —O Carrasco se enfurece e joga Louis contra a parede. — E você consegue ser os dois.
O homem dá uma joelhada na barriga de Louis, o fazendo recuar e gemer de dor.
— Só... Me mata logo. —Louis diz.
— Te matar? Não, eu ainda vou me divertir muito com você.
O Carrasco segura Louis pelo cabelo e o arrasta até uma pequena cabana, o jogando contra uma cadeira em seguida. Como se não bastasse, ele alterna entre socos de direita e esquerda, atordoando Louis por um momento.
— Tá gostando disso? —O homem debocha.
Sem esperanças, Louis é arremessado contra a porta e apenas aceita que morreria ali, então sente mais pancadas, se entregando ao seu destino cruel.
Sangue e mais sangue, o Carrasco continua torturando Louis, o arrebentando com chutes e socos. Ao mostrar que é superior, o homem segura Louis pelo pescoço, o deixando sem respirar e se afogando no próprio sangue.
— Você é bem resistente. Gosto quando duram mais, é divertido.
Desvencilhando da própria consciência, Louis sente algo tomar conta do seu corpo, o fazendo acompanhar a adrenalina que fora liberada durante as agressões. Era seu instinto de sobrevivência gritando internamente.
Assim como o fogo consome aqueles que desistem, Louis domou a chama incontrolável que queimava seu sangue e encontrou forças para seguir em frente.
Num ato de puro instinto, Louis derruba o homem e se desprende das amarras, indo de encontro com a adaga que jaz na bainha do Carrasco e arrancando ela com destreza.
Ainda tomado por aquela sensação avassaladora, Louis corrompe a própria moral ao perfurar a barriga do seu agressor, assim como havia feito com o pobre cervo, e numa sequência de golpes incessantes, Louis rasga a pele frágil do Carrasco, se banhando no sangue que jorrava dali.
Ao perceber que matou alguém, Louis larga a adaga e se joga na direção oposta do corpo, e começa a chorar.
— Não... Não... —Ele diz em meio as lágrimas. — Isso não é real.
Seu estômago revira e Louis vomita.
— Por favor, me perdoa!
Inegavelmente, isso foi um ato de sobrevivência, algo que Louis jamais pensou em fazer, mas as circunstâncias o obrigaram. Este é o homem contra a natureza, a sua própria natureza.
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