13 O RELATO DE JORIM
A PRAÇA A TRÊS QUADRAS DE CASA ESTAVA LOTADA NAQUELA NOITE. Crianças corriam de um brinquedo inflável para outro, os esportistas de fim de expediente caminhavam ou corriam, donos de cachorros levavam os filhos de quatro patas para um passeio. Em uma lateral da praça, sob o arvoredo, food trucks aproveitavam o movimento para faturar com variedades de hambúrgueres, tapiocas recheadas, cuscuzes desconstruídos e sorvetes construídos como pequenos Everest a serem desbravados.
À espera da sua rodada de doçura gelada, Lucas contava a Jorim sobre o andamento dos planos com o Wattpad. Ao lado, a tia escutava a conversa com olhos e ouvidos afiados.
— ... e aí, a gente decidiu publicar o que o cara nos mandou. Todo mundo ficou empolgado. Foi a primeira mensagem que recebemos assim.
— Mas vocês vão contar o que aconteceu com vocês mesmos, né? Quer dizer, não faria sentido fazer uma coisa assim se esse não fosse o objetivo inicial.
— É claro que vamos. Eu, a Domingas e o Evandro achamos que ainda não está na hora de contar a nossa história. Ia ficar muito na cara que somos nós que escrevemos o livro.
— E o Otávio?
— Ah, se fosse por ele a gente já estaria na Ana Maria Braga mostrando a cara e falando tudo doa a quem doer.
— Vocês não podem discordar que seria muito mais impactante, né?
— É... — Lucas cutucou a cestinha com guardanapos. — Mas também ia atrair muita atenção para coisas que queremos deixar bem escondidas.
Jorim assentiu e olhou para a folhagem acima. Uma brisa sacudia as árvores e proporcionava aquela temperatura agradável. Distraído, balançou-se em apenas duas pernas da cadeira. Miridéia mandou o filho parar de fazer isso e o rapaz obedeceu, voltando a questionar o primo.
— Mas já tem comentários nesse... Como é o nome mesmo?
— Wattpad.
— Exato. Alguém já comentou?
— Não, nenhum comentário. Quer dizer, nenhum comentário que chame a nossa atenção. Tem muita coisa de "nossa, comigo, é assim também" e emojis de susto e de choro. A gente sabe que algumas pessoas leram, mas ainda não teve nada além disso.
— Sei — o primo ia reiniciar o balançar a cadeira, mas foi olhar para a mãe e desistir da ideia. — Aluno gosta mesmo é de falar mal de professor, essa que é a verdade. Vocês já pensaram em fazer um texto sobre os professores, o que não fazem para impedir os ataques, essas coisas?
— Já e...
— Mas nem pensar! — Jorim e Lucas olharam para a mulher. Se os lábios dela estivessem mais retesados, desapareceriam. — Por que envolver os professores? Muitos deles são tão vítimas quanto os alunos.
— Ah! Aí a senhora falou certo, mamãe: muitos deles não são todos.
— É, Jorim, mas se eles usarem essa ideia de girico pra começar a atacar professor, vai acabar envolvendo todos, inocentes ou não. Ainda mais que um deve saber o que os outros fazem.
— Mas aí a senhora acabou de admitir que mesmo os inocentes compactuam (falei bonito!) com a escrotidão dos colegas.
Miridéia ia responder, mas parou quando o garoto do food truck chegou com as cestinhas de sorvete deles.
— Vocês querem cobertura?
Jorim apontou para a mãe.
— Ela aqui quer, ó. Ela adora acobertar tudo o que pode. Aqui é Caixa 2, filhão.
O atendente pareceu constrangido e saiu de fininho.
— Jorim, ficaste doido?
— Foi só uma brincadeira, mãe! Relaxa.
— É por essas e outras que as pessoas ficam mal faladas pela internet — virou-se para o sobrinho. — E vocês deviam tomar mais cuidado com essas coisas.
— Nós estamos tomando, tia.
— Sorvete — Jorim disse com a boca cheia. Levou um beliscão de Miridéia.
— Olha, vocês não conhecem o diretor de vocês como eu conheço. Ele não chegou onde está sendo bonzinho e pacífico. Ouve o que eu tô dizendo.
— Ouve e anota, Lucas. Informação bombástica. "Ex-funcionária revela esquema milionário na Damariana".
Lucas e Miridéia olharam ao redor, assustados. Por sorte, as pessoas das outras mesas pareciam mais interessadas nas próprias comidas. Às vezes, o perigo de sair com Jorim era que o primo não se continha e falava mais do que devia. E alto, quase aos berros.
— Fala baixo, pequeno! Quer fazer graça agora? E mais: não te esquece do que aconteceu.
— O que, querida mamãe?
— Que depois daquela confusão com o Ronnie e com o Cléver que podia destruir tua vida, Seu Isaú foi muito compreensivo.
Jorim estremeceu ao ponto de deixar sua cereja cair.
— Compreensivo? Ah, claro! O fato de que até hoje eu nunca ter conseguido sair daquele açougue e de todas as vagas de emprego que eu procuro serem rapidamente ocupadas não tem nada a ver com o santo Fauller, né?
— Ora, tu mesmo dizes que gosta do teu trabalho lá; que não se vê em lugar melhor.
Jorim espetou outra cereja com tanta força que quebrou o fundo da cestinha.
— Gostar não significa que eu sonhava em ser açougueiro, né mãe? Ou vai me dizer que quando eu nasci a senhora me pegou e pensou "Ah, meu açougueirozinho lindo! Vai me trazer tanta carne!".
— Jorim, nem sempre conseguimos o que queremos. Óbvio que eu sonhava em ter um filho que tivesse uma vida diferente, diploma, essas coisas. Mas o destino e a sorte nem sempre ajudam.
— O destino, a sorte e seu ex-chefe, né, mãe? — Tentou espetar sua terceira e última cereja, mas esta voou para longe. — Que bosta!
Miridéia não conseguiu esconder o sorriso. Pegou uma das cerejas do seu sorvete e ofereceu na boca do filho, com direito a voz infantil e ''lá vai o aviãozinho, Jorim!''. Enquanto o rapaz fumegava de vergonha e a tia sorria ainda mais, Lucas percebeu algo diferente, uma névoa que emanava do rosto dela; preocupações entranhadas que, talvez para evitar maiores danos, a tia preferia guardar só para si.
Essa era uma habilidade que Jorim não possuía.
***
NA VOLTA PARA CASA, O CLIMA DE FRESCOR PELAS RUAS DO BAIRRO AMENIZOU AINDA MAIS A CAMINHADA DA FAMÍLIA. Jorim brincou com a mãe, ameaçou que iria fugir de casa quando fosse para São Paulo fazer um curso, carregou Lucas no colo, correu para atrapalhar o jogo de futebol das meninas. Ao chegarem em casa, o garoto notou que Miridéia estava tranquila, uma expressão relaxada de quem conseguiu vencer uma guerra. Quando foi dormir e passou no quarto de Lucas, a tia parecia ter rejuvenescido uns dez anos.
"Ser mãe de Jorim não é fácil...", ele concluiu quando ela lhe deu boa-noite e fechou a porta.
Passaram-se exatos trinta minutos, porém, para a porta voltar a abrir e o primo escorrer para dentro do quarto. Trazia consigo uma expressão de determinação que fez Lucas ficar na defensiva. Conhecia-o bem para saber o que aquilo significava: rebeldia.
Pior ainda, trazia um papel na mão.
— Toma. — O garoto não pegou. Estava com medo de ser uma bomba. — Não é uma bomba, idiota. Pega logo.
— O que é isso?
— Ai, ai, juvenis. Haja paciência — sentou-se na beirada da cama, limpou a garganta e começou a ler.
As palavras demoraram a serem compreendidas por Lucas. No começo, o garoto achou que fosse algo tirado da internet, um cordel ou algo do tipo. Até que as informações fizeram sentido, ele fez a conexão e entendeu o que acontecia ali.
— Tu escreveu esse poema agora?
— Foi — ele entregou a folha ao primo, peito inflado, satisfeito consigo. — Tá pensando que eu só sei cortar carne, limpar fígado e matar galinha, é?
— Não, longe de mim pensar isso.
— Hum, sei. E por que essa cara de besta agora?
— Bom, é que foi muito rápido. A gente conversou lá na praça e... Tu escreveu isso em quanto tempo? Vinte minutos?
— Para ser mais exato, nove. E outros dez para dar aquela revisada gostosa.
Lucas leu alguns trechos.
— Jorim, isso aconteceu contigo?
O primo respirou fundo e desviou a atenção para um quadro na parede. O esplendor nordestino de Luiz Gonzaga o encarou de volta.
— Aquela escola me feriu mais do que as pessoas imaginam.
— Mas... A tia não sabe disso. Sabe?
— É óbvio que não! Tu imagina como saber uma coisa dessa ia destruir mamãe?
— E tu guardou isso por esse tempo todo?
Jorim cruzou os braços, ergueu os ombros, baixou a cabeça.
— Nem tudo se conta, amiguinho. Ou melhor: tem muita coisa que a gente deve esperar pra dizer na hora certa, pras pessoas confiáveis, com os objetivos certos. Pois, chegou a hora de contar uma parte oculta da minha história. Vocês não queriam uma história forte? Taí. Façam bom proveito.
Antes que Lucas fizesse mais perguntas, o rapaz se levantou, deu um peteleco na testa do outro e saiu apressado do quarto.
Lucas ainda ficou um bom tempo parado de olho naquele poema. Por um instante, pensou em ignorar o acordo firmado com os amigos e publicar o texto por conta própria. Seria mais rápido e evitaria perda de tempo ou tentativas de interferência. Porém, ao pensar no nível de traição que isso representaria, desistiu da ideia de agir como lobo solitário.
Mandou mensagem para o grupo e fez uma reunião de emergência via chamada de vídeo.
Como supôs, demoraram bons quarenta minutos debatendo o que fazer com aquela poesia. Contudo, houve uma questão que quase colocou tudo a perder: a autenticidade da denúncia. Diferente do relato anterior, que eles tinham um e-mail com um nome como prova do que diziam, aquele texto gerou confusão. Ainda mais porque Lucas decidiu preservar a identidade de Jorim e disse que não falaria de quem era.
Primeiro, acusaram-no de ter inventado tudo, algo que logo foi descartado. Em seguida, debate aqui, debate ali, após muitas garantias de que havia verdade no que exporiam, a reunião terminou.
Já era por volta de uma hora da manhã quando, para o deleite de Otávio, publicaram o texto mais agressivo até ali.
"O grito mudo dos pobres da lama"
Pobre da lama, vindo do caos
Menino pensava que conhecia o mal
Tola criança de pequena força
Ante aquele que o fez de moça
Dia de luto na enchente de destruição
Choro e descrédito na educação
Quadra de esportes rebaixada ao esquecimento
Ascensão de um dito deus do conhecimento
Vindo em socorro com seu dinheiro
E proposta para nos tirar do bueiro
Levar os pobres para sua escola
Oferecer sua quadra como esmola
Sorrisos e festa fizemos pra ele
Todos queriam um abraço dele
E lá fomos nós, os pobres da lama
Gente humilde até sem cama
Chegamos calados em meio ao luxo
Fome de tudo gritando no bucho
Comida, livros, carinho
À nós só bastava um tiquinho
E tiquinho do tiquinho nos foi dado
Pois, nada nos era ofertado de bom grado
Mundos sociais em colisão
Alunos mimados não gostaram da divisão
Apanhei tantas vezes que perdi as contas
Me fizeram comer dos lápis as pontas
Meninos loiros de face angelical
Que nos banheiros vomitavam todo o mal
Ah, Senhor, quem me dera fossem só os alunos
A destruírem todos os nossos rumos
Saibas que no céu havia um Arcanjo
Que coordenava todos os anjos
Seu nome não vou mencionar
Para a família do morto poupar
Mas quem aqui ler estas palavras
Conseguirá fazer a lavra
E saberá que o que digo
Pode sim ser conferido
Arcanjo chegava à quadra
Todo final de Quarta
Quando saíam mais cedo
Muitos deles doidos de medo
Somos pobres, mas não burros
Sabemos o que acontece por trás dos muros
E muitos corriam para longe
Ante a aparição de angélico Conde
Amante dos menininhos de calção
Que passavam pela sua mão
Por trás dos muros da riqueza
Escondia-se matadouro de pureza
Machuquei-me muito naqueles dias
Mas até hoje minhas noites são frias
Ao lembrar das mãos pelo meu corpo
Hóstia maculada pelo bico de um corvo
Morre tudo diante de um abuso
Morre-se ainda mais pela mudez dos mudos
Calados estavam, calados ficaram
E os pobres da lama, eles ignoraram.
*
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