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Há seis meses...
Ameaças pairavam no ar...
ATÉ SE CONCRETIZAREM, precipitando uma série de ações por parte de uma jovem desesperada. Inteligente, viajada, independente, mas... Desesperada.
Aleksandra desembarcou do helicóptero ao alvorecer. Uma aragem a envolveu, fazendo-a tremer dentro de sua jaqueta jeans. O frio era um remanescente da atmosfera noturna – dissipando-se com o orvalho frente à eminência do amanhecer. O inverno no Iêmen se resumia a noites geladas e dias escaldantes.
Os últimos pássaros noturnos despediram-se com gritos melancólicos, ansiosos por abrigarem-se em seus ninhos, mas possivelmente assustados por causa do barulho ensurdecedor da aeronave e suas escandalosas pás giratórias. O helicóptero da Cruz Vermelha alçou vôo rumo às montanhas. Uma nuvem de poeira envolveu Aleksandra, obrigando-a a cobrir a boca e o nariz com a gola da blusa.
Logo, o som da aeronave se tornou distante e foi como se nunca tivesse estado lá. Nada mais restou do que o sibilar constante do vento, comunicando-lhe que estava por conta própria. Com um dar de ombros, ela girou nos calcanhares. Já esteve em situações e lugares piores, nos últimos anos.
A escuridão da madrugada tornou-se uma mera lembrança perante o tom alaranjado do amanhecer... Um alerta para que acelerasse o passo... Se não quisesse ser surpreendida atravessando aquela área em particular, em plena luz do dia.
Precisava ser rápida e alcançar o seu objetivo sem ser detida pelas lideranças locais. Se as mulheres nativas não andavam sozinhas, nem viajavam àquela hora imprópria, muito menos as mulheres ocidentais que, como ela, corriam outros riscos que não os decorrentes da lei islâmica... Riscos muito maiores e piores. Ela puxou a burca de dentro da mochila e vestiu por sobre a roupa, tendo o cuidado de cobrir o rosto e os cabelos claros. Contudo, um olhar mais atento perceberia que seus olhos eram azuis e que sua pele era branca demais para uma mulher árabe, e nômade.
Aleksandra avançou com dificuldade ao longo das dunas...
Mesmo pressionada pelo tempo e pela ansiedade, foi impossível não apreciar a grandiosidade do cenário ao redor. Os primeiros raios do sol esparramavam-se ao longo do horizonte, tornando seu contorno uma linha fina e incandescente como lava vulcânica. Tais e quais dançarinas exóticas, as dunas ondulavam sutilmente, numa singela reverência à ascensão do astro-rei; no entanto, suas distantes e breves evoluções eram apenas miragens... No deserto, nada é o que parece ser.
Aleksandra percorreu um pequeno trajeto antes de alcançar um terreno mais plano e sólido do que as dunas... Onde supostamente ficava a estrada de terra batida. Bem, tinha mais pedras do que terra, ou areia. Muito fácil tropeçar e cair de cara, torcer um tornozelo (o que, àquela altura do campeonato, seria uma catástrofe).
Conforme ela estudara no mapa do Iêmen à exaustão, a estrada rural se ligava à estrada principal, serpenteando por um aglomerado de construções semidestruídas, bombardeadas em algum momento da longa guerra civil que dominava o país.
Aleksandra cuidou de se mover junto às paredes dos muros e pequenos edifícios, com a intenção de não ser vista pelas patrulhas aéreas, nem terrestres. As construções abandonadas foram a sua salvação, quando alguns veículos solitários começaram a despontar na estrada principal. Poderiam ser civis, mas poderiam não ser... Não dava para perceber àquela distância. A não ser que se aproximassem o suficiente para ela identificá-los. (Risco que absolutamente não pretendia correr...) Assim, ela evitou a estrada principal, costurando os vilarejos fantasmas pelo lado da estradinha rural. Também aproveitou as casas abandonadas como abrigo do sol.
O dia se foi e deu lugar à noite, tornando mais fácil a sua locomoção. A burca negra tornava Aleksandra praticamente invisível na escuridão. Ela atravessou outro vilarejo e se escondeu no último casebre do aglomerado, quando um novo raiar do dia a encontrou.
Da janela, foi possível finalmente avistar os contornos de Sanaa, a principal cidade do norte do Iêmen.
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Considerado o país mais pobre da península árabe, o Iêmen enfrentava uma longa guerra civil decorrente da situação política instável que se arrastava desde a Primavera Árabe, em 2011. A população se viu oprimida entre dois contendores de peso no Oriente Médio: as forças do governo e seus simpatizantes, apoiados pela Arábia Saudita versus a milícia huti dos xiitas, apoiada pelo Irã - sendo que este último controlava Sanaa, ao norte. Os rebeldes leais ao governo tomaram a cidade após um dramático combate. Em seguida, conquistaram a cidade portuária de Hodeida, no Mar Vermelho, e assim foram avançando respectivamente do norte e do oeste em direção ao centro do país. Milhões de pessoas foram forçadas a abandonar os seus lares.
Ao norte, especialmente, não havia mais lugar seguro para a população.
O local que Aleksandra estava procurando ficava na periferia de Sanaa; tratava-se de um edifício residencial, numa zona mais afastada e destinada aos estrangeiros que viviam no país. A construtora que o erigiu fora encarregada de oferecer moradia aos funcionários ocidentais que prestavam serviços ao governo, às empresas e ONGs com negócios no Iêmen; porém, por causa dos conflitos, os estrangeiros tiveram que evacuar o país e a construção foi abandonada sem conclusão, como tantas outras. Mesmo os moradores do edifício em questão tiveram que deixar os apartamentos que já estavam prontos.
Ao que parecia, porém, nem todos deixaram o local. Ou por medo de enfrentar a estrada e se deparar com os revoltosos, ou porque não houve tempo hábil para alcançarem o aeroporto. E mesmo se alcançassem, não havia garantias de que teriam conseguido um assento nas aeronaves lotadas.
As informações que Aleksandra obteve por meio de seus contatos, davam conta de que o edifício poderia não estar abandonado. Talvez alguns estrangeiros ocidentais estivessem escondidos lá dentro. (Ilhados, na verdade.)
Ela esperava que seu irmão Piotr não tivesse se aventurado na estrada... Pois certamente acabaria sendo capturado pelos rebeldes que estavam saqueando as casas dos ocidentais e matando aqueles que encontravam em seu caminho.
Piotr trabalhava para a Rangers Pro Liberty uma ONG de ação humanitária, credenciada pela ONU para o atendimento e evacuação da população iemenita. Ele fora para lá acerca de um ano, especificamente para ajudar na distribuição de alimentos e fazer triagens de atendimento médico. Ele tinha formação em administração e quando ele e Aleksandra atuaram na BRP¹, era Piotr quem cuidava de todo o funcionamento do escritório, desde a contabilidade até a arrecadação de fundos e alimentos. Ele vinha fazendo o mesmo no Iêmen.
Aleksandra estava muito orgulhosa do irmão, acompanhando os feitos da ONG pelas fotos que ele vinha postando em seu IG. Piotr conseguia doações, arrumava transporte para as famílias e doentes, tratava das crianças e encontrava seus pais em alguns casos. Na maioria dos casos, a família era chacinada e os filhos órfãos eram direcionados para acampamentos e famílias cuidadoras.
Quando o conflito se intensificou no norte do Iêmen, Piotr deixou de se comunicar com a sede da ONG, na Bélgica, e não deu mais notícias à família. As linhas telefônicas pareciam desativadas. O celular de Piotr emitia a mensagem de "fora da área". Possivelmente porque sem eletricidade, ele não teria como carregá-lo.
Os pais de Aleksandra ficaram desesperados. Ela tentou contato com Piotr por meio de skype, instagram, email; tentou contato com o acampamento mais próximo da Rangers Pro Liberty, que já nem estava mais lá; tentou telefonar vezes sem conta para o apartamento que Piotr estava ocupando, na periferia de Sanaa... (O mesmo bairro que, agora, ela contemplava ocasionalmente, escondida atrás de um muro, a espera do anoitecer.)
Parece que faz um século, mas foi há meros cinco dias que Aleksandra largou tudo e voou de Atenas para a base norte- americana de Djibouti, no Chifre da África. Ninguém sabia como ela poderia entrar no país, uma vez que as nações estrangeiras estavam restringindo pessoas e veículos naquela direção. Seus contatos conseguiram-lhe uma janela de acesso apenas há dois dias; disseram que se ela não aceitasse a carona da Cruz Vermelha, não teria outra chance. Seu amigo piloto, que estava na base, persuadiu o piloto do helicóptero a desviar ligeiramente a rota para que ela pudesse descer em um acampamento aliado dos estrangeiros.
Ela não teve tempo sequer para pensar... Só não esperava que durante o vôo as coisas piorassem tanto assim... Os conflitos se intensificaram e o acampamento aliado foi dissolvido. Ela ficou sabendo que não poderia mais descer perto de Sanaa... O pessoal já estava fazendo um favor muito grande em se desviar de sua rota para deixá-la na região. Era o máximo que puderam fazer por ela. Aquele era um vôo altamente irregular, mas necessário, já que a Cruz Vermelha estava atendendo à população desassistida.
Agora, Aleksandra encontrava-se no meio de uma guerra civil, sem ideia de como ela e o irmão iriam se deslocar para Hodeida, onde tentariam alcançar a base de Dijibouti pelo mar. Para começo de conversa, o plano de Aleksandra iria por água abaixo se Piotr não estivesse escondido no apartamento...
Bem, se havia uma coisa que aprendeu com Salésio e seus atobás, é que deveria enfrentar um problema de cada vez. Um elefante se come em pequenos pedaços... A prioridade agora era alcançar o apartamento. Depois: localizar o irmão. E depois: pensar em como dariam o fora daquele inferno.
Falando em Salésio...
Tremia só de pensar no que ele iria dizer ou fazer caso descobrisse que ela estava sozinha, no meio do nada-em-guerra-iemenita, para encontrar o irmão desaparecido. Sem avisar ninguém, sem escolta, sem tempo de fazer um planejamento detalhado... Com a cara e a coragem...
O fato é que ela não quis recorrer a Salésio. Além de os dois terem um relacionamento sem compromisso (e, portanto, sem prestar contas de seus atos um ao outro), ele entrava e saía de missões secretas o tempo todo. Agora mesmo, Salésio devia estar... Bem, ela não fazia ideia de onde ele devia estar... Os dois só poderiam se reencontrar nos Estados Unidos para o casamento de Derek e Lara.
Corrigindo: ele estava esperando encontrá-la lá. Mas, àquela altura do campeonato, Aleksandra não sabia dizer se conseguiria chegar a tempo.
Sempre foi assim, entre eles. Encontravam-se quando as agendas permitiam. O relacionamento era baseado mais na camaradagem e no sexo ocasional do que qualquer outra coisa. Não importando o quanto a química fosse incrível, os dois não tinham um vínculo como um casal romântico. E Aleksandra preferia assim. Considerando todos esses argumentos, ela não deveria estar nervosa só de pensar na reação de Salésio... No fundo, porém, sabia que ele não curtia inteiramente o arranjo "sem amarras". E sabia, também, que ele ficaria furioso por ela não ter lhe pedido ajuda.
Ela lhe enviou duas mensagens programadas, a fim de tranquilizá-lo. Se ele soubesse aonde ela estava indo, provavelmente, tentaria impedi-la. Ou ligaria para seus contatos para impedi-la.
"Acontece que não é minha culpa", Aleksandra procurou se defender mentalmente. Afinal, quando recebeu a confirmação de que o irmão estava desaparecido, soube que teria muito pouco tempo para se decidir sobre o que fazer. Além do mais, tentou falar com Salésio. Ele respondeu que não podia atender...
Não dava para esperar pela volta de seu amante, onde quer que ele estivesse. Cada segundo do dia contava. Assim, ela decidiu esconder dele o que estava aprontando.
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Nota de rodapé:
1 - Sigla da ONG presente no enredo de "O Mar dos Sargaços", volume 1 (N. da A.)
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