23° Pegando estrada
Na manhã seguinte, a luz do sol invadia suavemente o quarto da pousada, iluminando o rosto de Enrico e a deixando com um ar de paz. Ela despertou devagar, sentindo o calor do corpo dele ainda próximo, o braço envolvendo-a com um carinho sutil. Enrico abriu os olhos, ainda sonolento, e sorriu ao vê-la.
— Buongiorno — murmurou ele, a voz suave.— Você dormiu bem?
— Como uma pedra... E você.
— Digo o mesmo. — falou de maneira sorridente.— Acho que faz muito tempo que não durmo tão bem assim.
— Isso é por causa dos pesadelos.
ele assentiu com a cabeça antes de dizer:
— No começo, quando me alistei... não fazia ideia do que realmente me esperava. Até o momento que fui enviado para o Afeganistão. — Ele hesitou, seus olhos fixos em algum ponto distante, como se pudesse ver as cenas diante de si. Enrico respirou fundo, as palavras saindo lentamente, como se cada uma o levasse de volta ao deserto do Afeganistão.— Na minha primeira missão no Afeganistão, eu era um dos mais novos recrutas... Tinha só vinte anos... E estávamos em uma coluna de seis veículos, avançando devagar em uma estrada, sobre ordens do nosso superior. Todos sabiam que aquela estrada era chamada de "estrada para o inferno" — ele murmurou, a voz baixa e grave. — Era conhecida por estar coberta de IEDs... artefatos explosivos improvisados que poderiam acabar com tudo em segundos. A tensão era quase palpável dentro do veículo, ninguém falava, só se ouvia o ruído dos motores e a respiração pesada de cada soldado.
Milena escutava, em silêncio, observando o rosto de Enrico endurecer enquanto ele contava.
— Eu estava no segundo veículo da coluna. De repente, o carro da frente explodiu bem diante dos meus olhos, numa bola de fogo e fumaça que cobriu tudo. Fomos lançados para trás com o impacto. Antes que tivéssemos tempo de entender o que acontecia, os tiros começaram... rajadas incessantes. — Ele fez uma pausa, os olhos perdidos em algum ponto distante, como se ainda pudesse ver a cena.— Foi um caos completo — continuou ele, a voz rouca. — Havia gritos no rádio, e eu só conseguia ouvir o barulho ensurdecedor dos tiros. Nos lançamos ao chão, tentando nos proteger, mas não havia para onde correr. Um dos meus amigos, que estava no veículo ao lado, foi atingido, e eu sabia que, se não conseguíssemos sair dali rápido, acabaríamos todos da mesma forma, e sem vida.
Milena apertou a mão dele, sentindo a intensidade da lembrança que ele compartilhava. Ele respirou fundo antes de continuar.
— Tivemos que reagir sob fogo, movendo os feridos para um ponto de cobertura enquanto esperávamos o apoio. Cada segundo parecia uma eternidade, e, honestamente, não sei como conseguimos sair de lá vivos. Vi muita coisa... muitos rostos que nunca me esqueci.—Ele engoliu em seco, como se ainda pudesse sentir a poeira e o cheiro de queimado daquela estrada.— Desde aquela noite, o sono nunca foi o mesmo — confessou, a voz mais suave agora, voltando ao presente e encontrando os olhos azuis de Milena. — Mas ontem... dormir ao seu lado foi como um descanso de verdade. Sem pesadelos, só paz... É a primeira vez em anos, que não tenho pesadelos.
Ela o olhou com carinho, percebendo o peso que ele carregava e a importância daquele instante. Com um toque suave, acariciou a mão dele antes de dizer.
— Assim, eu vou ficar me sentindo importante tenente.
Ele a puxou suavemente para um abraço, envolvendo-a com firmeza e depositando um beijo leve no topo de sua cabeça, deixando um rastro de calor no gesto.
— Não fique tentando me desvendar ou me sondar demais Milena. — murmurou, com uma ponta de divertimento na voz. — Isso pode ser perigoso.
Milena ergueu o rosto, um sorriso curioso brincando em seus lábios.
— E por que seria perigoso, tenente? — ela provocou, com uma expressão travessa.—
Ele a observou por um instante, os olhos escurecendo com um misto de intensidade e ternura.
— Porque eu poderia dar espaço para você entrar na minha vida, sua maluca — respondeu, com um sorriso quase desarmado. — E, honestamente... acho que não sairia mais dela.
Ela riu suavemente, encantada com a honestidade inesperada de Enrico. Com um brilho no olhar, Milena segurou o rosto dele entre as mãos, aproximando-se ainda mais.
— Olha que essa ideia parece ser tentadora, tenente... — ela disse, inclinando-se e depositando um beijo suave nos lábios dele. O toque era leve, mas carregava uma intensidade que fez o coração de Enrico acelerar.
Ele fechou os olhos por um momento, absorvendo a doçura daquele gesto, e quando abriu, encontrou o olhar desafiador de Milena. A mistura de inocência e provocação a tornava ainda mais irresistível.
— Você está brincando com fogo, sabe disso? — ele respondeu, um sorriso se formando em seus lábios.
— Talvez eu goste desse fogo. — ela sussurrou, com um brilho travesso nos olhos, antes de se afastar um pouco, olhando para ele com uma expressão que misturava ousadia e carinho.
Enrico a observou, sentindo a tensão elétrica entre eles, um espaço que parecia carregar promessas e desafios. Ele sabia que ela estava certa; deixar Milena entrar em sua vida era uma tentação. Mas, ao mesmo tempo, ele temia abrir a porta para as suas próprias vulnerabilidades.
— Levante daí meu amor, eu estou com fome.
Ele sorriu, antes de se levantar para se arrumarem e descerem até o salão para o café da manhã. O aroma de café fresco e pão recém assado preenchia o ar, e eles se sentaram próximos à janela, de onde se via a paisagem das montanhas ao longe. Enquanto tomavam o café, conversando e trocando sorrisos, um casal de senhores, sentado em uma mesa próxima, os observava com simpatia.
— Você tem algum sonho Tenente... Algum sonho só seu?
Enrico desviou o olhar dela por um segundo, como se aquela pergunta fosse um território desconhecido. Ele hesitou, os lábios se curvando em um leve sorriso ao responder:
— Sonhos, hein? — Ele riu de leve, mais para si mesmo. — Nunca fui de sonhar muito. Acho que aprendi a deixar os sonhos de lado para focar no presente. Mas, se tivesse que escolher... — Ele fez uma pausa, como se estivesse se permitindo abrir uma fresta de suas barreiras. — Quem sabe... um lugar tranquilo, longe das pressões e da vida de hoje. Um lugar onde pudesse construir algo com minhas próprias mãos.
Enrico desviou o olhar por um momento, observando as montanhas ao longe, como se buscasse lá uma resposta para suas próprias dúvidas. O calor do café na xícara trouxe um conforto inesperado, e ele sentiu que poderia se abrir um pouco mais para Milena.
— Você deveria considerar isso... Um lugar tranquilo parece algo que realmente poderia te fazer bem, sabe? Igual a este aqui, onde estamos... — Milena murmurou, olhando pela janela antes de voltar a encontrá-lo, a luz suave da manhã refletindo em seu rosto.
Ele sorriu, sentindo um calor no peito. A conversa fluía de maneira natural, como se eles já tivessem discutido esses temas antes.
— Mas, até lá, acho que tenho muita estrada para seguir — ele disse, olhando para ela com sinceridade. — A vida militar é intensa e cheia de imprevistos. Às vezes, parece que não dá tempo para pensar no que realmente queremos.
— Enrico, todos nós temos nossas batalhas — Milena disse suavemente. — Você pode levar isso em consideração quando tiver um tempo livre. Não precisa ser agora, mas talvez comece a imaginar um futuro para si mesmo, além da carreira.
Ele a observou, admirando a maneira como ela parecia entender seu mundo sem julgamentos, apenas com uma empatia genuína.
O silêncio confortável entre os dois foi quebrado apenas pelo som do vento soprando do lado de fora da cabana. Enrico continuava a olhar para Milena, refletindo sobre o que ela acabara de dizer. A ideia de um futuro diferente, mais simples, mais humano, parecia tão distante, mas ao mesmo tempo, com ela ali, parecia assustadoramente possível.
— Você fala como se me conhecesse melhor do que eu mesmo — ele disse, com um meio sorriso, tentando aliviar a intensidade do momento.
— Talvez eu conheça — Milena retrucou, com um brilho travesso nos olhos. — Ou talvez eu apenas veja algo em você que você ainda não enxerga.
Enrico desviou o olhar por um instante, como se precisasse de um momento para processar o impacto das palavras de Milena. Era raro alguém tocar tão profundamente em algo que ele nem sequer admitia para si mesmo. Ele soltou um suspiro baixo, como se estivesse liberando parte da tensão que carregava.
— Está ficando tarde — ele comentou, olhando o relógio de pulso. — Vamos pegar estrada cedo, não quero ter nenhuma surpresa no caminho.
Milena observou-o enquanto ela pegava sua jaqueta pendurada em uma cadeira próxima. Ela hesitou por um momento, como se estivesse pesando suas opções, mas, no fundo, sabia que Enrico tinha razão. Ficar ali, por mais confortável que fosse, não resolveria o que ambos tinham deixado para trás.
— Você está certo. — ela respondeu, levantando-se e pegando suas próprias coisas, enquanto ele caminhava até a recepção par entregar ás chaves. Usava roupas casuais, o que chamava atenção das mulheres. Quando retornou, estendeu á mão para ela e se retirando até o local que estava a moto. —
Milena seguiu Enrico em silêncio, observando-o enquanto ele se dirigia até a moto estacionada. A luz do sol refletia no metal da moto, dando um brilho quase mágico ao cenário.
Enrico colocou o capacete com destreza e fez um movimento, sinalizando que ela deveria subir na moto. Milena hesitou por um momento, mais uma vez sentindo a necessidade de dizer algo, de explorar o que estava acontecendo entre eles. Mas sabia que as palavras ainda não eram o suficiente para dissipar o que pairava no ar.
Ela subiu na moto, sentindo o calor do corpo de Enrico à sua frente. Por um instante, ficou em silêncio, com os braços ao redor dele, a mente cheia de pensamentos conflitantes. Algo estava mudando entre eles, mas Milena não sabia ainda o que isso significava.
Enrico ligou a moto e acelerou suavemente, as ruas desertas à frente deles passando rapidamente. O som do motor misturava-se com o vento que cortava o silêncio, e, por um momento, Milena se perdeu no ritmo da estrada, permitindo que seus pensamentos se dispersassem.
Enquanto rodavam, a cidade dava lugar à estrada aberta, e a paisagem se tornava mais vazia, com as sombras das árvores e montanhas se estendendo na escuridão. Milena olhou para trás, vendo as luzes da cidade desaparecerem lentamente, como se a jornada que estava prestes a começar fosse mais do que uma simples viagem. Era uma fuga, talvez, ou uma tentativa de encontrar algo que ambos estavam buscando, mas ainda não sabiam exatamente o quê.
Ela apertou os braços ao redor dele, sentindo o calor do corpo dele e a segurança momentânea da viagem, mas sabia que, em algum momento, a estrada acabaria. E, quando isso acontecesse, eles teriam que lidar com as consequências de tudo o que estava por vir.
Por agora, ela se permitiu relaxar um pouco, deixando-se levar pela adrenalina da estrada e pela sensação de estar em movimento, fugindo de tudo o que estava para trás. Ela não sabia por quanto tempo duraria esse sentimento, mas, por enquanto, era o suficiente.
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