Cap.28 (Parte 2: Promessa de mindinho?)
Inspiração que EU TIVE para o Capítulo:
Vem aí uma música de 1987, galera ♥
Acima dos antigos vulcões
Deslizando suas asas sob o tapete de vento
Viaje, viaje
Eternamente
...
Acima das capitais
Das ideias fatais
Olhe para o oceano
Viaje, viaje
Mais longe do que a noite e o dia
Viaje (viaje)
Pelo extraordinário espaço do amor
(Voyage Voyage - Desireless)
Imaginem Ravena, Oliver e Julie se divertindo ao som dessa música
Ravena
Sexta-feira
Mais um dia.
Faltavam quinze dias para o Domingo de Ramos, dia 24, então ia se iniciar Semana Santa e no dia 31 finalmente o Domingo de Páscoa.
Era incrível como as coisas podiam mudar em dias ou horas.
Quem eu era no começo dessa semana?
E quem eu estava sendo hoje?
Tudo mudou.
Oliver corria atrás do inseto por nome de Soldadinho, Julie fazia passarinhos de papel, o Tsuru, Olivia e Rute andavam pela escola inteira junto com Miguel e forçavam amizade com o novato, o seu Raimundinho andava com o apito por todo o jardim procurando alunos que podiam estar escondidos de trás das árvores.
Tudo parecia normal e que fazia parte da rotina, mas tinha uma coisa nova no meio da rotina de todos os dias.
Estava me descobrindo e ninguém na escola sabia disso
O mundo deles podia estar normal, meu mundo havia passado por mudanças e minha rotina diária foi abalada, mas ninguém parecia perceber.
Eu era lésbica e aí? O que fazer?
Nada.
E eu estava bem com isso por um lado, porque observava os pássaros voando e sentia uma alegria imensa, deitava na grama do jardim e percebia estar grata por alguma coisa que não fazia ideia do que era, desenhava e o desenho ficava perfeito como se enxurradas e mais enxurradas de inspiração tivessem sido jogadas em cima de mim.
Já por outro lado era difícil ignorar as perguntas que passavam pela minha mente.
E o garoto que insistia em aparecer nos meus pensamentos, garoto do qual não conseguia nem escolher como ia ser seu rosto ou a cor dos seus olhos, mas uma esperança aparecia sempre que pensava no futuro e em meu futuro namoradinho que eu ia conhecer
Pensava no garoto do futuro e só me preocupava em quando ele enfim ia aparecer e eu ia ficar livre de todos os sentimentos confusos
Esse garoto não existia. Só alimentou uma esperança inexistente
Só me enganei.
E a minha mãe que esperava me ver namorando com um rapaz direito? E o meu casamento onde ia casar de véu e grinalda?
O futuro genro dos meus pais. Ele não existia.
Meus pais nunca sonharam em me ver casando de véu e grinalda com uma... garota.
Os meus colegas da escola, moradores da cidade, adultos que eu nem conhecia, outros que eram invejosos e adoravam falar mal da minha família, meus pais e eu éramos como uma lenda.
Uma lenda real. A gente era real.
O que ia ser de mim no meu aniversário de 12 anos em dezembro?
Dona Vânia sempre insistia para fazer uma festa em comemoração do meu aniversário e na sala só ficava eu, ela e meu pai.
Ninguém mais comemorava, porque nunca tive amigos.
Esse ano ia ser diferente.
E como conseguiria lidar com o fato de ver Oliver, Julie, Jade e os meus pais na hora de cantarem o famoso: Com quem será com quem será que a Ravena vai casar?
E na hora de dizerem Vai depender vai depender vai depender se fulano vai querer
Dona Vânia podia inventar um romance imaginário entre eu e algum garoto da escola, mas nessa hora não ia ser fácil continuar observando eles cantando e não poder dizer a verdade.
Nem queria pensar em casamento agora.
Minha cabeça estava a mil.
Os moradores da cidade e meus colegas da escola nem sonhavam com meu dilema que precisava enfrentar sozinha
Sempre sozinha. Sempre.
Deitei de bruço sobre a grama e comecei a escrever no meu caderno.
09/03
Garotas
Cabelos macios, olhos brilhantes, estilo romântico, lábios pintados de vermelho, lábios chamativos que atraem a atenção de todos, pele macia e perfume floral. Faltam palavras para descrever toda a perfeição que as garotas são.
Uma garota tímida apareceu no meu campo de visão, a cor do seu cabelo lembra o sol em um lindo fim de tarde, eu abaixei a câmera digital ao ser surpreendida com sua chegada. Ela colocou a mão no rosto com vergonha e acabei tirando a foto sem pensar duas vezes, encarei a foto na câmera e sorri, era a imagem perfeita de uma linda garota e atrás o pôr do sol se mostrava presente, grandioso e aos poucos ele ia sumindo e perdendo o seu brilho, mas ela nunca podia perder seu brilho.
Era impossível isso acontecer.
Ela continuaria sendo a luz que iluminaria meus dias eternamente.
De: Ravena Para: Jade Luisa
Fechei o caderno.
Senti uma dor na minha barriga e fiquei meio enjoada.
Sentei e encostei as minhas costas no tronco da árvore, observei o banco solitário onde costumava ficar naquele tempo que não tinha amigos e aquela árvore imensa cheia de folhas e flores que escondia o sol, peguei na barriga.
Soltei o lápis na grama e fechei os olhos.
— Tudo bem aí, Ravena? — escutei a voz de Julie e ela pegou no tronco da árvore.
Abri os olhos.
— Estou um pouco enjoada — respondi — Devo ter comido alguma coisa que fez mal.
— Quer que eu chame a professora? — olhou para os lados — A professora Kátia deve estar na escola ainda.
— Não precisa se preocupar — forcei um sorriso — Em casa vou fazer um chá de boldo para mim.
— Isso, guria. Pede para sua mãe fazer um chá de boldo — concordou — Ainda bem que as provas acabaram.
— Pode deixar. Eu faço o chá — me levantei e peguei o caderno junto com o lápis — Devíamos comemorar que as provas acabaram.
— Comemorar como? — pegou o Tsuru — E desde quando tu sabe fazer chá sozinha?
— Para que tanta surpresa, Julie? — fiz uma careta por causa da dor — Oliver também ficou surpreso quando soube que sei fazer chá.
— Ah, mas tu sabe de tudo também — guardou o Tsuru na mochila — Onde vamos comemorar?
Oliver chegou correndo.
— Comemorar o que? — passou a mão no cabelo para afastar os cachos da testa.
Observei o seu cabelo castanho meio puxado para o loiro, sua respiração acelerada, mas não tirava o sorriso dos lábios.
— Comemorar que acabou as provas — Julie respondeu — Tu tem alguma ideia de lugar, guri?
Olhei para ele e nós dois já sabíamos a resposta.
Sorrimos cúmplices e gritamos:
— A lagoa encantada.
Julie começou a rir vendo a nossa animação.
— Finalmente vou conhecer essa lagoa.
— E finalmente Oliver vai tomar um banho na lagoa e perder seu medo de água.
Fiz massagem na barriga para tentar fazer a dor parar e tentei disfarçar que estava enjoada.
Julie não percebeu minha careta de dor ou a massagem e segurou a risada.
— Como é que é? Nosso amigo aqui tem medo de água?
— Cala a boca, Ravena.
— Ele tem medo de água sim e digo mais...
Oliver juntou as mãos e faltou implorar para não contar mais nada.
— Morre de medo de tempestade.
Sorri para ele e pisquei o olho.
Julie continuou segurando a risada.
— Caramba. Isso nem eu esperava.
Oliver cruzou os braços e apertou os lábios.
— Fica com raiva não, amigo — apertei sua bochecha — Precisa perder o medo.
Ele pegou minha mão, me puxou para perto, sorriu bem forçado para Julie e abaixou o tom de voz.
— Acha que eu vou perder meu medo assim? Vai me ajudar com situações onde posso ficar exposto?
— Não foi minha intenção — comecei e vi uma magueira jogada pela grama — Mas podemos fazer algo divertido para te ajudar a enfrentar seu medo.
— Algo divertido? — continuou falando baixo — Tipo o que?
— Promete não ficar chateado comigo? — levantei o dedo mindinho — Promete não gritar e tentar se divertir?
Ele me olhou desconfiado.
— Estou ficando arrependido por ter perguntando — balançou a cabeça — Eu prometo não ficar chateado e nem gritar contigo. Vou tentar me divertir.
— Promessa de mindinho — continuei insistindo — Não pode voltar atrás.
— Agora tá parecendo Olivia falando com esse negócio de promessa — ele levantou o dedo mindinho e eu envolvi o meu com o seu.
Desviei o olhar quando percebi que ele havia dito o nome de Olivia, ao lembrar dela só consegui recordar da raiva e de ter ficado magoada com suas palavras maldosas naquele dia, nenhum mínimo de sentimento bom tomou conta de mim.
— Nem fala o nome dessa garota — revirei os olhos — Então tá feito nossa promessa.
Esperei ele olhar para trás distraído e peguei a mangueira que estava jogada.
Virei o rosto para ver se Julie estava vendo.
Ela sussurrou um “Não não não Ravena nem se atreva a fazer isso.”
Era para o bem dele. Agora ou nunca
Corri e liguei a torneira rapidamente.
Juju abaixou a cabeça e colocou a mão no rosto.
Levantei a torneira na direção dele e um monte de água acabou acertando em cheio o garoto cansado que estava bem na minha frente.
Gritei enquanto segurava a mangueira vendo o poder da água e o quão forte ela podia ser.
— Ravena — ele gritou colocando as mãos no rosto — Você vai me pagar por isso. Para, para, para. Desliga isso.
Tentei acalmar a situação e respirei fundo sem mostrar arrependimento.
— Você prometeu. Promessa de mindinho não pode ser quebrada.
Ele começou a pular e saiu correndo para o lado direito onde ficou de baixo da sombra da árvore.
Seu cabelo castanho ficou totalmente molhado e sua roupa pingava como se estivesse sido lavada agora e estivesse no varal enxugando.
— Eu te odeio — ele falou mais baixo e tentou se livrar da água — Por que fez isso?
Eu e Julie nos entreolhamos.
— Porque Ravena é teimosa e quis fazer uma brincadeira, não foi?
Lançou um olhar para mim e confirmei rapidamente.
— Exatamente. Desculpa, Oliver. Não fiz por mal.
Ele começou a andar de um lado para o outro com os braços abertos e eu fiquei envergonhada observando Julie que desaprovava minha atitude.
Em um momento ele abaixou os braços e foi para de trás da gente, eu nem se quer tive coragem de olhar para ver onde ele estava indo, tinha brincado com coisa séria e deixei meu amigo com raiva.
Escutei ele gritando em alto e bom som e nós duas quase pulamos assustadas.
— Desculpas aceitas se você deixar eu fazer isso.
Me virei para trás a tempo de ver um jato de água me atingindo em cheio.
— Agora aceito suas desculpas.
Ele gargalhou vendo eu ficar toda molhada e fios do meu cabelo se apregando pelo meu rosto.
Corri rápido, peguei a mangueira das mãos dele, começamos a rir juntos e virei a mangueira para o lado dele.
Ficamos nessa luta tentando pegar a mangueira da mão do outro e acabamos ficando encharcados de água.
Julie veio em nosso socorro e acabamos molhando ela também.
Caímos na grama rindo alto e consegui jogar a mangueira para o lado, mas a torneira ainda estava ligada.
Crianças passavam.
Só não apareceu nenhum professor.
— Meu Deus — Juju respirou fundo — Vocês são doidos. Podíamos ter feito o jardim inteiro ficar igual um rio.
— Que exagero — sorri fraco tentando recuperar o fôlego — Foi divertido.
— E eu me vinguei da Raven — ele disse orgulhoso.
Dois meninos passaram perto da gente e pararam para observar a cena.
— Achamos nosso velho Ollie — um deles falou — Tá brincando de quem tem a risada mais feia com suas amigas?
— Que brincadeira mais sem graça — o outro comentou — Grupo do esquisitão , da estranha e da bruxa.
— Quem é estranha? — Juju levantou — Eu só vejo dois guris chatos na minha frente.
Ignorei os meninos e percebi algo diferente acontecendo.
Agarrei a mão de Oliver.
— Ei — sussurrei — Você conseguiu. Nós conseguimos. Perdeu seu medo de água.
Ele ficou pensativo e analisou sua roupa molhada.
Vi seu rosto se iluminar.
— Vão embora daqui — ele levantou do nada — Sou nerd e com orgulho e agora apresento minhas amigas, Julie, a garota mais incrível da cidade e que ganharia de vocês nos jogos do fliperama, minha outra amiga, Ravena, que pode ser considerada curandeira e amiga de todos com seu enorme coração, tipo coração de mãe, sempre cabe mais um, e olhando para os meus antigos colegas de sala... não consigo achar qualidades e nem nada bom para compartilhar.
Levantei em seguida e analisei eles com atenção.
Os meninos encararam Oliver sem mostrar nenhuma reação e não recuaram.
— Nunca tive medo de água, Jonas, e nunca fui esquisitão e enfrento toda tempestade que aparecer.
— Continua sendo uma menininha cheia de frescura.
— Não, Jonas, eu só era muito pequeno quando nos conhecemos e mudei muito, e quanto a você, Lucas, não pode falar mal das minhas amigas, pois Ravena é a única filha do casal feiticeiro e ela pode curar as pessoas com chá medicinal, ela tem uma inteligência absurda e anda pelo meio do cemitério a noite, pode enfrentar a escuridão e ninguém aqui se atreveria a chegar perto do cemitério a noite, então me deixem em paz que eu tenho as melhores companhias por perto e nunca fui esquisitão.
Encarei o garoto corajoso e minha boca devia ter formado um O perfeito.
— Caramba — deixei escapar — Onde tá o Oliver verdadeiro e quem é esse super corajoso?
— Finjam que tem uma porta atrás de vocês — Juju disse — Aproveitem para sair, porque já passaram muita e muita vergonha por hoje, não foi?
Ela fingiu pegar em um trinco invisível e abrir a porta imaginária.
Eles saíram rindo da gente e zombando.
— Meu Deus — Juju pegou nos ombros dele — Tu enfrentou os valentões. Esses guris vivem tirando o sossego de todos desde que chegaram na escola.
— Sou muito esperto — pegou sua mochila — Mereço um prêmio.
— Vai ficar se achando — empurrei ele — Tive vontade de bater nesses dois e não ficaria arrependida se fosse parar na diretoria por causa disso.
— Somos duas — ela concordou — Eu ia contigo parar na diretoria, mas o nosso amigo soube como enfrentar eles.
Começamos a empurrar um ao outro rindo e alguém desligou a torneira.
— Caiu uma chuva e eu não vi?
Jade Luisa segurava a mangueira e esperava uma explicação.
Tentei ficar séria vendo sua expressão confusa e perguntei:
— Quer participar da brincadeira também?
Tentei ligar a torneira e ela ficou na frente impedindo.
— Ah, então um abraço pode.
Jade não conseguiu se livrar e abracei ela.
— Você me paga, Ravena.
Fiquei mais séria e falei com o tom de voz inocente:
— Foi só uma brincadeira, Jade.
Oliver e Julie pegaram suas coisas.
— Já vou para casa, gente — ela avisou — Preciso tomar um banho de verdade.
— Também vou — ele me empurrou de novo — Vamos apostar corrida até o portão? Quem chega primeiro?
Eu e Jade nos entreolhamos.
— Então — ajeitei a saia — Vamos ficar conversando... sobre as provas — tossi disfarçando — Outro dia aposto corrida com você, nosso atleta.
Eles se despediram.
Jade desviou o olhar e pegou o meu caderno que estava jogado pela grama bem protegido de baixo da árvore.
— Estava desenhando? — passou o dedo na capa.
— Não. Estava escrevendo — peguei o caderno.
Guardei o caderno na mochila e notei que a dor havia passado.
— E não posso ver o que escreveu? — fez beicinho — Tanto suspense...
— São coisas pessoais — senti minhas bochechas esquentarem ao lembrar do texto.
— Ei — pegou no meu queixo — Tá com vergonha?
— Eu? — soprei um riso — É claro que não.
Ficamos sem saber como encerrar o assunto e fiquei mais envergonhada ainda.
Limpei a garganta.
— Vamos subir na árvore?
— Como... como assim?
— Confia em mim?
— Claro que confio, mas podemos cair, Ravena. É muito alto.
— Confia ou não confia?
Sorriu nervosa.
— Confio em você.
Pedi para ela ir primeiro, segurei na sua cintura com cuidado e fui orientando os primeiros passos para pegar o jeito de subir em árvores.
Estávamos na escola, porque dias de provas a gente saia cedo, então os alunos do ensino médio estavam tendo aula e por isso a gente podia ficar aqui o tempo que quiséssemos.
— Pega na árvore com as duas mãos para se apoiar, agora coloca um pé no tronco, tenta subir com cuidado e depois coloca o outro pé.
Ela fez como eu orientei.
— Vou cair — disse quando olhou para baixo.
— Não vai — assegurei — Coloca o pé nesse galho e vai abrindo caminho por entre as folhas.
Ela respirou fundo e voltou a subir.
Aproveitei para subir também e fui mais rápida.
— Assim não vale — suspirou — Você sabe subir em árvore e tem toda essa confiança. Já eu sei nem para onde vai.
Jade sentou em um galho e percebi seus dedos tremendo, ficou de cabeça erguida sem se atrever a encarar o chão, tirou uma folha e soltou outro suspiro.
Deitei de bruço sobre o galho, deixei meus braços caírem, observei a linda paisagem do jardim cheio de plantas.
— Suspirou por ter ficado cansada? — perguntei — Ou teve outro motivo?
— Teve outro motivo — respondeu com receio — Meu pai tá muito autoritário ultimamente. Não para de pegar no meu pé desde que descobriu sobre a asma.
— Ele sempre foi autoritário — senti o vento soprar no meu rosto.
— Vou te contar, Ravena — cruzou as pernas — É muito difícil lidar com tudo isso.
— Ei — sussurrei — Vai ficar tudo bem.
— Ficará tudo bem no dia que meu pai mudar, parar com autoridade e parar de ser exagerado — ficou desconfortável — Vai ser o dia mais feliz da minha vida.
— Talvez eu vá te fazer ficar feliz com um convite — fiz suspense — Vamos visitar a lagoa encantada para gente comemorar o término das provas.
Ela bateu palmas na tentativa de mostrar felicidade.
— A tarde é toda nossa — sentei perto dela — O nosso quarteto junto na lagoa encantada. Tem coisa melhor?
Beijei sua bochecha.
— Tem sim — sorriu — Em primeiro lugar fica nosso quarteto e em segundo lugar fica... em segundo lugar fica você.
— Tá fofa hoje — brinquei — Toda romântica.
— Eu sempre sou fofa — franziu as sobrancelhas — O que aconteceu para gente começar a gostar uma da outra assim desse jeito?
Encostei minha testa na sua bochecha e fechei os olhos.
— Errou na pergunta, Jade, fez uma pergunta proibida no momento errado.
— Fala sério, Raven. A um mês atrás eu achava nojento ver casais se beijando e nunca pensei em dar meu primeiro beijo com 10 anos.
— Eu nem pensava em beijo a um mês atrás. Estava preocupada demais com minha rotina monótona e ficava cheia de culpa só porque acabava vendo uma menina trocar de roupa para educação física e eu ficava super envergonhada por estar vendo a cena e achava errado ficar observando elas trocando de roupa.
— Enquanto eu aqui vivia me sentindo culpada pelo simples fato de ficar com borboletas no estômago se passasse muito tempo olhando para uma menina.
— É tão bom se libertar e permitir que a sensação boa faça morada no nosso coração, não é?
— É maravilhoso e assustador também.
— É assustador mesmo. Ainda me sinto culpada as vezes quando caio na real e lembro que sou lésbica.
— Você não tá sozinha nessa, Raven. Sentir culpa paz parte da rotina diária, até acostumei com a triste realidade, a única coisa bonita nessa história é o orgulho que sinto ao dizer a palavra lésbica, um casal de mulheres parece tão poético e romântico, ser lésbica pode ser difícil as vezes, mas espero nunca cansar dessa palavra e conseguir dizer a frase em voz alta.
Fiquei emocionada com suas palavras, notei as folhas das árvores se mexendo com o vento, o céu estava como um verdadeiro espetáculo cheio de nuvens paradas e o sol se escondendo.
— Qual frase?
— Essa frase: eu sou lésbica. Espero dizer isso um dia e ter orgulho.
— Vamos ter orgulho sim, Jade. Somos lésbicas e vão aparecer obstáculos, vamos ter a impressão de ver o nosso mundo desmoronar, e em outros momentos vai ser incrível saber que gostamos mesmo de meninas e sentiremos muito orgulho, por último vão surgir os momentos desconfortáveis com parentes querendo saber dos namoradinhos quando tivermos na adolescência.
— É, ser lésbica é um misto de sensações juntas e misturadas, acima de tudo vem a dúvida se estamos no caminho certo e deixando Deus feliz.
— Deve existir um Deus para ter criado todo o mundo e as paisagens perfeitas,
os animais e as plantas, se Ele existir de verdade então explica o motivo desse céu espetacular, dizem que Deus é amor, Ele ama seus filhos e do pouco que sei sobre Deus... sempre ouvi falar do seu amor incondicional.
— Ele existe sim, Deus é amor, só que fico triste de pensar na possibilidade de estar deixando Deus triste, o certo é um menino e uma menina, duas meninas é considerado pecado.
— Não vamos pensar nisso, por favor.
Cortei a conversa e um arrepio percorreu pelo meu corpo.
Estávamos pecando por sermos nós mesmas
— Fica calma. Nem sempre precisamos seguir o que é considerado certo para os moradores do Lugar das Lendas.
— Tem alguém vigiando a gente?
— O jardim tá bem silencioso, Ravena.
— Estamos sozinhas — beijei a ponta do seu nariz e ela riu — Preciso ir logo e me livrar dessa roupa nolhada.
— Ah, não quero ir para casa — ela choramingou — Meu pai vai pegar no meu pé de novo. Prefiro ficar contigo.
— Imagina dona Vânia e seu Gilberto juntos — suspirei — Ficar contigo é mil vezes melhor.
Descemos com cuidado da árvore e fizemos a parte mais difícil: a gente precisou dizer tchau e voltar para realidade que nos esperava.
(Depois do almoço)
Não comi quase nada no almoço e senti minha barriga doer sem parar, tive que deitar um pouco, me levantei e percebi algo vermelho no lençol, o meu coração acelerou.
— Sangue — minha cara devia ter ficado branca igual papel.
Corri em direção ao banheiro e peguei um balde de água junto com uma escova grande que dona Vânia usava para lavar as chinelas sujas.
— Correria grande é essa, garota? — ela colocou a cabeça para fora e pegou no trinco da porta do seu quarto.
— Eu estou mal hoje — disse rápido — Não precisa ficar preocupada. Tomei o chá de boldo.
— Vai fazer o que com esse balde e essa escova? — arqueeou a sobrancelha.
— Limpar... — mordi o lábio — O lençol da cama ficou sujo.
Corri para o quarto e ela veio atrás.
— Meu Deus — colocou a mão na boca — Eu não estou acreditando.
Passei a escova no lençol tentando tirar a mancha.
— Filha — gritou — Pare de passar essa escova. Deixe que eu cuido da mancha.
Segurou nos meus ombros e nós duas sentamos na cama.
— Vou ficar bem. Estava descansando e do nada essa mancha surgiu no lençol.
— Você deve estar com medo. Ah, filha, é normal ficar assustada.
Ela me puxou para um abraço e eu estranhei sua emoção.
— Finalmente chegou seu momento. Lembra da nossa conversa sobre seu corpo mudar e você virar uma mulher?
— Lembro.
— Aconteceu. Tá pronta para virar uma linda mulher.
— Eu sou só uma criança, mãe.
— Uma criança madura e inteligente.
— Não estou entendendo... aquele assunto de eu virar mulher era isso?
Um ponto de interrogação surgiu na minha mente.
— Exatamente. O ciclo dura somente dias e é todo mês. O sangue faz parte do processo então não tem motivos para temer.
— Não tem motivos? Vou sentir dor todo mês e não tem motivo nenhum para temer?
Ela beijou minha testa.
Mais estranho ainda
— Faz parte do processo, filha. As mulheres passam por esses ciclos.
— A senhora tá satisfeita em saber que virei mulher? Jura, mãe?
— Claro. É um momento bem marcante. Verá mudanças no seu corpo e alguns pensamentos diferentes, os meninos vão te respeitar, aprenderá a se comportar como uma verdadeira dama.
— Menos, mãe, bem menos. Cuidado para não cair do cavalo, porque ainda tenho 11 anos e não quero ser uma dama ou uma noiva prestes a obedecer todo mundo e casar com o príncipe.
— Ah, o que importa é que gosto de te aconselhar e faço o possível por sua felicidade.
— Não fico feliz por estar passando por um ciclo doloroso como esse.
(15h10)
Era de tarde e eu estava passeando pelas ruas praticamente desertas do Lugar das Lendas.
Tomei o “chá milagroso” que minha mãe havia feito e parou com o enjôo.
A igreja católica logo apareceu no meu campo de visão, encarei a cruz no topo da construção, pessoas entrando para rezar.
Mal tive tempo de raciocinar e meus pés já estavam indo de encontro a entrada da igreja.
A curiosidade foi grande ao ver a igreja com poucas pessoas e poder sentir livre de alguma forma, porque não tinha ninguém disposto a me julgar.
Aqueles santos nas paredes pareciam acompanhar eu andando a cada passo que dava.
Cheguei no altar e uma voz masculina fez eu congelar diante do altar e mal conseguir falar.
— Oi, garotinha — o padre disse — É bom te receber novamente na casa de Deus.
Virei devagar e meus sapatos fizeram barulho quando quase cai por ter desequilibrado.
Padre Luciano, o mesmo que falou sobre a quaresma naquele dia, permanecia com a expressão serena e um sorriso gentil iluminava sua face.
— E-eeu b-boaa tar-tarde... padre — engoli em seco — Padre Luciano.
Gaguejei como uma criancinha medrosa.
— Fique calma, filha, seja bem-vinda a casa de Deus. O que te traz a esse lugar?
Limpei a garganta e encontrei forças para testar ele.
Não era possível ele estar me tratando bem sabendo quem eram meus pais
Algo estava errado
— Qual é, padre Luciano? Estávamos só nós dois. Pode confessar que tá com esse tratamento estranho por medo de gritar comigo e eu contar aos meus pais como você reagiu com minha visita.
— De maneira alguma, nunca reagiria mal com a presença dos fiéis, Deus disse: “Deixai vir a mim as criancinhas e não as impeçam, pois o Reino do Céu pertence aos que são semelhantes a elas.”
Cocei o braço ao escutar outro versículo bíblico e cada vez mais surpreendia com novos versículos.
Oliver tinha dito um versículo quando o conheci: “Não julguem, para que vocês não sejam julgados.”
— Esse versículo é novo, padre. Bom, de qualquer modo, ainda desconfio das suas boas ações ao escolher tratar bem a filha do casal feiticeiro.
— É uma filha de Deus como todos nós, querida, tem sentido nenhum agir com ignorância contigo ou desprezo, eu posso ser padre só que continuo sendo apenas um ser humano e reconheço que o poder vem de Deus, sem Deus não sou nada, somos humanos imperfeitos e sempre temos ao nosso Pai para pedir ajuda.
Fiquei sem palavras e não soube como reagir.
— Fico triste ao ouvir os julgamentos dos moradores a respeito da sua família, é cruel demais, tenho que rezar pedindo a Deus misericórdia pelos comentários maldosos.
Procurei a imagem dos santos em busca de esconder o nervosismo e a vergonha.
— Eu estou disposto a ajudar e ser o seu professor se quiser aprender sobre a vida de Jesus. Podemos buscar respostas na bíblia.
Ele pegou uma bíblia pequena.
— Fique com essa bíblia. Pode ler em casa e tirar as dúvidas nos dias que seus amigos vierem assistir as missas.
Peguei a bíblia e abri rapidamente me deparando com os livros do meio e um deles era Marcos.
— Não vou prometer ler tudo e nem sei se terei perguntas a fazer, pois nunca tive muita curiosidade.
Eu menti
Tive curiosidade em saber sobre a quaresma no dia que o padre Luciano ensinou e passou a atividade da coroa de espinhos
— Saia da defensiva, filha, não faz bem ficar “atacando” os outros assim, pois em alguns casos, como esse, só quero te ajudar a entender a bíblia.
— Vou lembrar disso, padre. Obrigada.
Ele saiu do local e respeitou minha privacidade de ficar um tempinho sozinha.
Nem meus sonhos esquisitos seriam assim
Eu conversei com o padre Luciano
Porém, a desconfiança fazia parte de mim e era difícil escapar dela.
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