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Há seis, ou sete meses...
O Deja vu sobre o qual ela tanto fala
O AEROPORTO AMERICANO não era lá tão diferente dos brasileiros. Não que Gislaine tenha estado em muitos aeroportos... O preço das viagens aéreas é que era exorbitante. Ela não teria como bancar esse tipo de conforto. Seu negócio envolvia: sua inteligência, seu celular e um busão. Tipo, viajar de um estado a outro, madrugada adentro, sentada numa poltrona desconfortável... Com sorte, o assento melhorzinho de um ônibus-leito.
"Sou a pobretona que caiu de paraquedas por aqui", refletiu, com ironia, enquanto observava os outros usuários do transporte aéreo passarem por ela. Mesmo aqueles que se vestiam de forma simples, ostentavam em cada parte de seus trajes (e adereços), o poder aquisitivo elevado de que dispunham. Ela sentiu o familiar constrangimento que a dominava ao pensar nisso. Não se sentia parte daquele mundo. Talvez nunca fizesse parte dele, realmente, já que toda vez que achava que iria tirar o pé da jaca, acontecia alguma coisa que a puxava para baixo. Sua situação financeira era uma verdadeira gangorra; uma tremenda aventura.
O mesmo que andar na corda bamba.
Não era o bêbado, mas era o equilibrista, em analogia com a música de Elis Regina. Não... Estava mais para Cazuza: o meu cartão de crédito é uma navalha... Brasil mostra a sua cara!
Gis ainda estava pagando pelos exames e tratamentos relativos ao período em que ficou internada, em coma, e depois, quando acordou - o período de fisioterapia e medicação. Uma longa história. A versão abreviada: Gislaine acordou numa cama de hospital de campanha do exército, quase um mês depois da devastação da ilha de Santa Catarina, provocada por um super furacão. Ela foi amparada pelas duas amigas, Indianara e Lara, que se revezaram em vigília, durante a sua internação.
Lara deixou de ir embora com Derek¹ para ajudar as amigas, os alunos de música e os atingidos em geral. Ela e Indy cuidaram dela... Pelo que Gis será eternamente grata.
Às vezes, ela tinha flashes do que lhe aconteceu... Lembrava-se dos telhados levantando voo, um céu escuro, em movimento, o som de turbinas de avião (exatamente iguais aquelas da nave que a levou de Curitiba a São Paulo, depois de São Paulo a Miami e, em seguida, Norfolk).
O médico que a atendeu na época, o capitão Salas-Riviere, disse que deve ter sido atingida por algum dos "objetos voadores" e teve muita sorte de não ter sido atirada longe, também, ou esmagada por coisas caindo em cima dela. O fato é que a encontraram sob os escombros da construção - de certa forma, isso a protegeu do caos que se seguiu acima e ao redor.
Na ocasião, o médico não estava muito certo de que ela devesse se arriscar, locomovendo-se sozinha para fora do hospital. Aparentemente, ela tinha um pequeno coágulo que poderia se dissolver sozinho ou estourar... Infelizmente, até onde puderam examinar, estava localizado numa região inoperável.
Por causa da pancada, ela tinha perdido a força no braço direito e na perna direita. Era altamente recomendável que se submetesse a sessões de fisioterapia para tentar acelerar a recuperação dos movimentos prejudicados.
Mas, Gislaine não era de dar muita importância à opinião dos médicos. Ainda mais quando não podia pagar pelas consultas, nem pelos remédios, muito menos pela fisioterapia. Foi obrigada a aceitar fazer o básico do pacote de tratamento oferecido enquanto ficou internada. Depois, continuou fazendo por conta própria, ou seja, sozinha.
Dureza mesmo foi sair do hospital de campanha e descobrir que sua quitinete não existia mais, que o supermercado onde trabalhava não existia mais; que o emprego dela não existia mais... Detalhe: Gislaine estava só com a roupa do corpo.
Mas a rede de solidariedade brasileira é incrível. As pessoas se mobilizaram para todos os lados. Ela recebeu algumas roupas e obteve alguns itens de higiene para começar... Suas amigas oferecera-lhe lugar para ficar. Mas como a casa novinha em folha (que o noivo e seus amigos ergueram para Lara com as próprias mãos), ficava muito longe do hospital do exército, elas concordaram que Gis ficaria mais bem acomodada com Indy.
A casa de Indy foi a menos afetada, pois estava situada entre dois morros, mais abrigada do vento forte, em São Pedro de Alcântara - município afastado da região metropolitana. Os moradores daquela região pouco sofreram com o furacão que varreu o litoral catarinense.
Indy a ajudou na recuperação. Em troca, Gis a auxiliava limpando a casa e o salão que Indy abriu para atender às mulheres das redondezas. Observando o funcionamento do negócio, Gis começou a dar alguns conselhos, palpites e a ajudar no caixa... E adivinha! Ela encontrou sua vocação!
Mas estava apenas no começo. Tinha um longo caminho a percorrer... Pensando em tudo isso, ela se deu conta de que a vida era mesmo incrível. Se há meses atrás, ela imaginava o seu futuro de um jeito, agora não podia acreditar que o rumo tivesse dado uma guinada tão grande.
Ela ouviu a voz impessoal anunciar no alto falante - em inglês, naturalmente - alguma coisa a ver com os próximos voos e embarques. Isso a trouxe de volta à realidade e um frio invadiu o seu estômago. Estava nos Estados Unidos... Caramba! Ela, que nunca quis estar nos Estados Unidos, e sim, no norte da Europa (por causa do filme da "Noviça Rebelde", seu sonho de consumo era conhecer países como Dinamarca, Suíça, Suécia e Áustria). Ela entendia que para conhecer a Áustria, era bom aprender o inglês, ao menos... Mas infelizmente, ela desenvolveu uma relação de amor e ódio com aquela língua.
Mais ódio que amor; especialmente em se tratando do sotaque arrastado de Montana.
Olhou com certo desdém para uma americana toda "Desperate Wife" que falava ao telefone. Sapatos de salto agulha, cabelo loiro armado, peitos mais do que armados, biceps trabalhados em academia, maquiagem caricata, cara... Como não tinha condições de bancar qualquer tipo de luxo, e isso incluía passagens aéreas e tratamentos médicos caros, Gis passou a agir como a raposa diante das uvas, de acordo com o ditado popular: "Se não posso comprar, tudo bem, não quero parecer palhaça mesmo!"
Referia a si mesma como uma garota simples, cabeça feita, saudável, e tipicamente "by bus." Foi pensando e agindo assim que ela concluiu sua faculdade à distância em administração: viajando de ônibus uma vez por mês para outra cidade, em outro estado... As amigas quase enlouqueceram de preocupação, mas não poderiam tirar isso dela - a independência de agir por si mesma e buscar resolver os problemas de acordo com a própria cabeça.
A Florianópolis devastada por um furacão ainda tinha muito que se recuperar. Seu mercado de trabalho era, por ora, quase inexistente. As pessoas precisavam se virar em outras localidades, para obter um emprego. Gislaine reciclou-se para buscar novos horizontes. Usou sua experiência com números, no supermercado, e fez alguns cursos extras em Curitiba. Começou a oferecer planos de negócios para pequenos e micro empresários que não sabiam por onde recomeçar, em Florianópolis. Eles passaram a confiar nela a fim de desenvolver estratégias viáveis para seus negócios. Assim, ela conquistou uma pequena, porém, fiel clientela. Entre eles, estava sua melhor amiga Indianara, que também teve que se virar após o furacão. E se virou tão bem, que agora estava pensando em abrir um salão de beleza nos Estados Unidos, pois Lara sempre lhe disse que um talento como o dela seria bem vindo em Virginia Beach, entre as esposas, namoradas e filhas de militares... Além das mulheres que também eram militares.
Assim, Gislaine criou um plano de negócios que precisaria de mais informações para ser finalizado. Ela teria que sondar o mercado americano da beleza, especialmente naquela região, para traçar um plano viável para sua amiga. E este era um dos motivos pelos quais aceitou que Lara bancasse a sua passagem para lá.
Claro que o principal motivo era o casamento da amiga. Gis e Indy eram as melhores amigas de Lara. Não poderiam faltar à cerimônia, mesmo que isso significasse que teriam de enfrentar um país estranho, conhecido pelas duas apenas por meio dos filmes e séries de televisão.
Só que Indianara não pode viajar com ela, imediatamente. Surgiu a oportunidade de fazer uma série de penteados para um evento de desfile de moda, em São Paulo. Ela iria comandar uma equipe de cabeleireiras que fariam o visual das modelos.
Oportunidade de ouro, a qual Indy não poderia perder.
Gislaine teve que embarcar sozinha, a partir de São Paulo, com a promessa de que a amiga a encontraria no aeroporto de Miami, para seguirem juntas até Virginia Beach. Lara procurou tranqüilizar as duas, dizendo que estaria esperando por elas no aeroporto de Norfolk.
O problema era que, durante o voo, recebeu uma mensagem de Indy avisando de que o trabalho em São Paulo levou a outro, tão inesperado quanto lucrativo. Indy teria que encontrá-la mais tarde, em Virgínia Beach.
Apavorada, Gis chegou ao super movimentado aeroporto de Miami... Quase roeu as unhas durante o voo, mas lembrou-se a tempo de que não roía unhas. Seu único consolo era saber que estava pisando no mesmo aeroporto onde foi filmado Cassino Royale. Só faltava a exposição de esqueletos, e o 007 perseguindo alguém. Ela manteve seu surto sob controle e esperou a conexão, embarcando com sucesso para Norfolk. Conseguiu fazê-lo sem ser presa, nem sequestrada, nem estuprada, nem morta.
Não... talvez o surto não estivesse tão sob controle assim.
E agora? O que mais poderia lhe acontecer? Os policiais do aeroporto a tratarem como imigrante ilegal? Como terrorista em potencial? Como garota de programa? Vai saber! Ela tinha lido e ouvido falar de tantas estórias escabrosas, de deixar os cabelos em pé, sobre turistas inocentes cujo passeio deu errado! E não foi um caso, mas vários brasileiros passaram por isso... Alguns permaneceram dias presos numa salinha de alfândega, sobrevivendo a base de bolacha água e sal e uns poucos goles de água - com sede e fome, apesar de serem meros turistas... Então, os cães farejadores passaram por ela e Gislaine quase desfaleceu, lembrando-se de Bridget Jones sendo presa no aeroporto da Tailândia e depois fazendo karaokê no presídio, cantando Madonna.
Gislaine nem sabia cantar.
Pelo menos, ela conseguiu chegar a Norfolk sem incidentes. Ninguém sequestrou o avião usando facas de plástico... Ela engoliu em seco e continuou andando. Pareceu-lhe a mais longa caminhada de sua vida.
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Lá estava Gislaine, pensando em Lara e em sua promessa de que estaria esperando no aeroporto. Respirando fundo, ela procurou caminhar com segurança pelo corredor que dava acesso à saída. Estava escrito lá: "exit". Essa palavra, ela conhecia... assim como um punhado de outras palavras como "help", "embassy", "police", "taxi", "uber"... E tinha decorado algumas frases, tais como: "I am a dumb brazilian, please, where is the bathroom?"; Where is the food?; Is it for free?; Can you help me?; How I can get out of here?
Ela achou que eram frases viáveis e necessárias.
Ao seu redor, pessoas passavam apressadas, concentradas em seus mundinhos pessoais – os celulares.
Se havia uma coisa que não a atraía era aquele aparelhinho.
Flagrou-se observando as dependências do lugar. Espaçoso, limpo e bem organizado, o aeroporto transmitia uma sensação de calma e tranquilidade aos passageiros. Considerando que ela teve a sorte e o privilégio de viajar de avião uma única vez na vida (antes desta), Gis podia dizer com propriedade que este, assim como o de Miami, eram apenas mais limpos. Hum... Mais organizados e conservados. Menos bagunçados. Menos agitados... Ela suspirou, reconhecendo que estava sentindo inveja. Aquele local era simplesmente um maravilhoso shopping center futurista.
Ela torceu o nariz.
Quem viu um, viu todos, certo?
Isso a fez se lembrar que há cinco meses não via sua amiga Lara, pessoalmente. O contato se resumia a vídeos pelo Skype e pelo IG. Durante o tempo em que se comunicaram, elas acompanham as peripécias uma da outra. Lara estava deslanchando como escritora, como esposa, mas estava enfrentando um longo e cansativo processo para obter cidadania, que parecia se encaminhar para a etapa final. O fato de se casar com um americano não era garantia de nada, nos dias atuais. De modo que o fato de Lara estar obtendo êxito como escritora, pesou tanto quanto.
A amiga lhe revelou que Derek tinha o desejo de se casar em Virgínia Beach. E ela sonhava em se casar no Havaí. A solução que o noivo encontrou não poderia ter sido mais romântica. Eles iriam se casar duas vezes. Uma cerimônia em Virginia Beach, para a família dele e os amigos de ambos; e a outra privada, só os dois, no hotel Hilton de Honolulu (um presente de casamento de Derek).
As duas conversaram muito sobre os anseios e medos de Lara, que nunca imaginou viver longe do solo brasileiro... Muito menos Gislaine! Nem de passagem! Na verdade, Gis nunca planejou tal coisa, viajar para lá, etc. Agora, adivinhe... Lá estava ela num país estrangeiro, sem falar porcaria nenhuma da língua daquele povo.
Entender, ela até entendia, o problema era falar.
Estava apavorada. Com medo de dar uma gafe, de fazer algo que a colocasse na cadeia, sabe-se lá... Ela sabia que estava surtando por dentro, mas se controlou e procurou deixar os devaneios de lado, quando o grupo que desembarcou da mesma aeronave teve que se estreitar a fim de atravessar a saída para o amplo saguão. Indecisa, Gis seguiu a boiada, sabendo que a segurança que sentia em meio aos brasileiros iria acabar em poucos instantes.
O grupo logo debandaria - cada família e/ou indivíduo seguindo diferentes direções... Todos prontos a se divertir, entendendo muito bem a língua, ou indo com alguém que entendia. E Gislaine, bem, sentia-se como a Mané que estava vindo sem nenhuma referência...
Graças a Deus, Lara estaria esperando ao final do portão de desembarque.
Só de pensar nisso, o ânimo retornou. Ela parou de arrastar os pés e acelerou o passo, querendo encontrar logo a amiga. Como será que ela estava? No último vídeo, a gravidez já estava visível. Lara estava com treze semanas e meia de gestação - irradiando a beleza e a felicidade próprias da maternidade.
Que loucura, como a vida dava guinadas assim? Um amor que surgiu na internet, entre duas pessoas com vidas tão diferentes... Era o improvável tornando-se realidade.
Gis saiu pelo Portão A8 (Arrival 8) em busca de um tal de Bagagge Claim 3. Que diabos era aquilo? Olhando no dicionário, já todo amassado e com orelhas de burro, catou o significado enquanto imaginava que seria onde iria encontrar sua preciosa mochila. Estava certa. E ficou orgulhosa de si mesma por ter conseguido deduzir antes de encontrar a resposta no dicionário. Isso significava que estava progredindo na língua, certo?
Certo?
Caminhou mais devagar, alerta e apavorada - ou alerta por causa do pavor. O medo tinha voltado com força total e agora ela não conseguia mais racionalizar, controlar, o que fosse! Até agora, nada de Lara. Viu que algumas pessoas estavam paradas num amplo salão, esperando pelos que chegavam... Famílias se reuniam depois da ausência de um ente querido. Amigos se juntavam para curtir o famoso litoral de South Hampton Road. Casais se reencontravam. Soldados abraçavam suas esposas e erguiam seus filhinhos no colo.
Os olhos de Gis percorreram as pessoas, interpretando cada cena. Não localizou o rosto conhecido de sua amiga e a sensação de pavor se aguçou, enquanto ela retirava a mochilona da esteira e se virava para a saída do prédio. E agora? Esperava? Pegava um uber? Como pegar um uber em inglês? Ela tinha copiado algumas frases, mas... Não... O melhor era telefonar para a amiga.
De repente, verificou que havia uma parte de vidro, com agentes em constante vigilância. Vigilância do que, ela não sabia, já que só duas das cabines estavam ocupadas. Deviam estar na hora do almoço, a maior parte deles. Não, devia ser o pessoal administrativo, né?
Né?
Será que eles davam informação, sem avançar nela? E saberia ela se explicar? Gis avistou uma placa que parecia indicar um piso superior destinado aos militares e veteranos... Será que ela deveria subir? Afinal, Lara estava se casando com um militar... E se ela estivesse esperando por ela, lá em cima? E se Gislaine estivesse no andar errado?
Caramba! E por que Lara não atendia o telefone? Caramba! Porque ela estava sem sinal, era por isso! Droga, droga, droga! Seu telefone não tinha cobertura ali. Claro, evidente! Por que não pensou nisso antes? Agora, sim, ela iria surtar.
"Calma, Gislaine. Nenhum psicopata vai pular em você!", ela refletiu, mesmo que aquela seja a terra dos psicopatas e serial killers...
Ela cogitou se teria de se apresentar novamente na alfândega, apesar de já ter passado por ela, em Miami... Será que teria de fazer isso duas vezes? Não... Tratava-se de um voo doméstico. Ela rumou direto para a saída, meio que esperando que alguém fosse detê-la. Mas, ninguém a deteve. Ela continuou andando e de repente, deu de cara com um pedaço de papelão onde estava escrito o seu nome num garrancho quase incompreensível. Um garrancho preguiçoso, como se a pessoa tivesse escrito de má vontade. A mão que segurava o cartaz era grande, calejada e musculosa, representando muito bem o resto do dono, como ela iria conferir logo mais...
Gis o identificou antes mesmo de erguer os olhos para o seu rosto. Sentiu um soco no estômago ao se deparar com aqueles olhos perturbadores... Profundos, de um azul escuro e metálico... Pareciam enxergar até a alma. Além da alma.
Ela engoliu em seco, refez a pose "casual" e deu um passo atrás numa velocidade de quem diz: "Ah, é você... Que saco!".
Spencer Tracy não a cumprimentou, nem ela a ele. Gis ergueu um canto dos lábios, num arremedo de sorriso que, por sua vez, pretendia ser um arremedo de cumprimento. Em resposta, as sobrancelhas dele se arquearam num misto de divertimento. Mas fora isso, nada no rosto dele mudou desde que Gis o conheceu de vista, em Floripa, quando ele e seus amigos vieram para ajudar aos desabrigados do Furacão Nikita. (Ou Barriga Verde... Dependendo de quem o nomeava).
Na época, ela tinha acabado de acordar do coma. Lara e Derek a visitaram no hospital do exército. Spencer estava com eles. Ela se lembrava muito bem da forma como ele a encarou, de um jeito que lhe pareceu como se a tivesse dissecando. Gis sentiu-se exposta e apreensiva.
Na ocasião, decidiu que não foi com a cara dele. Ponto. O clássico caso de estranhamento, ou antipatia à primeira vista.
Só que os dois voltariam a se encontrar, uma semana depois, quando recebeu alta. Após algumas cervejas (da parte dele) e fantas (da parte dela), rolou aquele beijo esquisito. Ele a pegou desprevenida, mas lidou com a situação como se não passasse de brincadeira, tipo: "Não esquenta, gata!" Como quem curte com a cara da pessoa e, ao mesmo tempo, sonda o terreno.
Como não esquenta...!?
Desde então, ela evitou qualquer contato com ele... E agora, justo ele aparecia para recebê-la no aeroporto, ao invés de Lara.
-Oi, Lara me disse que viria me buscar – ela comentou, pateticamente, enquanto ele tirava a mochila da sua mão.
Ele girou nos calcanhares com o sorrisinho imperturbável.
-Não acha que é esperar muito? - respondeu, num português quase impecável.
-Como assim?
-Que uma noiva às portas do casamento fique a sua disposição?
Gislaine parou de andar, diante do golpe.
Spencer continuou caminhando, imperturbável.
-Eu não esperava que ninguém ficasse a minha disposição – respondeu, erguendo a voz para as suas costas musculosas, que se afastavam num ritmo constante. Ele nem se dignou a diminuir o passo, de modo que Gis teve de correr para alcançá-lo. E enquanto corria, admirou (contra a vontade) aquelas costas largas... A bunda bem feita... As pernas musculosas... Os pés... Caramba! Ele estava usando sandálias franciscanas? Não combinavam com a imagem que ela tinha de um super soldado americano. Imaginou que super soldados dormissem usando botas e com o facão sob o travesseiro. Talvez uma metralhadora do lado da cama.
Viu de relance uma tatuagem no braço direito dele que estava louca para fotografar e pesquisar na internet. Era... Gis inclinou a cabeça tentando enxergar melhor. Ele percebeu, observando-a em sua visão periférica:
-É uma Estrela de Seis Pontas - informou, calmamente. - O símbolo do Equilíbrio entre corpo e espírito.
Gis franziu o cenho.
-Você é budista?
Ele começou a rir e ela se arrependeu de ter perguntado.
-Digamos que sou simpatizante da busca interior... - ele diminuiu o passo para que ela pudesse alcançá-lo. - Sou um humilde aprendiz.
Gis encolheu os ombros, pensando que de humilde, ele não tinha nada. Mas, pelo menos, já sabia qual era a estrela que pesquisaria no Tio Google.
-Comece pelo Festival de Wesak - ele sugeriu, num arremedo de sorriso.
Eu sou um livro tão aberto assim, ou o cara lê mente!
Gis quase esperou pela resposta à pergunta não formulada, mas daí ele parou diante de um jeep aberto, todo detonado. Foi apenas o tempo de jogar a mochila de Gis (sem a menor delicadeza, diga-se de passagem), na traseira do carro. Ao lado de uma prancha de surfe.
-Se quebrou o pote do meu creme para rosto...
Ele deu de ombros, inabalável.
-Eu pago, é só dizer o preço.
O infeliz tinha resposta para tudo. Sabia falar muito bem o português e tudo por culpa de Lara, que ensinou aos Shadow Walker num daqueles cursos de reciclagem da escola de línguas das forças especiais (SOF). E eles aprenderam o português brasileiro que foi uma maravilha! Aprenderam mais rápido do que ela tentando aprender o inglês.
Os desgraçados.
O desgraçado, para ser específica.
Ela se sentou no banco do carona sem dizer uma palavra. Trataria de conferir o estrago dentro da mochila quando chegasse à casa de Lara, que vivia com o futuro marido, os gatos e o cachorro, num condomínio a beira-mar, em Virgínia Beach.
Spencer ocupou o banco do motorista e ela fez o mesmo, do lado do carona. Ele gesticulou em sua direção, mas Gis levou alguns segundos para processar que tinha se esquecido de colocar o cinto. Quando se deu conta, ele já estava inclinado sobre ela, juntando as fivelas com a maior desenvoltura e uma expressão de tédio estampada no rosto. Parecia dizer "tenho que bancar a babá de uma estrangeira tonta". Os dedos dela coçaram para lhe dar um tapa... Tipo, arrancar aquela expressão de tédio e substituir por uma de choque... Mas ela sabia que seria uma atitude irracional. Não podia sair esbofeteando todo babaca que encontrasse por aí. Mesmo porque, o babaca em questão poderia revidar. Um golpe daquela mão iria lhe quebrar todos os dentes.
Esses caras eram treinados nas mais diferentes lutas corporais, capazes de matar o oponente com as mãos nuas.
Nuas...
Gislaine se pelava de medo deles. Principalmente, do Spencer.
Quer dizer, ela tinha medo entre aspas... Porque se precisasse, não iria ser aquele energúmeno que iria intimidá-la.
Enquanto ela remoía e fumegava, Spencer engatou a marcha com um suspiro. Ligou o rádio, tão logo o veículo começou a rodar. "Claro", ela concluiu, "ele não quer conversa". Nem perguntou que tipo de música ela gostava de ouvir. Bem, na atual circunstância, qualquer música era bem vinda, desde que Gis não tivesse que conversar com aquele orangotango.
O que sabem orangotangos além de levantar peso em academia.
Como era a primeira vez que visitava a terra do Tio Sam, e vendo que ele não pretendia lhe mostrar os lugares, Gis decidiu apreciar a vista por conta própria.
Virou-se meio de costas para ele (até onde o cinto de segurança permitiu) e ignorou-o pelo resto da viagem.
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Spencer estacionou o carro numa entrada para carros, atrás de outros que já estavam estacionados. O jeep tinha percorrido uma estrada sinuosa até o condomínio. A visão e o barulho das ondas do mar, e o cheiro limpo de maresia encheu os sentidos de Gis. Ela se lembrou de casa. Respirou fundo e tirou o cinto, enquanto Spencer saltava sem dizer uma palavra. Gis abriu a porta e viu quando ele retirou sua mochila da parte de trás do Jeep, estendendo-a para ela.
Gis murmurou um agradecimento seco. Spencer apenas bateu dois dedos na testa, em uma saudação descuidada e seguiu para dentro do condomínio. Ela ficou ali, parada, sem saber o que fazer. Decidiu que era melhor segui-lo.
O "condo" como eles chamavam, tinha o nome de Ocean View e sua localização era muito conveniente - equidistante da zona do comércio e das bases militares, além de ter acesso fácil às rodovias interestaduais. A fachada era toda em clapboards. A construção formava uma caixa quadrada, com um pátio no centro. Cada lado do quadrado era composto de quatro apartamentos, um em cima do outro. O condomínio, portanto, tinha quatro andares, com escadas externas à construção, porém, internas, e intrínsecas ao pátio interno.
Do lado externo, cada apartamento contava com balcões nos quartos e uma varandinha na entrada da sala de estar. Para o lado de dentro do pátio, cada apartamento tinha um corredor externo de acesso, que fazia as vezes de varanda. E pelo que Gis observou das placas de localização, o Ocean View ficava em Waterman's Surfside Grille, o centro nervoso, onde a vida social fervilhava em Virginia Beach. Lara lhe contou que o local reunia bares interessantes, com apresentações ao vivo quase todos os dias - músicos, bandas legais, DJs, cantores talentosos... Era o caso do famoso bar Orange Crush Cocktail.
A orla era bem iluminada à noite e havia um largo calçadão para fazer caminhadas a qualquer horário do dia e da noite.
De novo, Gis lembrou-se de casa. O calçadão da Beira-Mar...
Mas a orla de Virginia Beach, pela distância percorrida de carro, ficava a uma boa caminhada do condo.
Colocando a mão sobre os olhos para protegê-los do sol forte, Gis avaliou a área ao redor... Gostou da tranquilidade e das casas silenciosas que seguiam um padrão urbanístico.
Ajeitando a mochila no ombro, Gis sentiu uma leve vertigem. Parou, respirou fundo e manteve os olhos fechados. Ela não contou ao médico que iria viajar, com medo de que ele a proibisse. Também não contou a Indy e a Lara sobre o diagnóstico do coágulo. Na verdade, ninguém sabia e ela pretendia que continuasse assim.
Gis caminhou a passos lentos para a sombra do prédio.
Spencer nem estava mais à vista, quando ela alcançou o pátio interno da construção. A entrada era em forma de arco, como uma daquelas fazendas espanholas dos tempos em que a Espanha colonizou um pedacinho dos Estados Unidos. É... ela vinha lendo bastante sobre aquele país, desde que Indy e Lara começaram a conversar sobre a possibilidade de abrir um salão de beleza por lá.
Havia um aglomerado de pessoas usando camiseta e shorts em torno de uma churrasqueira, da qual exalava um aroma delicioso. A primeira coisa que viu foi uma mesa de armar com uma bacia de carne crua cortada... Alguns homens saradões e sem camisa conversavam, rindo em voz alta, com garrafinhas de cerveja nas mãos, enquanto trabalhavam na carne. Um deles temperava, o outro jogava na grelha com a ajuda de um garfo próprio. O outro estava picando a salada.
Gis não sabia dizer se ficava constrangida ou maravilhada com a aparência deles. Disfarçou. Não queria parecer que nunca viu homem bonito e sarado na vida.
Eles pararam de falar e a encararam. Ela engoliu em seco.
-Gis!!!! - gritou uma voz feminina as suas costas.
Gislaine mal teve tempo de girar nos calcanhares e foi colhida pela colisão de braços, envolvendo-a com força.
Lara a abraçou tão apertado que Gis nem conseguiu olhar para ela, assim, espremida contra o seu peito e barriga de grávida. Depois de um longo tempo, ela a soltou, ainda segurando as suas mãos. Sorria de orelha a orelha e seus olhos estavam marejados.
-Quanto tempo! - ela exalou o ar com força e Gis apenas concordou com a cabeça, sentindo-se constrangida, já que todas aquelas pessoas estavam olhando para elas.
Como se lesse os seus pensamentos, ela se voltou para o pessoal, comunicando em português e depois em inglês:
-Esta aqui é minha amiga Gislaine.
Ela foi cumprimentada por um bando de homens enormes e musculosos, suas namoradas, companheiras, esposas, irmãs, mães, ficantes, amigas, depois os amigos, irmãos, companheiros de equipe, etc. (Todos, menos Spencer, que tinha sumido de vista.)
Aquele era um condomínio em que todos estavam vinculados às atividades militares, de uma forma ou de outra. Alguns eram da mesma equipe de Derek, que por sinal, não estava ali.
-E onde está o noivo feliz? - Gis aproveitou para perguntar.
-Derek está na sede anfíbia. - Lara respondeu, com um sorriso não tão radiante. - Ele tem que fazer o checkup por causa do ferimento na cabeça. Mas esperamos que esteja tudo bem e que ele continue recebendo o "selo de qualidade" por assim dizer - ela brincou.
Gis sorriu, apertando sua mão num toque reconfortante.
-Ah, ele vai. Derek é um cara durão.
Spencer se aproximou delas, de repente. Tinha trocado a roupa informal por outra mais informal ainda... Indecente de tão informal. Ele estava só de sunga. Gis quase teve um ataque só de vê-lo seminu... Ele segurava uma prancha debaixo do braço, completamente alheio ao impacto que o seu físico provocava nela.
-Obrigada por tê-la buscado, Spence! - disse Lara, num tom carinhoso. Em consideração a Gis, ela fez o comentário em português. - Com todos os preparativos, eu não ia conseguir dar conta de tudo se não fosse por você... É quase um madrinho de casamento.
Igual aquele filme? Ela conteve um sorriso. Os olhos de Spencer brilharam, com bom humor.
-Sem problemas! - ele cortou o agradecimento, respondendo em inglês. Por sorte, Gis entendeu. Nossa, que grosso! Ele não fazia questão de que Gis entendesse e acrescentou: - Para você, estou sempre à disposição, sabe disso.
Sem nem lhe dirigir um olhar, ele saiu pelo outro acesso do condomínio, o qual, agora, ela podia ver que dava direto para a praia deslumbrante.
-Você vai adorar aqui - disse Lara, lendo novamente os seus pensamentos. - Mas, vamos, vou mostrar o seu quarto para você poder desfazer a mala e descansar.
-Não estou cansada.
-Quem sabe, queira tomar um banho de mar?
Era tentador, mas não com o gigante bronzeado ocupando a praia inteira com sua prancha de surfe. Gis sorriu sem jeito, e disse:
-Talvez mais tarde. Agora quero saber como estão indo as coisas por aqui.
-Ah, eu conto... - os olhos de Lara se iluminaram. - Mas primeiro me diga o que aconteceu com Indy? Ela disse quando vai chegar?
-Ela deve chegar amanhã, eu acho - respondeu. - Um trabalho bem remunerado de última hora. Ela precisou remarcar a passagem, mas amanhã estará aqui.
Lara fez um muxoxo, mas sua decepção aparentemente durou pouco. Dando de ombros, comentou:
-Indy terá que se virar nos trinta para chegar aqui amanhã, ou vou caçá-la como um capitão do mato.
-Apoio! - disse Gis, erguendo o punho no ar.
As duas riram.
Lara a levou para um tour pela casa; mostrando-lhe o quarto onde ficaria.
-Depois vem pra cozinha que eu quero te levar para conhecer o condomínio.
Jesus, eu não queria conhecer o condomínio, apenas pensou e ficou quieta.
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Nota de rodapé:
1 - Eventos do segundo volume da Trilogia Lua de Fogo
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