02. Deusa do Fogo
O vento soprava forte em um campo aberto. À minha frente, uma silhueta que eu seria capaz de delinear de olhos fechados e usando os dedos de pincéis, me encarava.
— Daevra. — sussurrei, e uma mulher de olhos estreitos, cabelos pretos e traços finos se virou. Seu sorriso fez meu coração apertar.
— Meu amor, você ainda se lembra de mim?
— Não poderia esquecê-la, Dara. — o apelido veio com naturalidade. Era um dos primeiros sonhos com ela em que eu sorria.
Tive certeza de que sua memória não era mais uma tristeza.
— Hoje sei que consigo ser feliz sem você. — algumas lágrimas turvaram minha visão — Obrigada por tudo que vivemos juntas.
Diferente dos outros sonhos, Dara ficou imobilizada, sem mais nenhum comentário em que sua voz melodiosa cicatrizava mais as feridas deixadas por sua morte. Assim, minha consciência retornou para um sono sem remanescentes do passado.
Acordei em sobressalto com um dos últimos estalos da fogueira, a memória de minha antiga amada demasiadamente fresca. Ela partira havia quatro anos, três antes de eu perder tudo.
Eu era grata por ela não ter enfrentado o que enfrentei. Não sei se teríamos as duas saído vivas daquela noite. A saudade às vezes corroía, não como antigamente, mas era como revirar um túmulo.
Olhando o céu noturno à procura de paz, rezei por Daevra. Respirei fundo e prometi a mim mesma que, de onde estivesse, ela poderia observar com orgulho eu retomar o que era meu por direito.
Apaguei a fogueira e parti, com a espada na cintura. Já era meu segundo dia de viagem, e o templo estava próximo. Era madrugada, mas minha visão se adaptou, a lua alta no céu enviando seus raios para servirem de tochas. Não demorei a chegar.
O templo se erguia como uma labareda rochosa em uma clareira, suas colunas de mármore laranja passando a impressão de que, mesmo à noite, qualquer luz que ali refletisse encandeceria a construção. Meu coração falhou uma batida.
Casa.
Contive meus pés de se apressarem. Mantendo furtividade, entrei por uma das passagens laterais. Desembanhei a espada e comecei a andar a passos felinos pelos salões.
Caminhei até o coração do templo, um pátio circular, murado somente por colunas com desenhos de chamas, sem limitações para o céu e os raios lunares que vinham de cima.
Era um espaço para se acender uma fogueira e deixar a fumaça seguir seu caminho até as estrelas, em dias e noites que uma prece precisava ser ouvida. Hoje, seria lugar para uma oferenda de vingança.
Passei a palma da mão na lâmina da espada, sentindo o filete de sangue esquentar a pele. Quando senti as gotas, foi como adrenalina: eu ainda tinha magia e faria bom uso disso.
Com um impulso natural, o fogo abraçou minha mão. Segurei a espada, que acendeu em runas avermelhadas e reproduziu as mesmas chamas, estendendo-as até sua ponta.
— APAREÇA, ARIANDRA! — vociferei, minha voz um rugido.
Não demorou para que tochas apagadas nas colunas se acendessem, e uma figura surgisse das fagulhas.
— Quem atreve proferir esse nome...
A ousadia em seu semblante morreu quando se deparou comigo, a palidez de sua pele se acentuando como se visse um fantasma. Um riso de escárnio rasgou minha garganta.
— Achou que havia me matado, mamãe?
— Firaine. — Ariandra tentou imitar minha raiva. Mas, ah, nada que ela fizesse se equipararia ao que eu sentia. Ela não era capaz de odiar a si mesma como eu a odiava.
Eu havia sido roubada de meu lar. Tendo o próprio fogo usado contra mim em um ritual que tirou meu posto entre os deuses. Parte de minha alma roubada, para que outra pessoa — minha mãe — assumisse meu lugar.
Mas o fogo era eu, e eu não deixaria de ser o fogo tão cedo.
— Vim assumir meu templo, Ariandra. — minha voz estava mais baixa, cortante — O meu lugar de direito.
Ela riu em incredulidade. Estreitei os olhos.
— Me poupe, criança tola. Eu quem sempre tive o destino de ser uma deusa.
— Não é culpa minha se foi você a desperdiçar esse destino. Você nunca mereceu ocupar um templo, sempre pensando em si mesma e nunca em atender as preces.
— Acredito que lidei muito bem com tudo no último ano.
— Tem certeza? Porque você também tinha acreditado "lidar bem" com minha morte, mas olhe só quem está falando contigo. — as palavras chegaram a ela como um tapa. Seu semblante endureceu. — Seu caminho até aqui foi feito aos tropeços.
— E agora vai aproveitar a época do ano em que o fogo fica fraco para retomar seu lugar? — havia um rastro de desespero no riso que Ariandra soltou — Você não tem chance.
— Eu tenho, pois se queria me deixar fraca, acredito que estou mais forte do que você.
Girei a espada na mão, e no meio do impulso para desferir o primeiro ataque, uma nova sombra apareceu no pátio.
— O que se passa aqui?
A voz de Daevra era uma que eu imaginei nunca mais poder ouvir, e já estava conformada. Mas vê-la ali, fez peças começaram a se encaixar em minha mente.
Daevra era uma sacerdotisa dos deuses experiente e, de repente, a dúvida que me assolou no último ano, de como minha mãe teria conseguido executar um ritual tão forte quanto o de roubar o pedaço da alma de um deus e absorver o poder para si, finalmente teve uma resposta. A mulher que amei esteve contra mim esse tempo todo.
Tudo em que acreditei, foi uma mentira.
— Não fui a única a ser pega desprevenida. Ela vem se mostrando uma ótima substituta para uma filha ingrata. — o deboche de Ariandra foi a última coisa de que minha raiva precisava para explodir.
Urrei, o barulho escalando na noite. Empunhei a espada nas duas mãos, sentindo o fogo consumir meu corpo. De castanho, meu cabelo foi para vermelho, e de marrons, meus olhos foram para laranja.
Há um ano atrás, eu queimava. Hoje, eu era a causa do incêndio.
A lua me observava mais uma vez, e ela foi a testemunha de quando cravei a espada no peito de Ariandra, proclamando minha alma de volta. Por um instante, eu me senti viva, recebendo a energia que me pertencia. No outro, eu vi pelo canto do olho a aproximação de Daevra.
Antes que sua adaga fosse uma ameaça real, uma massa de sombras se colocou entre nós. Segurando o braço dela com firmeza, apareceu Galen, com uma brutalidade em seus traços que nunca havia presenciado.
— Galen?
Sussurrei em dúvida. Não poderia ser ele, surgido das sombras, como a própria noite. Daevra o encarou, espanto sendo substituído por fúria. Enquanto isso, o corpo de Ariandra era consumido por chamas no chão.
— Veio atrapalhar as coisas outra vez, Merfiz?
O nome me levou de volta à infância perdida entre os séculos. Assim como eu, uma cria de um dos deuses antigos, um amigo distante. O deus do lado escuro da lua, o vigia da noite, que teria desaparecido sem maiores rastros — dessa vez, não como eu, que fui substituída sem saberem, mas como quem escolhe sumir. Eu não o via há eras.
— Atrapalhar ou consertar? O que acha que estaria ganhando com isso além de machucar a pessoa que mais te amou, Daevra?
O aperto de Galen — Merfiz? — ao redor dos pulsos de Daevra era ferro, e ela parecia minúscula diante da imponência dele. Ele era um escudo, um porto seguro para a minha vida.
Ao responder, Daevra se voltou para mim, a mirada perfurante.
— Acreditei que um dia você veria que sua mãe fez o melhor para você. O fogo ia te consumir com o tempo. Fiz aquilo para lhe proteger, Fira.
— Não ouse me chamar assim! — solucei. Minhas forças estavam começando a ceder.
— É mesmo, você me esqueceu. Trocou a minha memória pela dele! — seu olhar tenebroso passou para Galen, que não retrocedeu — Foi salva por ele e se esqueceu de tudo que vivemos juntas.
— Você bateu a cabeça, Daevra? — cuspi, o coração acelerando — Você fingiu a própria morte, nem fazia ideia de que aqueles sonhos... Você me vigiava por eles? Sabia que eu estava viva, e mesmo não tendo contado para Ariandra, não ajudou, só assistiu eu definhar por meses.
Eu dei alguns passos para trás, querendo vomitar. Galen se voltou um pouco para mim, mas Dara tentou se desvencilhar de seu aperto. Ele voltou a ser rocha, contendo-a.
— Eu nunca quis matá-la, Firaine. Fiz o ritual para que pudéssemos viver melhor, sem os deveres de deusa a consumindo tanto! Sua alma se apagava a cada prece atendida.
— Porque era inverno, Daevra! Enfraqueço durante o inverno para dar espaço às outras magias, mas retorno firme durante o verão e os dias de colheita. — fechei as mãos, para não lhe desferir um tapa — Você tomou essa decisão sozinha. Eu nunca teria concordado com isso.
Seu semblante ficou vazio. Se ela mantinha esperança de me convencer, morreu ali.
— Você realmente trocou algo verdadeiro por uma vida de mentiras ao lado dele.
Conversarmos sobre nós duas era algo. Mas colocar o nome de uma pessoa que nada mais fez que me apoiar no meio como culpada, era outro completamente diferente.
— Você quem me deu mentiras e trapaças, enquanto Galen — olhei para ele — Merfiz me deu bons momentos e esteve lá para me ajudar a não ser consumida em minha própria miséria. Ele me deu um lar.
Ao verbalizar aquilo, percebi que entre minha ânsia de voltar para casa e a saudade que se acumulava da cidade e da ferraria, não era de um lugar que eu sentia falta. Mas da pessoa, com sorrisos e avisos de cuidado constantes.
— E essa conversa se encerra aqui, como qualquer outra que poderia ter com você. Não desejo vê-la nunca mais.
Como se esperasse por essas exatas palavras, Merfiz a apertou mais forte e pronunciou:
— Suma.
Antes que Daevra retrucasse, raios lunares convergiram para onde ela estava, e em um clarão, a absorveram. No silêncio que se seguiu, com resquícios de fogo mágico desvanecendo o último membro do corpo de Ariandra, caí de joelhos, e me questionei se tinha mesmo recuperado minha alma.
Estava ficando difícil respirar, mas um abraço me acolheu. Como todas as outras vezes em que acordava com pesadelos em uma ferraria a dois dias de caminhada do templo, a presença me fez ser capaz de inspirar fundo e não ceder ao desespero.
Fitei Merfiz com novos olhos.
— Eu não acredito que você é aquele mesmo menininho com quem eu apostava corrida pelos vales. — sussurrei, maravilhada.
Merfiz se permitiu rir um pouco. Parecia sentir vergonha.
— Desculpe não ter lhe contado antes. No entanto, assim como você tem muitos nomes, Oriane, Firaine. — ele sorriu levemente — Eu também tenho alguns, e como Galen conduzi uma vida mais tranquila. Ainda auxiliava, vendo a todos que podia, pois a lua é o olho da noite, e nunca me distanciei daqueles que realmente chamavam meu nome. Mas eu fui fisgado pela ideia de viver entre os humanos.
Uma mão dele deslizou para minha bochecha, uma ruga de preocupação na testa.
— Até que eu a vi. Queimando, sofrendo em delírio dentro de si mesma. Uma deusa perdendo seu posto à força.
— Você quem me levou até a cidade! — exclamei — A lua nunca me olhou inquisidora, mas sim... Zelosa.
Segurei a mão de Merfiz contra meu rosto, e só assim percebi que chorava. De alívio, de tristeza, de contradição.
— Você me salvou. Sem você eu teria...
— Teria se resolvido. Eu conheço sua força, Firaine. Mas eu fiquei feliz por conseguir ajudar uma velha amiga.
Eu sorri. Verdadeiramente.
— Obrigada, por tudo.
Merfiz sacudiu a cabeça.
— Ainda assim, eu deveria ter contado. Sinto muito se soou como enganação, mas imaginei que poderia complicar para você, já que estava voltada a digerir o que tinha ocorrido e a se adaptar.
— Não se preocupe. Eu não tinha nada a ver com sua escolha de viver afastado, por isso, não pense que devia explicações. E, mesmo com o risco de ter sua paz perturbada, você me ajudou.
— Como não poderia? E eu iria contar a verdade, hoje, e te entregar algo, mas então eu vi o bilhete e...
Instintivamente, Merfiz levou uma mão ao pescoço, chamando minha atenção para além de sua fala. Ele carregava um colar de madeira novo, com uma flor entalhada.
— Um dos amuletos do festival? — franzi o cenho, e a voz dele ficou presa na garganta — Uma não-me-esqueças?
Não pude deixar de encará-lo.
— O que iria me entregar?
— O colar. — Merfiz o tirou do pescoço, deslizando-o pelo meu — Prometi a mim mesmo. Contar tudo, inclusive o que passei a sentir na sua presença. — ao mesmo tempo que ele suspirou, a ponta de seus dedos fez carinho em minhas bochechas — E ausência.
Não-me-esqueças. A flor da deusa do amor, que significava recordação, amor verdadeiro. Senti meu lábio tremer, e mais lágrimas caíram.
Abracei Merfiz como se minha vida dependesse disso, absorvendo-o. Com ele, eu respirava de novo.
Com ele, finalmente percebi que, de um solo de cinzas, novas flores ameaçavam brotar. Alguns exemplares de não-me-esqueças talvez já tivessem florido em minha alma até a próxima primavera.
Isso soava como o fogo. Ao mesmo tempo que perigoso, também reconfortante.
2199 palavras
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