Capítulo 6 - Sob o céu da Ilha da Magia (Lara)
Lancei um olhar ansioso para o ecrã do celular, pela terceira vez. Eu sabia que, estando em Cabul, era difícil pra ele se comunicar com quem quer que seja... Olhei mais por reflexo... Não resisti e acabei entrando em sua conta no Instagram para relembrar as postagens, bem como, nossas conversas anteriores – assim, eu tinha a falsa, embora confortável, sensação de estar mais "perto" dele. Revi a foto em que Derek cobre o rosto com uma máscara e, num gesto largo, mostrao acampamento do seu pelotão, em Sadr, no Iraque. Passei pela imagem em que ele posa com mais dois colegas, agachados junto ao cão pastor da equipe. Uma fêmea, na verdade. Seu nome era Nadine. Eles costumavam chamar esses animais de "cães de assalto". James, o doutrinador, era o responsável pelo trato, adestramento e cuidados com o animal.
Dava para ver que amava Nadine e cuidava muito bem dela.
Passei pelas fotos pessoais, onde ele aparecia de costas para a câmera, brincando na neve com o cachorro da família, na casa de seus pais, no Michigan. Estas fotos estavam em sua conta privada, então, eu era uma das poucas que tinha acesso. Mister Bear parecia bem à vontade correndo em volta do dono, num dos vídeos. O rosto cuidadosamente afastado da câmera move-se até mostrar a maçã do rosto, e pára ali. Era uma maçã saliente, sugerindo que seu rosto fosse do tipo anguloso, forte.
Torci os lábios para a foto seguinte, onde ele está de frente pra mim, usando shorts e camiseta de ginástica da Marinha. Ele e outro cara posam para a câmera na praia, apontando para a formação de um grupo de jovens trazendo botes pretos sobre suas cabeças. Os rostos dos dois estavam cobertos por emojis de sapos sorridentes e amigáveis.
Bem, eu não tinha do que reclamar. Não colocava nenhuma foto minha na internet. Na verdade, eu nem as tirava. Quando tinha aniversário na Repartição e o povo demorava horrores apenas para ficar tirando fotos, eu me escondia e só voltava depois que tinha acabado. Eu não gostava dessas confraternizações, porque os sorrisos naquelas fotos eram falsos. Uma pessoa apunhalava outra pelas costas e depois sorria, abraçada à pessoa que prejudicou, diante da foto.
E vice-versa.
Era por isso, também, que eu considerava a História pouco confiável. Por que nem sempre as imagens contavam o que realmente estava acontecendo, numa determinada época. Napoleão estava certo – a história era contada pela perspectiva dos vencedores.
Com um suspiro melancólico, passei pelo foto noturna da fachada colorida, toda iluminada, do Doguitus Day - a lanchonete que Derek costumava frequentar, sempre que retornava de um desdobramento¹. Era uma espécie de ritual para ele, pedir o famoso cachorro-quente do Velho Bobbo, um veterano do Vietnã - cuja receita do molho consistia num verdadeiro segredo de família.
Rodapé:
[1] Desdobramento tático, no jargão militar consiste em envio, preparação e mobilização de tropas em determinada zona crítica, ou alvo de interesse.
Derek costumava ficar sentado em seu carro, sozinho, no estacionamento da lanchonete, saboreando a refeição preferida. Fazer isso logo após retornar de um desdobramento, servia para colocá-lo de volta aos eixos- em meio à estranha normalidade da vida civil. Ele me confessou que costumava levar para viagem um cachorro-quente extra (esse era para o Mister Bear).
Outro ritual, que ele completava quando ia buscar o akita no hotel para cães, em Virgínia Beach. Que Deus o ajudasse, se ele se esquecesse do cachorro-quente do seu temperamental cachorro. Fina ironia, o trocadilho!
Eu me sentia um pouco envergonhada de ficar fuçando na sua conta vezes sem conta. Será que o Instagram ou a CIA registravam quantas vezes um seguidor/seguido ficava navegando na sua conta? Mas é que eu queria verificar há quanto tempo ele estava off. O Instagram permitia ver quando o outro estava online, ativo, e quando foi sua última atividade. A bolinha verde indicava o momento em que a pessoa estava online, e assim era possível conversar praticamente em tempo real com ela, pelo canal direto.
O app mostrou que Derek estava fora do ar há mais de três semanas, desde a nossa última troca de mensagens. Sua última atividade, em relação a minha conta, foi quando ele curtiu a foto que eu postei da minha gata tomando banho, toda revoltada e cheia de espuma, na minha maravilhosa banheira improvisada (um barril de vinho enorme cujo destino era o descarte, mas eu o resgatei para o meu desfrute pessoal – sempre quis ter uma banheira e não tive dinheiro para pagar por uma). Na imagem curtida por ele e seus amigos, eu segurava Lisk firmemente com uma das mãos, enquanto batia a foto com a outra. Ficou um pouco borrado, porque ela não parava de se mexer, mas a luz que vinha de fora criou um efeito natural interessante.
Na foto, aparecia parte do meu braço e minha mão segurando a gata, em meio à espuma. Derek entendia meus motivos para não me mostrar nas imagens, porque ele também não se expunha. Ele me compreendia, sabia tudo a meu respeito, e não me cobrava coisas que eu não me sentia a vontade para fazer. E mesmo assim, eu ainda tinha um pé atrás com tudo isso... Amizade à distância, entre um homem como aquele e uma mulher como eu; ambos de países diferentes; tipo primeiro mundo e terceiro mundo. Era algo surreal!
Loucura!
Nosso estranho relacionamento à distância estava durando mais do que... Do que o impensável! Com o tempo, ele passou a saber tudo sobre mim... E eu passei a saber tudo sobre ele. Menos como era o seu rosto, quais as missões em que participava, ou o trabalho que executava.
Não foi algo que tivéssemos combinado previamente, simplesmente aconteceu. E quando vimos, tínhamos nossas próprias regras. Levei um tempo para perceber, porém, que essas regras foram impostas por mim. Ele apenas as acatou.
Então... Para o bem ou para o mal, acho que posso dizer que Derek era o meu melhor amigo. Trocávamos confidências que eu não faria nem à Indianara, ou Gislaine. Eu vinha me apoiando demais nele, desde que nos conhecemos.
Minhas duas amigas estavam loucas para saber como ele era. Achavam super estranho que a gente se sentisse confortável, sem saber como era a cara um do outro. Na base da amizade pura.
Fui deslizando pelas postagens, refletindo sobre a nossa estranha relação...
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Há seis meses, comecei a escrever um romance "meio" hot... Se é que existe essa coisa de "meio". Ou tem hot ou não tem, enfim... Maldita hora em que mencionei isto pra ele. Desde então, Derek não me deixou em paz. Ele queria ler o livro. E eu sempre dava desculpas para não mostrar, dizendo que não sabia se iria ter coragem de publicar aquilo, lá, no VoxPaper. Tá certo que sou uma escritora amadora, que publica só em plataformas – uma forma de terapia e hobby despretensioso... Mas não é por isso que eu iria publicar qualquer coisa. Eu queria deixar algo de bom para as pessoas se lembrarem do que eu fiz; algo relevante. Que fizesse a diferença na vida das pessoas.
Quando eu lhe disse exatamente isso, ele rebateu que era conversa fiada.
Derek estava lendo todos os meus livros, em português! Só que eu não sabia disso até aquele momento, quando deixei escapar o lance do romance hot. Nunca vou me esquecer de como a conversa rolou:
Ele disse que tinha um monte de sugestões para me dar... Que Deus me ajudasse! Daí, eu me vangloriei:
"Você nunca vai conseguir entender o que eu escrevo."
Demorou duas horas até Derek estar online para me responder... E em português:
"Aí é que você se engana, coração. Eu estou aprendendo rapidinho, com as nossas conversas." Ele pôs um emoji sorrindo de lado, no final da frase e, em seguida, largou a bomba: "Além do mais, eu me matriculei num curso de português que ofereceram, aqui, na base".
Meu queixo caiu. Primeiro, por descobrir que ele não estava no Afeganistão, nem no Iraque. E segundo... Por que, raios, iriam oferecer um curso de português na base?
"Aonde você está?", perguntei, intrigada.
"Chifre da África" – ele revelou, de má vontade.
Eu não esperava nem que fosse me contar... Geralmente, nunca dizia onde estava. E, via de regra, nunca dizia o que estava fazendo.
Aprendendo português na base... Eu digeri a informação. Fazia sentido, afinal, falava-se o Português em alguns países da África.
"Acontece que o Português que devem estar lhe ensinando não é o brasileiro", eu rebati.
"Sério?"– senti um deboche nesse comentário. – "Quer dizer que a língua que estou aprendendo não é toda cheia de duplos sentidos, malícia e ironias? Ah, pode deixar que eu me viro com as entrelinhas!"
"Espertinho".
Acabei confessando pra ele que me matriculei num curso de inglês online. Ele já pegava no meu pé o suficiente e até bancava o meu professor. Corrigindo: o meu carrasco.
Certa vez, ele me sentiu desanimada e comentou que o meu inglês não era tão mal, para uma não americana. Ele disse que conhecia americanos escrevendo pior do que eu. Ora, muito obrigada pelo elogio ambíguo! Mas depois, à medida que fui conhecendo Derek, vi que com ele era tudo preto no branco. Não havia ambiguidade. Se ele elogiava, era de coração; se criticava, também. Se ficava calado, era porque não havia nada a ser dito. Portanto, ele estava sendo sincero ao dizer que meu inglês era "bom" – embora eu soubesse das minhas limitações. Tinha muita dificuldade com a conversação - especialmente, o sotaque. Mais uma desculpa furada que eu dava a ele para não topar os vídeos, ou as conversas via Skype.
"Besteira", ele costumava reclamar que eu só iria conseguir aprender, falando. Se não falasse, continuaria tendo problemas... "A prática leva à perfeição, baby".
Quase tive um chilique do lado de cá, quando ele me chamou de "baby".
Eu estava torcendo muito para que Derek não se saísse bem nas aulas de português. Isso, porque não queria que ele aprimorasse a crítica aos meus livros. Na real, eu nem queria que ele os entendesse direito. Lá, eu colocava um pouco de mim mesma, dos meus sentimentos e ideias/opiniões sobre as coisas. Ele acabaria pescando todas as minhas inseguranças. Mas o que eu estou dizendo? Ele já pescou!
Era muito confuso o que eu sentia quando encontrava os comentários dele nos meus livros. Por um lado eu adorava, porque era um ponto de vista masculino, de fora do grupo que normalmente lia os meus romances. Por outro, eu não queria me colocar em posição vulnerável. Mas, enfim, quem estava na chuva era para se molhar, não é mesmo?
Se você decide se tornar um escritor, é para compartilhar a sua produção com um leitor. Então, é ridículo achar que ele vai sempre concordar com o que você escreve, ou vai amar tudo o que você escreve. Se alguém critica, é porque está prestando atenção. E isso é bom. Significa que existe algum nível de qualidade no que você escreve. O que eu via,por parte de algumas das escritoras adolescentes que publicavam na mesma plataforma, é que havia muito pouca tolerância às críticas. Poucas entendiam que escrever era noventa e cinco por cento de suor e apenas cinco por cento de criatividade. Algumas se achavam o máximo, apenas por ter lido "Cinquenta tons de Cinza", argumentando que poderiam "copiar" o estilo da obra em questão. O problema é que escrever não dá certo, se você copiar. Você tem que saber quem você é e o que quer, quando escreve alguma coisa.
Agora, imagina uma jovem escritora de 16 anos, dizendo que escreve desde sempre... E que o "desde sempre" dela é os 13 anos de idade. Parece que já se sente a própria Virginia Wolf, quando na verdade está só começando a percorrer a estrada.
Enfim... Divagações à parte, eu procurava me concentrar nos comentários de Derek e outros que faziam análises sérias sobre o que eu escrevia. Agora que Derek estava aumentando o seu domínio sobre o português, eu poderia esperar mais comentários.
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Passando por uma linda foto do entardecer no deserto árabe, lembrei-me de uma ocasião, em que Derek me respondeu de Jalalabad. Nós não pudemos conversar muito. Daí eu senti que a situação era grave. O Afeganistão ainda se agitava, como uma panela com água que, de vez em quando, fervia. Mas agora os olhares se voltavam para outros territórios com problemas... Os militares estavam sendoenviados ao Iêmen e à Síria, a fim de ajudar na pacificação.
Derek, até então, não tinha me contado que tipo de militar ele era. E eu nunca desisti de perguntar. Na época, fui mais incisiva. Questionei se era fuzileiro, piloto ou SEAL. Eu devia ter imaginado que colocá-lo contra a parede não era uma boa ideia. Nunca coloque um militar contra a parede!
Ele simplesmente respondeu que não era nenhum dos três; que, na verdade, era um cabeleireiro sonhador e estava lá para aprender a última moda dos cortes de cabelo masculinos. Mais uma tirada do tipo "toma", mesmo. Toda a vez que eu lhe perguntava em qual força trabalhava, ele desconversava e me dizia os maiores disparates: de jardineiro fiel a vendedor de tomates, de sorveteiro a catador de bichos de pé de cachorros de rua, de limpador de fossa a churrasqueiro mexicano.
Ele atuava na coalizão¹. Ponto.
Um dia, ele acabou confessando que era SEAL. Eu fiquei em silêncio por tanto tempo que ele perguntou: "Você ainda está aí?"
"Sim, estou".
"Vai fugir correndo agora?"
"Por quê?"
"Sei lá"–ele escreveu. - "As pessoas costumam ter suas próprias ideias do que um SEAL faz".
Resposta ambígua, para pescar que tipo de pessoa eu era – se aquele que admirava os SEALs, ou aquele que temia/repudiava suas ações. Contraditoriamente, era o grupo mais secreto e famoso da história, e despertava fortes reações. Do tipo "ame" ou "odeie".
Decidi ser o mais sincera possível. Afinal, os SEALs possuem um radar para a sinceridade que, isso sim, é de assustar.
"Eu não tenho porque fugir. Mas sei que existem coisas que não poderei perguntar, nem você poderá me responder, devido ao sigilo das suas missões, não é verdade?"
Dessa vez, foi ele quem ficou um bom tempo em silêncio. Depois escreveu, brincando: "Desde que a gente não fale em 'bomba', 'terrorista' e 'missão', acho que está tudo certo".
Ele estava se referindo a um programa de computador que vigiava as palavras trocadas na internet, entre os militares que participavam das missões mais sigilosas.
"Você acabou de falar todas as palavras perigosas" – coloquei um emoji com os olhos arregalados.
Ele colocou outroemoji rindo. "Acho melhor a gente começar a conversar de outro jeito. Vou pedir autorização para você se credenciar em nosso centro de comunicações. O pessoal aqui conversa com as namoradas, esposas, pais e filhos através do canal".
"E como funciona isso?"
"É tipo skype".
"Mas a gente vai se ver?"
"Isso seria tão ruim assim?"
"Ainda não me sinto pronta".
Ele pausou alguns segundos, antes de digitar: "Você pode mirar a tela do notebook para outra direção, enquanto fala comigo. Eu me contento em escutar a sua voz. Mas já adianto que vou mostrar a minha cara. Vou ficar lá, sentando, de frente para o computador... Se você quiser, olha. Se não quiser, a gente só conversa. O que acha?"
Nossa! Aquilo era um passo gigante...E ele fazia parecer nada demais. Quase entrei em pânico.
"E o que você quer com a minha voz?"
"Quero ter certeza de que você não está me enganando. Porque se eu estiver me apaixonando por outro homem, vou te caçar e matar!"
Eu até acharia graça, se não fosse pelo que ele disse. Ele disse mesmo que estava se apaixonando? Eu não soube o que responder, por isso, desconversei: "E se achar a minha voz horrível?"
"Duvido que seja horrível, coração".
"Ai, meu Jesus Cristinho".
"Quem diz algo assim? Vou ter que ensinar umas gírias melhores pra você!" – ele respondeu.
Torci os lábios. Provavelmente as gírias envolveriam algum tipo de "bunda".
"Então, posso passar os seus dados para o centro de comunicações?", ele insistiu.
Respirei fundo, num misto de pavor e empolgação.
"Pode. O que você precisa?"
Depois de tudo acertado, eu tive que aprender a abrir o bendito programa no meu notebook. Na verdade, era bem simples. Mas eu tomava todo o cuidado de colocar a tela do computador virada para a paisagem que se descortinava da minha janela: dunas e mar.
Não queria que ele visse que eu morava num moinho abandonado. Ele tinha uma boa casa, pelas fotos que eu vi, e as imagens que me enviou via canal direto mostravam um padrão de vida muito superior ao meu. Para começo de conversa, Derek tinha uma supermáquina! Era um Camaro preto coisa mais linda! E ele adorava aquele carro! Cuidava como se fosse um bebê! Também tinha uma picape com tração nas quatro rodas, a qual usava para suas aventuras, viagens, levar o cachorro para passear, etc.
Eu tinha um ônibus a minha disposição.
"Um dia você vai viajar comigo" – ele dissera ao me mostrar a foto da picape estacionada perto do Grand Canyon. Nossa, que vista! Como eu queria conhecer aquele lugar. Ele disse que já fez muitos saltos de pára-quedas por lá. Quem sabe, um dia, eu tivesse a oportunidade de conhecer.
Um dia...
Expressão perigosa.
Como disse Tom Cruise, no filme "Encontro Explosivo", a expressão "um dia" era um eufemismo para "nunca".
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O que estava me intrigando é que, apesar das dificuldades, Derek sempre dava um jeito de me mandar um alozinho...Se não estava na base, usava o Instagram; se estava na base, falávamos pelo computador.
Fato é que nunca ficamos tanto tempo sem nos comunicar; um mês inteiro sem notícia era algo inédito. Eu fiquei muito preocupada, achando que algo de grave pudesse ter lhe acontecido.
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Estava pronta para sair, mas esqueci de preparar a comida dos meus gatos. Sim, faltou contar que um segundo gato me adotou. E um terceiro também. O laranja de pelo longo, com olhos verdes, ganhou o nome de Dominic. A fêmea preta como a noite, e olhos amarelos inacreditáveis, recebeu o nome de Ziva - em homenagem à personagem da Série de televisão: NCSI.
Tive que mandar castrar os dois. O veterinário me explicou que eles apareceram por sentirem o cheiro de Lisk. Acharam que seria uma boa ideia tentar a sorte. (Pegaram a trouxa, aqui, de jeito.) Imagine só quando eu contasse a Derek que tudo isso aconteceu, no espaço de quatro semanas em que ele ficou fora do ar.
Tive que estabelecer regras rígidas para alimentar os gatos. Caso contrário, um poderia avançar no outro. O veterinário me orientou como distribuir a comida dentro dos territórios estabelecidos por eles. De certa forma, foi hilário imaginar o interior pequeno do moinho dividido em "facções".
Executei a rotina dos meus filhinhos, observei-os por um instante e, vendo que estava tudo certo, peguei a minha bolsa. Eu precisava correr se não quisesse perder o ônibus. Se perdesse, chegaria atrasada – ou, em cima da hora, na melhor das hipóteses.
De repente, o celular deu sinal de vida. O som era de mensagem entrando. Abri, mas não achei nada. Meu coração deu um pulo no peito. Só podia ser no VoxPaper ou no Instagram.
Abri o app e lá estava, finalmente, uma mensagem de Derek pelo canal direto:
"Desculpe a demora, Morena, mas é que tive que voar para os Estados Unidos. Tudo aconteceu às pressas e pra piorar, meu smart foi pro pau. Até comprar outro e baixar o backup da nuvem... deu o que falar".
"As coisas andam meio agitadas. Fui aceito na seleção e treinamento da equipe seis dos SEALs. Mal tive tempo de pegar as minhas coisas, antes de voar para a Costa Leste. Estou sem dormir direito há dias".
Eu estava chocada duplamente. Ele estava de volta aos Estados Unidos, e iria tentar uma vaga no Seal Six Team. O que significava que nós poderíamos retomar nossas conversas pela internet, na medida do possível... Mas o mais importante para mim, era que ele estava longe do perigo. Quer dizer, o perigo envolvendo conflitos. Porque o treinamento também costumava ser perigoso, muitas vezes.
Digitei uma rápida resposta, antes de trancar a porta do moinho.
"Graças a Deus! Achei que algo tivesse acontecido a você".
Ele digitou de volta:
"Estou bem, mas vou ficar incomunicável por um tempo, por causa do treinamento. É barra pesada e preciso me concentrar. Assim que possível, eu entro em contato. Só estou avisando às pessoas mais importantes da minha vida".
"Eu sou importante?" – não consegui deixar de perguntar.
Ele levou alguns segundos para responder.
Tranquei a porta e saí pela trilha que cortava a fazenda. O céu estava lindo, com poucas nuvens, mas eu não conseguia apreciar devidamente, com minha atenção focada no celular. De repente, o aparelho ganhou vida na minha mão.
"Você é importante demais" – ele respondeu.
Em seguida, uma foto apareceu. O cenário noturno... Era uma lua toda iluminada. Parecia uma lua de fogo.
"Tirei essa foto em Cabul, pensando em você. Diz que olhou para a lua, naquele dia?" – pediu ele.
Nós tínhamos combinado fazer isso.
Ao invés de responder, procurei na minha galeria de fotos e postei para ele a foto que bati daquela mesma noite de lua cheia, não a mesma hora, por causa do fuso horário, mas igualmente iluminada, criando um rastro de luz sobre o oceano Atlântico.
Ele mandou um emoji de coração.
"Tenho que ir, Morena".
Derek sempre me chamava de Morena, apesar de nunca ter visto a minha cara, nem saber a cor dos meus cabelos. Uma vez, eu lhe perguntei como podia saber que eu era morena. (Estava armada com a questão do preconceito. Ele devia achar que eu era morena porque vivia no Brasil. Para eles, de certo, latino-americano era tudo a mesma coisa.) Argumentei que podia ser nórdica, atlética e com longas pernas. Bastante longas para rivalizar com meus longos cabelos cor de ouro.
"Você não é assim", ele disse, com tanta segurança que eu tive que insistir: "Como é que você sabe?" Ele respondeu que sonhava comigo, ou me imaginava em sua mente, de vez em quando.
Eu saía na vantagem, porque as fotos dele só cobriam o seu rosto. Dava pra ver a cor do cabelo, o porte físico, o bronzeado da pele e até as tatuagens. Eu costumava me imaginar... fazendo coisas com aquele físico de soldado musculoso. Coisas que inspiravam o meu livro hot. Ah, se ele desconfiasse...
Isso estava ficando muito... Sério. E, claro, me assustava pra caramba!
Mandei um coração de volta para ele e finalizamos o contato.
Com um sorriso nos lábios, alcancei o ponto do ônibus.
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Rodapé:
[1] Muitos países enviavam tropas de pacificação: Austrália, Canadá, Bélgica, França, Inglaterra, Alemanha, Áustria, Itália... Mas, claro, que a mídia enxergava mais os Estados Unidos. Não esqueçam que o Brasil anda se aventurando, com a Marinha, pela Síria e o Líbano.
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